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Internacional

Edição 147 > Trump e suas máscaras para políticas externa, comercial e migratória

Trump e suas máscaras para políticas externa, comercial e migratória

Cézar Xavier
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Seminário, em São Paulo, reúne estudiosos das relações internacionais para analisar as contradições cada vez mais evidentes da retórica e do circo montados por Trump para seduzir seu eleitorado, com o neoconservadorismo que apenas recrudesce ainda mais o neoliberalismo financeiro no mundo

No dia 29 de março, a Fundação Perseu Abramo (FPA), o Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI), o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e a Fundação Friedrich Ebert – Brasil (FES) realizaram o seminário “Impactos da Eleição de Trump para a América Latina e o Brasil”. À atividade, coube analisar e discutir os possíveis impactos nas relações entre os EUA e América Latina – com foco no Brasil – da política externa e das medidas implementadas pelo governo de Donald Trump, além de avaliar os reflexos dessas políticas na ordem econômica e geopolítica internacional e suas consequências para a região.

EUA e a atual irrelevância latino-americana

Katharina Hofmann, da FES, abriu o evento. O primeiro painel teve como tema o impacto do governo Trump nas relações internacionais e contou com as presenças de Marco Aurélio Garcia, ex-assessor especial dos presidentes Lula e Dilma; Rafael Ioris, professor da Denver University, nos Estados Unidos; Sebastião Velasco, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do INEU; e Iole Ilíada, membro do Conselho Curador da FPA e do GR-RI, coordenando o debate.

Katharina Hofmann, da FES, foi responsável pela abertura, pontuando as diferenças históricas entre as relações dos EUA com seu país, a Alemanha, e com a América Latina. Desde a guerra do Vietnã, passando pela recusa de Hebert Schroeder de apoiar a invasão do Iraque, a Alemanha se distancia das relações com os EUA, assistindo estupefata a ascensão de Trump. 

Na América Latina, por sua vez, as relações se estabeleceram fortemente em função da guerra fria, se intensificando com “a destrutiva e desumana” guerra às drogas. Acordos para negociações de recursos extrativos como o petróleo também amarram países como o Brasil aos EUA. 
Quanto ao tema do seminário, para Hofmann, Trump aproveita-se dos medos da população americano para defender um mundo menos complexo, organizado em estados nacionais comandados por homens brancos. “Não podemos ignorar o Trump porque ele está contra nossas normas cívicas, humanas e liberais”.

Hofmann afirma que Trump não deve ser pensado como caso isolado, pois representa um modelo de político que ganha cada vez mais espaço pelo mundo: o político que nega a política. Segundo ela, Trump é um empresário que usa as redes sociais para mentir e acusar a mídia crítica de ser mentirosa; que lucra muito com o capitalismo global, mas se afirma contrário a sua dinâmica; que diz que não é político; que não aceita críticas e que ataca valores democráticos.

Para Hofmann, o que mais preocupa não é Trump, mas os inúmeros não-políticos, empresários, bilionários, que surgem por todo o mundo para governar um mundo cada vez mais complexo com respostas simplistas, e promessas de retorno a um passado saudoso. “Não temos nenhuma garantia de que permaneceremos com nossos direitos. A democracia precisa ser defendida a todo instante”, afirmou. Segundo Hofmann, é necessário estabelecer relações não somente entre países que defendem estes valores, como também entre instituições e movimentos engajados nesta defesa.

Rafael Ioris iniciou por apontar as pistas que a relação entre Trump, seus apoiadores e seu partido dão sobre a postura que o novo governo deve manter em sua política externa. Segundo ele, a política externa liberal e subserviente que o governo golpista brasileiro tem encampado tem ainda menos chance de dar certo no cenário internacional que começa a se desenhar. A tendência neoliberal de Temer/Aloysio Nunes está longe de causar resultados positivos diante da visão unilateralista e protecionista que promete Trump. A surpreendente tendência integracionista entre países latino-americanos, liderada por países como México e Chile, não deve ter ressonância na nova matriz ideológica do Itamaraty do PMDB/PSDB.

