Economia
Edição 152 > Os arrancos da economia global e a fratura de Davos
Os arrancos da economia global e a fratura de Davos
O economista Paulo Nogueira Batista Júnior, ex-diretor executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI) e ex-vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS, avalia que há uma retomada com certa consistência da economia global. Ao mesmo tempo, os números indicam que a China destoa do ritmo geral e as complicações políticas tendem a se agravar, como mostrou o recente Fórum Mundial de Davos

Não são arrancos triunfais de cachorro atropelado. Com essa imagem do erudito acervo coloquial do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, o economista Paulo Nogueira Batista Júnior definiu a recuperação econômica nos Estados Unidos, na Europa e no Japão. Em entrevista a jornalistas progressistas no Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, na tarde de 5 de fevereiro de 2018, ele classificou a retomada da economia nesses países como um processo com certa consistência, embora tenha um ponto de interrogação. Falou da instabilidade macroeconômica, que tem interface com os sistemas financeiros, com enormes dificuldades para serem modelados, um ponto conjuntural que precisa ser monitorado.
De acordo com ele, essa situação econômica internacional favorável, que ajudou o Brasil a se recuperar um pouco em 2017, pode ser rapidamente revertida se o que parecem ser bolhas dos mercados financeiros e acionários mundiais se romperem, atingindo as grandes instituições do mercado. Elas podem ficar mais ou menos circunscritas, como a “bolha da Internet” no final da década de 1990, caracterizada por uma forte alta das ações das novas empresas de tecnologia da informação e comunicação – também chamadas “ponto com” (ou “dot com”) – que, apesar de bastante aguda e impressionante, não contaminou os bancos e não teve impacto macroeconômico muito forte.
Segundo Paulo Nogueira Batista Júnior, a situação foi bem diferente em 2007 e 2008, quando estourou o caso do subprime imobiliário nos Estados Unidos. Pode ser, disse ele, que surjam novas turbulências financeiras, mas isso é um ponto de interrogação. Os economistas são como aquela anedota do bêbado que estava procurando o relógio que havia perdido, à noite, somente embaixo de um poste porque ali havia luz, pilheriou. Ou, como definiu John Kenneth Galbraith, têm nas suas projeções uma tentativa de homenagear e resgatar a credibilidade dos astrólogos. Existe ainda o imponderável político, que pode fazer surgir novos Donald Trump (o intempestivo presidente dos Estados Unidos) e Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia), ponderou.
A crise social, que se traduz em impasses políticos e projeta movimentos radicalizados à direita — como já ocorre na Áustria, na Polônia e na Hungria, além do crescimento da Alternative für Deutschland na Alemanha, da Frente Nacional na França (esta contida nos últimos processos eleitorais) —, também é um fator importante, avaliou. A síntese dessas constatações, disse Paulo Nogueira, é o entendimento da conjuntura como a crise da globalização do Fórum Mundial de Davos, de uma elite desenraizada, transnacional, que não tem muita identificação com o povo dos seus países. De acordo com ele, é importante lembrar o que está acontecendo na base social dos Estados Unidos e da Europa.
Primeiro um movimento de tecnologia disruptiva, chamada às vezes de Quarta Revolução Industrial, que elimina empregos e demanda mão de obra pouco qualificada, inclusive das classes médias — fenômeno que está acontecendo também no Brasil. E, segundo: as migrações de trabalhadores. A junção desses fatores com a migração internacional de capitais, que erode as bases tributárias dos Estados de bem-estar e as políticas sociais, resulta em caldo de cultura para o crescimento da direita nacionalista e populista. Paulo Nogueira lembra que a esquerda não se beneficiou dessa resultante, com a possível exceção de Portugal. Talvez porque ela tenha se aburguesado e se aliado à direita, avalia.
Para ele, a esquerda europeia, principalmente a que tem raiz marxista, é internacionalista na sua origem, na sua concepção, e não lida bem com a questão nacional, uma bandeira da direita; fenômeno que não ocorre na América Latina e no Brasil em particular, ressalta. Por aqui, disse, ao contrário da Europa — nos Estados Unidos e no Japão (que ainda segue a linha econômica norte-americana), a tradição progressista é pequena —, a esquerda sempre teve uma ligação forte com o nacionalismo, ao contrário das elites. Paulo Nogueira Batista Nogueira Júnior considerou, como ponto importante nessa conjuntura, a formação do BRICS (Brasil, Rússia, Índia China e África do Sul), um mecanismo de cooperação do qual ele foi partícipe, constituído com forte participação dos ex-presidentes brasileiros Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
Pode-se concluir, desse amplo arrazoado, que a segunda parte do lema da reunião anual de 2018 do Fórum Econômico Mundial de Davos, Suíça — Criando um futuro compartilhado em um mundo fraturado —, foi cunhada sob medida. Ideia, aliás, que fez parte dos discursos do presidente chinês, Xi Jinping, ao longo de 2017. A contribuição para tentar superar essa fratura apareceu no discurso do seu represente em Davos, o diretor do Instituto de Política Energética da China, Lin Boqiang: “A implementação da iniciativa do Cinturão e Rota incentivará o desenvolvimento sustentável da economia global.”. A iniciativa, proposta pela China em 2013, pretende construir redes de comércio e infraestrutura conectando a Ásia com a Europa e a África via as antigas rotas comerciais terrestres e marítimas.
