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Edição 151 > O Papel da Educação na Revolução Russa (1)
O Papel da Educação na Revolução Russa (1)
Esforços para forjar o desenvolvimento da base material da nova sociedade e a elevação do nível de consciência do proletariado marcaram a atuação do poder proletário, sob o comando de Lênin

Marco histórico do século 20, a Revolução Russa de 1917 foi uma rica tentativa de construção socialista. Suas conquistas, seus êxitos e fracassos merecem análise rigorosa, não como modelo a ser/não ser seguido, mas como referência para a discussão teórica, política e ideológica que tenha por perspectiva a superação do capitalismo. De igual modo, cabe estudar as concepções que serviram de base aos projetos desenvolvidos nos diversos domínios da edificação da sociedade, sob o novo regime.
Este artigo trata, principalmente, da compreensão sobre o papel da Educação na Revolução Russa, na fase inicial, da tomada do poder pelos bolcheviques até meados dos anos 1920, quando também foram elaborados os Programas Oficiais da URSS.
A Concepção de Educação
As raízes da concepção se encontram em Marx e Engels, na crítica à educação burguesa e na discussão sobre o papel do Estado, o princípio da união entre escola e trabalho, a educação integral, a escola única do trabalho.
Lênin denunciou a precária situação da educação dos trabalhadores na Rússia, o que lhe permitiu o exame dos desafios a enfrentar e medidas a tomar, uma vez realizada a Revolução. Vários temas educacionais aparecem com muita frequência em seus discursos e artigos (2), dada sua obstinada preocupação com a formação do homem (ser humano) novo, numa sociedade de novo tipo.
Sua contribuição se sobressai na relação dialética entre concepção e ação concreta, como líder da Revolução, dirigente do Estado Soviético e do Partido Bolchevique.
Desafios da Revolução
Para Lênin, a Revolução não se encerra com o ato da tomada do poder pelos bolcheviques. Ao contrário, é aí que ela começa. Exigia-se o restabelecimento das forças econômicas do país, assentadas em nova base. A instrução seria primordial para a formação de trabalhadores capazes de entender e operar em bases técnicas modernas. Porém, não uma instrução reduzida ao ensino profissional, até então restrito ao adestramento, na lógica capitalista.
Para tanto, seria necessário: superar os altos índices de analfabetismo, a escassez e a precariedade das escolas; transformar a formação e as condições de trabalho dos professores; promover o acesso das mulheres à educação.
Foi preciso, ainda, lidar com pessoas e organizações que não reconheceram o Poder Soviético: parte do exército, organizações de operários, associações do magistério, que se mantinham favoráveis ao capitalismo; adversários do regime, mesmo os que se autodenominavam socialistas.
O enfrentamento a esses desafios exigiu do poder soviético várias medidas, destacadas a seguir.
1. Eliminar o Analfabetismo
Lênin via na Educação um elemento-chave para alavancar as necessárias transformações na base material e na superestrutura da sociedade. Assim é que colocou o acento na alfabetização, por ele valorizada tanto quanto a eletrificação. A sociedade precisava sair da obscuridade física, ambiental e, também, da obscuridade cultural. Não se poria em prática a eletrificação com a existência de analfabetos. A alfabetização, para efetivar-se, precisava da eletrificação.
Tais polos foram conjuntamente desencadeados: cada central elétrica seria, também, base de instrução. O plano de eletrificação seria também o plano das brigadas de alfabetização. Mas, além de saberem ler, os trabalhadores deveriam ser “cultos, conscientes, instruídos” – capazes de trabalhar e valorizar o trabalho como prática social. (LENINE, 1977, p. 37).
Principais medidas do novo regime: construir escolas; recrutar e formar professores; organizar bibliotecas mais acessíveis ao povo; associar a instrução pública à educação extraescolar; relacionar a organização do ensino com a organização do trabalho; reformar o ensino; promover a organização do poder local (3).