Ioris deu pistas de “janelas de oportunidade” que o Brasil pode trilhar para construir uma política externa com alguma chance de trazer bons frutos. Para ele, a aproximação com a China tende a dar resultados positivos para o Brasil, com o eventual desinteresse dos EUA pela América Latina. Ele aposta na possibilidade de investimentos chineses em infraestrutura, no posicionamento do Brasil diante dos acordos que busca a União Europeia e os países do Pacífico. 

Na América Latina, a integração estratégica seria fundamental, principalmente do ponto de vista mais amplo que o mero comércio, como questões migratórias ou combate ao narcotráfico. “Embora eu acredite que uma chamada pela integração regional seria algo de grande potencial de frutos para o Brasil, assim como para a região como um todo, não me parece que as atuais lideranças do país, de alguns países-chave da região, estejam à altura do que seria necessário para uma relação dessa natureza”, admite Ioris, considerando que, caso a nova ordem econômica mundial aponte para os estertores da influência raivosa norte-americana no mundo, uma integração latino-americana seria ainda mais importante para negociar os termos dessa nova realidade do capitalismo, assim como uma diplomacia criativa, ousada e corajosa.

Sebastião Velasco entende que é difícil pensar em uma era Trump apenas dois meses após sua posse, mas afirmou que há dois elementos inéditos que podem apontar o que esperar deste novo governo: a relação nada submissa e até de conflito entre o presidente e os caciques republicanos e a complicada relação dele com órgãos do Estado, em especial os de segurança e inteligência. Ele lembrou que Obama teve uma vitória acachapante em todos os âmbitos eleitorais, enquanto Trump ganha no colegiado sem base parlamentar e partidária sólida, algo que tem favorecido um despertar da sociedade americana, como revelam as manifestações.

Diferente do novato Obama, que, ao vencer a enraizada Hillary, acenou com várias concessões ao Partido Democrata, incorporando propostas e até mesmo a adversária em seu governo, Trump, por sua vez, totalmente outsider e instrumentalizador do Partido Republicano, trata os caciques deste partido a tapas e pontapés. Do mesmo modo, mantém relação atritada com o núcleo duro da inteligência e da segurança governamental e com a imprensa, tendo feito um discurso de posse desrespeitoso com seus antecessores, deixando o mundo estupefato. No dia seguinte, as manifestações multitudinárias de rejeição ao novo presidente tomaram as principais cidades do país.

Para Velasco, a suposta relação diferenciada com o presidente russo, Vladimir Putin, entre outras posturas peculiares de Trump na política externa, conforme prognóstico dos próprios especialistas russos, não devem ter consequência, devido ao bloqueio do Congresso, da burocracia governamental e do establishment. Aliás, esta relação com a Rússia tem sido o principal indício de suspeição para um eventual pedido de impeachment já em andamento. Velasco observa um início de governo tumultuado como não se via há muito. Trump, por sua vez, suspeita de seus serviços de inteligência que estariam agindo de forma inadequada, vazando informações de cidadãos americanos.

Segundo Velasco, o governo e a direita estadunidense estão sendo disputados por dois grupos, como revelou o fracasso da tentativa de derrubar o programa de saúde de Obama, quando setores republicanos votaram contra Trump. E, para aumentar a instabilidade, são constantes os movimentos pelo impeachment de Trump. “Eu não sei quanto vai durar a era Trump...”

Marco Aurélio Garcia começou por lembrar da total incapacidade dos analistas, não só os brasileiros, de prever a possibilidade da eleição de Trump. Para ele, é importante que os intelectuais estudem o “fenômeno Trump” para além das relações internacionais, já que tantos ficaram perplexos e não previam algo dessa magnitude. Ele alertou para a necessidade de não cairmos na armadilha de personificar demais o governo pela figura peculiar e, claramente, clown, do empresário americano, embora isso traga aspectos subjetivos ao caráter do governo.