Lin Boqiang fala com a autoridade de um país com forte comércio exterior, que tem na União Europeia, nos Estados Unidos e no Sudeste Asiático seus maiores parceiros. Nos países ao longo do Cinturão e Rota, em janeiro deste ano o comércio chinês registrou uma elevação de 17,8% anualmente, 1,6 ponto percentual a mais que o crescimento comercial geral. Com iniciativas desse porte, o gigante socialista asiático se firma como ator determinante no jogo comercial internacional. A agência de notícia Xinhua noticiou recentemente que o embaixador chinês nos Estados Unidos, Cui Tiankai, disse que a China permanecerá confiante em seu caminho do desenvolvimento e aqueles que esperam o contrário devem enfrentar a realidade.
Foi um recado ao presidente norte-americano Donald Trump. “Recentemente, registraram-se alguns acontecimentos nas relações China-Estados Unidos que são matéria de preocupação, o que reflete a deficiência de alguém em seu entendimento sobre a China, e também seu mau juízo das nossas estratégias. Esse alguém sente-se incomodado com o caminho do desenvolvimento chinês”, disse Cui numa reunião realizada na embaixada da China para celebrar a Festa da Primavera, ou Ano-Novo Lunar chinês, em 16 de fevereiro, segundo a Xinhua. “O caminho do desenvolvimento escolhido pela China está baseado nas realidades nacionais do país, guiado por suas próprias teorias, garantido por seu próprio sistema e estabelecido em sua própria cultura”, afirmou. “A escolha chinesa do caminho de desenvolvimento não mudará devido ao pensamento de outras pessoas. Espero que aqueles que se sentem incomodados enfrentem a realidade e abandonem suas ilusões”, enfatizou.
Com esse caminho, a China anunciou que a expectativa de vida média da cidade de Xangai atingiu 83,37 anos em 2017, 0,24 ano a mais do que em 2016. Segundo a Comissão Municipal da Saúde e do Planejamento Familiar de Xangai, a expectativa de vida média das mulheres da cidade aumentou para 85,85 anos, enquanto a dos homens foi de 80,98 anos. A taxa de mortalidade materna caiu para 3,01 por 100 mil e a de mortalidade infantil diminuiu para 3,71 para cada mil. Ao mesmo tempo, 12,89 milhões de pessoas rurais saíram da pobreza em 2017. A taxa caiu para 3,1%, que em 2016 foi de 4,5%. A renda disponível per capita dos residentes rurais em áreas empobrecidas aumentou 9,1% em 2017. A China planeja eliminar a pobreza em 2020 para criar uma “sociedade moderadamente próspera”.
O baixíssimo desemprego também recuou em 2017; ficou em 3,9%, o menor nível desde 2002. No ano passado, foram criados 13,51 milhões postos de trabalho nas áreas urbanas, 370 mil a mais que em 2016. O lucro das principais empresas industriais também apresentou indicadores positivos. A previsão é de que a economia chinesa terá crescimento estável em 2018, a uma taxa entre 6,5% e 6,8%. “Além das condições em longo prazo, incluindo grande base material, abundante mão de obra, cadeias industriais completas, e um enorme mercado, existem também muitos fatores especiais favoráveis para o desenvolvimento”, disse à Xinhua Fan Hengshan, vice-secretário-geral da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma.
O país também se destaca no desenvolvimento tecnológico. O relatório bienal da Fundação Nacional para Ciência e o Conselho Científico Nacional dos Estados Unidos indica que a China se transformou em uma potência científica e técnica, ou está a ponto de se tornar uma, segundo o jornal norte-americano The Washington Post. O país é o segundo do mundo em investimentos em pesquisas e desenvolvimento. Embora nesta esfera os Estados Unidos ainda superem a China, se o crescimento atual continuar o ranking logo se inverterá.