2. Organizar a Instrução Pública
Constituiu-se o Comissariado do Povo para a Instrução Pública e suas seções: a) Escolar; b) Científica; c) Artística; e d) Científico-Pedagógica.
Ampliou-se o número de escolas elementares e secundárias, foram criadas instituições pré-escolares (os jardins de infância) e escolas para jovens e adultos.
Ocorreram avanços também no nível superior, antes restrito às elites. Criaram-se universidades e instituições científicas, ampliou-se o número de pesquisadores. Sublinha-se que, nos colégios, universidades e instituições científicas, as mulheres atingiam cerca de 1/3 dos estudantes, professores e pesquisadores.
3. Edificar a Escola Única do Trabalho
Marx e Engels defendiam a responsabilidade do Estado em relação à educação – na construção, manutenção e desenvolvimento das escolas –, mas sob controle e fiscalização dos trabalhadores, organizados.
Nessa perspectiva, o poder proletário dedicou-se a construir a escola única do trabalho, com a seguinte definição: Escola Única – por seu caráter unitário, não de uniformidade, mas de unidade na diversidade. Não várias escolas, instituições independentes e isoladas, mas uma escola, articulada em seus vários níveis, graus, modalidades, instâncias de decisão e de realização. Do trabalho, como ação humana, mediada por técnicas e instrumentos cada vez mais desenvolvidos; ação coletiva, consciente, disciplinada, organizada, com valores de cooperação. Educação integral: 1) Educação Intelectual: instrução científica – aquisição dos conhecimentos (estudo metódico da cultura humana). 2) Educação física: formação corporal (ginástica, dança e atividades desportivas); higiene (orientação para a saúde); estética: (desenho, escultura, pintura, música instrumental, canto). 3) Educação Politécnica: relação entre o estudo e o trabalho, como prática social: domínio das bases da indústria moderna, em seu desenvolvimento histórico; uma base sólida de conhecimentos gerais, associada à formação profissional, que não se confunde com a mera instrução para ocupações específicas (4).
4. Instituir a Educação Extraescolar
Lênin insistia que o ensino não se desliga da política. Nos programas escolares os objetivos educacionais, definidos pelo Poder Soviético, eram explícitos: travar a luta contra a burguesia; contribuir para a construção do socialismo.
Principal tarefa: instruir as massas trabalhadoras sobre o que há de mais avançado na produção humana, ajudando-as a superar os problemas herdados do capitalismo e a construir a nova sociedade. Isso não é outra coisa senão o vínculo da Educação com a política revolucionária do proletariado. Desafio: ligar indissoluvelmente cada passo da atividade da escola à luta de todos os trabalhadores contra a exploração. Contradição principal presente na concepção de Educação almejada pelo Poder Soviético: lutar contra a burguesia, sem destruir o seu legado. Ou seja, edificar o socialismo com as forças humanas e os meios materiais herdados das sociedades anteriores.
Todavia, nas condições de imenso atraso da maioria da população em relação a aspectos mínimos de escolaridade, quem detinha os conhecimentos e as técnicas eram as pessoas formadas nos padrões da velha escola, privilégio das classes exploradoras. Impossível abrir mão de docentes e especialistas oriundos dessa formação. Alguns, até simpáticos às novas propostas. Outros, opositores ferrenhos. Eis aí a política na escola. Sem garantia de que os princípios da nova concepção fossem os vencedores. Mas com a oportunidade de apropriação daquilo que, sempre, fora monopolizado, numa escola injusta na difusão do conhecimento (aos burgueses, conhecimento científico; aos proletários, adestramento). Não somente assimilação dos conhecimentos, mas sua apropriação, com espírito crítico – tarefa dificilmente cumprida pela escola, naquelas condições.