Garcia concordou com Velasco sobre a imprevisibilidade do novo governo, mas afirmou uma tendência estadunidense a combater multilateralismo e reforçar o protecionismo. Ele também concorda que, culturalmente, os americanos têm um forte viés de esquerda, expresso nas lutas identitárias, que também explica a ascensão de Trump. Para ele, isto é uma lição para as esquerdas. “Não significa que temos que deixar de defender LGBT, aborto e outros temas identitários, mas que precisamos voltar a defender os temas antigos da luta de classes”, ressaltou.

Quanto aos impactos sobre o Brasil, Garcia afirmou que hoje falta ao país uma política externa, qualquer que seja, mas mesmo assim lembrou de algumas estratégias que deram certo antes e podem dar certo agora. Em sua opinião, a política externa faz parte de um projeto nacional de desenvolvimento. “Quando um governo não tem projeto nacional de desenvolvimento, como é o caso do atual, há uma ação deliberada de erodir essa política externa e dar a ela, quando muito, uma dimensão utilitária e particular”, definiu.

Garcia observa que o eleitorado americano sempre acreditou que, em termos de política externa, qualquer candidato, republicano ou democrata, faz uma gestão similar, com poucas inflexões de diferença. Para ele, com Trump, essa noção deve se modificar. É o que revelam à rejeição ao multilateralismo, por exemplo. “Quem tivesse ficado adormecido durante 30 anos e acordasse agora, toparia com essa realidade extraordinária: o presidente dos EUA é protecionista e nacionalista e quem defende o livre-comércio é o presidente da China”, comparou, provocando risos.

Garcia defende que a América Latina não deve ter incidência sobre a gestão geopolítica internacional dos EUA. A América Latina, e o Brasil em particular, devido às transformações extraordinárias que estamos assistindo, nos deixamos de ser uma ameaça geopolítica, algo que fomos durante os primeiros quinze anos deste século”, disse ele, referindo-se à eleição de presidentes progressistas e a constituição de instituições de integração regional, como a Unasul. A participação na configuração dos BRICS e a circulação do Brasil internacionalmente são um exemplo desta ameaça geopolítica, embora não houvesse um caráter antiamericano na política externa brasileira. 

No entanto, a pressão silenciosa da política externa americana se dá no âmbito do business, de acordo com o ex-ministro. Para ele, os ataques e desmontes da Petrobras, das empreiteiras e frigoríficos, não por acaso, os setores mais competitivos da economia brasileira, são um evidente exemplo desse movimento pouco denunciado e estudado. “A experiência demonstra que, empresas estrangeiras compram essas multinacionais brasileiras e, imediatamente, as fecham, eliminando a competição.”

No entanto, Garcia não acredita que as relações bilaterais voltem a ser boas, como foram nos governos recentes, por não haver equilíbrio. “Relações servis não são sólidas”, declarou, relatando cooperações respeitosas havidos entre Colin Powell e Celso Amorim para dialogar com a Venezuela, que não são mais possíveis com a política externa ideologizada dos tucanos. 

Unilateralismo como ordem mundial

O segundo painel discutiu comércio e integração regional. Participaram da discussão Jane Kelsey, professora da University of Aukland, na Nova Zelândia; Michelle Ratton, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV); Thomas Palley, membro do Economics for Democratic & Open Societies Project, nos Estados Unidos; e Jocelio Drummond, da Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (Rebrip), coordenando o debate.

Michelle Ratton começou tentando apontar o que já está claro que deve mudar nas regras e na postura do governo estadunidense quanto ao comércio internacional, sobretudo no que tange a acordos comerciais. Para ela, Trump descredita em discurso e prática as regras, instituições e acordos internacionais ao romper com o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP), ameaças ao NAFTA (acordo com Canadá e México) e ignorância à OMC (Organização Mundial do Comércio). Isto aponta para um novo modelo de hegemonização comercial americana, rompendo com as regras que regiam o tema até então. Ela, no entanto, salienta que no que refere ao sistema financeiro, Trump não altera nada, na realidade, enfatiza ainda mais a desregulamentação dos bancos.