De 2000 a 2015, o ritmo de investimento em pesquisas e desenvolvimento aumentou em média 18% por ano, enquanto nos Estados Unidos este número atingiu somente 4%. A China também vive uma explosão do número de investigações técnicas e lidera no número de publicações relacionadas com a engenharia. No país asiático se registrou, entre 2000 e 2014, um drástico crescimento do número de licenciados com especializações em ciência e engenharia: de 359.000 para 1.650.000 pessoas.
Tudo isso em meio a uma crise de proporção oceânica. Em Davos, França e Alemanha manifestaram preocupações com “divisões de ideias entre os dois lados do Atlântico”, uma referência a posições de Donald Trump. “Aqueles que não querem avançar não devem bloquear os mais ambiciosos”, afirmou o presidente francês, Emannuel Macron, justificando a “fratura” aludida no slogan do evento. Fazendo eco a Macron, a chanceler alemã, Angela Merkel, disse que a União Europeia (UE) “precisa assumir mais responsabilidade.”. “O multilateralismo está sob ameaça. Realmente aprendemos as lições da história? Nós realmente não aprendemos”, disse ela.
Mesmo nesse eixo franco-alemão há sinais de fratura. A revista semanal alemã Der Spiegel noticiou que Macron há muito queria uma união que oferecesse maiores poderes a Bruxelas, em vez de ver Berlim “dirigir a roda”. O presidente francês também teria sugerido o estabelecimento de um cargo ministerial das finanças europeias e um orçamento para a Zona do Euro, algo como uma tentativa de transferir mais legitimidade dos governos nacionais para a UE, o que pode ter a oposição de Berlim.
Macron defende uma reforma econômica geral da UE e da Zona do Euro, uma espécie de seleção de decisões que interessam à França, como a criação de um Ministério de Finanças da Europa e de um Fundo Monetário Europeu — o que liquidaria de vez com a inutilidade do Banco Central Europeu (BCE) —, que em nada beneficiaria as economias dos países fora do eixo franco-alemão. A Alemanha, por sua vez, chegou a cogitar a união com o grupo do Norte — Holanda, Áustria e Suíça — para formar uma nova organização similar à Zona do Euro, exclusiva deles, deixando os demais países à mercê de suas graves situações.
Além dessas fraturas, umas mais expostas e outras menos, há o crescimento de movimentos políticos conservadores que defendem o caminho do Brexit do Reino Unido. Pela esquerda também há contestação à UE e à política econômica do BCE. Na Alemanha, houve protestos de trabalhadores e de partidos progressistas em várias cidades contra a coalizão que resultou na formação do novo governo e a consequente vitória de Angela Merkel, que assumiu novamente — pela quarta vez — o cargo de chanceler.
Na Grécia houve protestos populares contra um novo pacote de “reformas” que o governo fechou com as entidades credoras, em troca da nova parcela do resgate financeiro de cerca de 6,5 bilhões de euros. De quebra, o governo do primeiro-ministro Alexis Tsipras aprovou no parlamento medidas de endurecimento das condições para a convocação de greves. Na Inglaterra, informa o jornal The Guardian, a insatisfação dos britânicos com as privatizações impostas por Margaret Thatcher pode ser expressa em números: 83% são a favor da nacionalização da água; 77%, da eletricidade e do gás; e 76%, do transporte ferroviário.
Soma-se a tudo isso o modesto crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) da Zona do Euro, recentemente divulgado, que teve expansão anual de 2,7%. Nos Estados Unidos, informou o Departamento de Comércio, o crescimento da economia em 2017 foi de 2,3% em relação a 2016, quando cresceu 1,5%. Para o Brasil, o Fundo Monetário Internacional (FMI) faz uma projeção de crescimento do PIB para 2018 e 2019 (em torno de 2%), mas, de acordo com o Banco Mundial, o país deverá segurar a alta da economia da América Latina e ficar abaixo da média mundial, projetada em 3,1%.
Resumindo a ópera, recentemente o Banco Mundial apresentou o relatório Mudança na Riqueza das Nações, indicando que, entre 1995 e 2014, a riqueza global passou de US$ 690 trilhões para US$ 1 quatrilhão. Ao mesmo tempo, a organização não governamental (ONG) Oxfam estima que, de toda a riqueza gerada no mundo em 2017, 82% ficaram concentrados nas mãos dos que estão na faixa de 1% mais ricos, enquanto a metade mais pobre — o equivalente a 3,7 bilhões de pessoas — não ficou com nada.
Osvaldo Bertolino é jornalista e escritor. Publicou, entre outras obras, as biografias de Pedro Pomar, Carlos Danielli e Maurício Grabois. Edita o blog O Outro Lado da Notícia (outroladodanoticia.com.br) e o portal Grabois.org.br