Para difundir às massas a nova concepção de educação e de sociedade, criou-se a Educação Extraescolar – que consistia em ações das organizações proletárias: os Sindicatos (de docentes e de outras categorias), a União de Mulheres, as organizações infantis (Pioneiros) e juvenis (Konsommol). Sempre no espírito do coletivismo. Impulsionar a luta (econômica, política e teórico-ideológica) das várias categorias seria tarefa prioritária dos sindicatos, articulados entre si e com as demais organizações.
Colocar a Educação a serviço da Emancipação
Na perspectiva marxista de educação integral, a educação como formação humana, o objetivo maior é a emancipação da humanidade – somente possível na sociedade sem classes, mas que deve ser forjada no socialismo, como longo período de transição da forma mais exacerbada de exploração (o capitalismo) para um regime de tipo superior, sem exploradores e explorados (o comunismo).
Constante preocupação com a educação revolucionária dos comunistas, a formação do homem novo e da mulher nova consiste na luta pela elevação da sociedade humana à maior altura, desembaraçando-se da exploração do trabalho. A instrução pública e a educação extraescolar devem servir a essa luta, promovendo-se o desenvolvimento múltiplo (físico, intelectual, emocional, cultural, ético, estético, técnico, político) de crianças e jovens de ambos os sexos.
Grande desafio da revolução: a emancipação das mulheres. A educação teria de enfrentá-lo por meio de ações voltadas não somente às meninas e moças, mas igualmente aos meninos e rapazes, estendendo-se também aos adultos, homens e mulheres – tendo por objetivos: a) exercer controle social sistemático para superar sobrevivências do passado; b) liquidar o analfabetismo entre as mulheres; c) combinar educação social com educação familiar; d) garantir às mulheres o direito ao estudo; e) enfrentar de modo novo os problemas milenares – conceitos de matrimônio, maternidade e família; papel e tarefas da mulher; direitos e saúde da mulher; sua condição na sociedade.
Avanços se conseguiram no âmbito da propaganda – repercutindo na mudança de discurso (ideias e propostas para se romper com a situação de subalternidade da mulher). Mas, quando confrontados com a vida cotidiana, jovens e adultos (inclusive mulheres) eram flagrados com argumentos e atitudes mais condizentes com valores machistas...
Corroborava-se, assim, a formulação do socialista utópico Fourier, destacada por Engels (s/d, p. 309), na crítica das relações entre os sexos e da posição da mulher na sociedade: “o grau de emancipação da mulher numa sociedade é o barômetro natural pelo qual se mede a emancipação geral.”.
O Legado
Nossa hipótese é de que o desenvolvimento da concepção de escola única do trabalho e os esforços empreendidos para sua edificação constituem o principal legado educacional da Revolução Russa de 1917.
Para a União Soviética, com certeza. E, por seu exemplo, para os demais países que viveram (e vivem) a experiência de construção do socialismo, com todos os problemas peculiares a períodos de transição de um regime centrado no capital para uma sociedade centrada no trabalho. Neles, a educação tem merecido lugar de destaque, jamais encontrável em países capitalistas.
Nesse legado, destacam-se: a erradicação do analfabetismo; a elevação do nível de conhecimento das massas; a formação de cientistas e profissionais com alta capacidade tecnológica; o alto desenvolvimento das forças produtivas.
Para além da URSS (e de outros países socialistas), o legado está nos ensinamentos para a luta do proletariado em todos os países, ontem e hoje: contribuições a outros autores para se pensar e repensar a Educação ainda nos marcos do capitalismo.
A defesa da Escola Unitária e da Politecnia tem alimentado a luta pela educação pública, gratuita, universal, laica e de qualidade nos movimentos e fóruns de educadores, estudantes e trabalhadores de várias categorias, em âmbito internacional e em diversos países. No Brasil, uma importante expressão desse legado é a Pedagogia Histórico-Crítica, cujo principal elaborador é o filósofo e educador Dermeval Saviani (2003).