Segundo Ratton, uma marca do novo governo deve ser um tipo de protecionismo que deve levar parte do setor produtivo do país a renacionalizar parte de seu capital e restringir a mobilidade da força de trabalho. Além disso, oferecer menos crédito a outros países, o que tende a diminuir a quantidade de dólares circulando no mercado internacional. Para ela, há também elementos que não devem mudar, como a total abertura para o capital financeiro.
De acordo com a pesquisadora, a desarticulação do Brasil com o bloco regional e desinteresse das pautas comerciais do governo anterior, coloca o país refém das negociações impostas pela União Europeia e Estados Unidos, restando-lhe inserir-se nos debates com a Ásia e países do Pacífico. Um xadrez que pouco favorece um país que desarticulou sua política externa e a integração regional que o fortalecia geopoliticamente.

Jane Kelsey tratou da turbulência internacional na qual os acordos comerciais multilaterais, como o TPP, têm sido firmados. Segundo ela, antes mesmo de Trump decidir que não apoiaria o TPP, diversos países discordavam do tratado, motivo pelo qual em boa parte as expectativas sobre a negociação foram transferidas para o Acordo sobre o Comércio de Serviços (TISA), que também gerou grande desconfiança na comunidade internacional e desmoronou. 

Para ela, o Brasil foi feliz em se manter fora dessas negociações que envolvem favorecimento ao comércio de produtos industrializados, controle de propriedade intelectual em fármacos, controle sobre a privacidade de cidadãos e empresas, liberdade ainda maior para investidores e o sistema financeiro especulatório, algemando a capacidade soberana dos governos nacionais gerirem o comércio internacional. Quesitos que, em alguma medida, afetavam até mesmo os empregos americanos, portanto levaram Trump a questionar o acordo, assim como Obama já não obtinha apoio para o TPP.
Jane monitora textos de tratados e observa como trechos do TPP aparecem em outros acordos por todo o mundo, embora, com a crise econômica mundial, os países estejam mais apáticos e paralisados sobre o assunto, do que dispostos a definir posição. 

Segundo ela, a China propõe negociações próprias desinteressadas dos imperialismos americanos e europeus, embora não sejam necessariamente benignas para países emergentes. “São apenas diferentes, mais preocupadas em fortalecer a classe média chinesa e seu mercado interno”, diz. Existe uma agenda de investimentos internacionais em infraestrutura para formar uma cadeia produtiva que favoreça a China. A China não estaria mais preocupada em exportar produtos baratos, mas atrair investimentos, e, portanto, proteger investidores interessados em financiar a economia daquela potencia asiática. Um objetivo que deve se chocar com os interesses de Trump, disposto a repatriar investimentos e dificultar a circulação de dólares no resto do mundo.

Jane diz que, nesse cenário, é mais fácil atacar os EUA do que a China, sempre vista como fonte de investimento e mercado potencial. Para ela, a pauta que deve dominar a economia mundial e que traz novas incertezas para os países é a chamada quarta revolução industrial, com a uberização da economia global, baseada em plataformas globais digitais não centradas em nenhuma economia nacional. “Estratégias de desenvolvimento econômico nacionais já eram. Essa nova agenda vai levar a perturbações massivas para os sindicatos, os trabalhadores e os países. Não sabemos como a China ou o Brasil vão se posicionar nesse debate em dezembro”, antecipa ela, citando o “ínterim” de Gramsci: o velho está morrendo e o novo está nascendo. “Cabe a nós garantir que a novidade seja progressista e não um retrocesso”, concluiu.