Problemas relacionados à formação integral das jovens gerações, ao trabalho como princípio educativo, à inexorável relação entre educação e política são frequentemente (re)colocados a cada reforma educacional, como assistimos, hoje, no Brasil, no enfrentamento às propostas e medidas de cunho neoliberal.
São “clássicos” problemas educacionais, que permanecem enquanto não são criadas as condições, objetivas e subjetivas, para sua solução.
*Nereide Saviani é doutora em História e Filosofia da Educação pela PUC-SP e diretora de Formação da Fundação Maurício Grabois.
Notas(1) Este artigo consiste em versão resumida de O Legado Educacional da Revolução Russa, capítulo do livro 100 anos da Revolução Russa: legados e lições, organizado por Adalberto Monteiro e Osvaldo Bertolino e publicado pela Editora Anita Garibaldi, em parceria com a Fundação Maurício Grabois. São Paulo, 2017, p. 81-104.
(2) O trabalho de “garimpagem” nos 55 volumes das suas Obras Completas de Lênin nos é poupado pela consulta a algumas coletâneas (LENINE, 1977; LÊNIN, 1981).
(3) Importante medida foi a multiplicação das bibliotecas e livrarias, presentes nas cidades e nas áreas rurais, em fábricas, usinas, fazendas, sindicatos, clubes e quaisquer organizações, chegando a altíssimos índices de frequência às salas de leitura, empréstimos de títulos das bibliotecas circulantes e aquisições de obras nas livrarias. Além de jornais, distribuídos diariamente aos trabalhadores.
(4) Os programas escolares incluem o conhecimento dos inúmeros tipos de indústria: condições de seu desenvolvimento; matérias-primas e sua produção/aquisição; relação com a natureza; relações técnicas e sociais de produção; características dos métodos de produção e perspectivas de seu aprimoramento; contribuições da ciência e da tecnologia; o desenvolvimento humano (condições de trabalho, segurança, seguridade, remuneração, jornada, saúde dos trabalhadores e da população em geral); trabalho infantil e trabalho da mulher; relações internacionais de produção; circulação e repartição dos bens; profissões/tarefas envolvidas na produção, condições de desempenho e necessidades formativas; organização do trabalho nas fábricas e sua relação com a organização do trabalho em geral; história e desenvolvimento atual do movimento operário e sindical (na URSS e nos países capitalistas), entre outros fatores. (KRUPSKAYA, s/d; LENINE, 1977: LÊNIN, 1981; LUNATCHARSKI, 1988; PROGRAMAS OFICIAIS, 1935 – vários trechos)
REFERÊNCIASENGELS, F. Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. Em: Obras Escolhidas de Marx e Engels. São Paulo, Alfa-Ômega, vol. 2.
KRUPSKAIA, N. Acerca de la Educacion Comunista – Articulos y Discursos. Traducido del ruso por V. Sanchez Esteban. Moscou: Ediciones en Lenguas Extranjeras, s/d.
LENINE, V. I. Sobre a Educação. Lisboa: Seara Nova, 1977. [2 vols.]
LÊNIN, V. I. La Instrucción Pública. Moscou: Editorial Progreso, 1981.
LUNATCHARSKI, A. Sobre a Instrução e a Educação. Artigos e Discursos. Tradução de Filipe Guerra. Moscou: Edições Progresso, 1988.
MARX, K.; ENGELS, F. Crítica da Educação e do Ensino. Introdução e notas de Roger Dangeville. Lisboa: Moraes Editores, 1978.
PROGRAMAS OFICIAIS. A Educação na República dos Sovietes. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935.
SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 8ª ed. revista e ampliada. Campinas (SP): Autores Associados, 2003.
SAVIANI, N. O legado educacional da Revolução Russa. In: BERTOLINO, O.; MONTEIRO, A. (orgs.). 100 anos da Revolução Russa: legados e lições. São Paulo: Anita Garibaldi/ Fundação Maurício Grabois, 2017, p. 81-104.