Para Palley, é difícil prever qual será a política econômica de Trump voltada ao mercado externo, entretanto, algumas decisões tomadas já no início do governo apontam caminhos, como a quebra de acordos internacionais (desejados por empresários estadunidenses de alguns setores), a mudança de postura em relação à China e o fortalecimento do protecionismo. Palley afirma que o ataque ao multilateralismo e o fortalecimento de um unilateralismo é uma tendência do pensamento neoconservador, que encontra em Trump seu principal expoente político.

Thomas Palley aponta as contradições de Trump naqueles primeiros 70 dias de governo, tornando seminários como esse fundamentais no mundo todo. Tem uma política econômica clara para seu país, mas uma agenda comercial e financeira internacional controversa, que se confronta com os interesses internos dos EUA. 

Para ele, o êxito político de Trump foi baseado num ataque duplo ao establishment: ele aumentou a agenda dos valores culturais e liberais dos republicanos com um ataque nacionalista, racista e autoritário. “Esse extremismo o empurrou para a frente da fila republicana nas primárias, que é quando os eleitores republicanos mais extremistas se engajam”, explica. 

Por outro lado, ele capturou a crítica progressista à economia neoliberal, especialmente a crítica à globalização. Trump explorou o descontentamento com as três décadas de economia americana prejudicando os eleitores de classe trabalhadora, fingindo-se de crítico ao neoliberalismo, ao atacar o Nafta, a China e ao TPP, enquanto os democratas apoiavam tudo isso. Um personagem contraditório ao se afirmar apoiador dos trabalhadores pobres, algo que vai contra seus interesses de empresário bilionário. 

“Um jogo de bate a assopra, em que Trump critica os efeitos nocivos da globalização neoliberal para os mais pobres, no entanto, em vez de reformar o neoliberalismo, ele incita à xenofobia, ao racismo e ao autoritarismo, o que só intensifica ainda mais esse sistema econômico”, salienta. 

As realidades da política econômica de Trump estão se tornando mais claras, na opinião de Palley, com todas as evidências apontando que ele vai intensificar as políticas neoliberais, piorar as desigualdades de renda, aumentando o poder das empresas e das finanças, intimidando os trabalhadores e sindicatos. A equipe de Trump é dominada por Wall Street, ex-funcionários da Goldman Sachs; ele vai cortar impostos dos muito ricos e das grandes empresas, com propostas orçamentárias que cortaram todos os financiamentos, a não ser defesa; enquanto todos os regulamentos financeiros, ambientais e trabalhistas, todas as formas de regulamentação estão sob ataque.

“A política econômica internacional é a única área onde a máscara e a fantasia continuam para equilibrar as contradições entre interesses políticos e econômicos em conflito. Devido a sua identidade com as grandes empresas e o capital, devemos esperar muita retórica e circo, sem grandes mudanças no sistema internacional”, garante Palley, citando os ataques sem consequências de Trump à Ford e outras indústrias para preservar sua fantasia, do mesmo modo como disse que atacaria a depreciação da moeda chinesa no primeiro dia, e não o fez, pois isso favorece as empresas americanas. O mesmo ocorre com os ataques ao Nafta. 

Numa abordagem bastante sombria, Palley destaca a hegemonia neoconservadora que avança nos EUA, propondo ruptura unilateral com todos os organismos regulatórios internacionais. Segundo ele, os neocons rejeitam tudo que permita o surgimento de um poder como a União Soviética se confrontando com os EUA. Defendem a instalação de bases militares em todo o mundo e a liberdade absoluta de intervenção em assuntos nacionais de qualquer país sem qualquer objeção. “Não esperem que os piores capítulos do TPP deixem de ser a base das negociações bilaterais dos EUA”, alertou.

Palley questiona a abordagem europeia de que Trump seria uma aberração política pontual. Para ele, Trump reflete algo intrínseco e duradouro sobre os EUA. “A sociedade política americana entrou numa era neocon, onde o unilateralismo se tornará a norma. Então, as suposições sobre a ordem liberal internacional deverão ser descartadas e repensadas”, concluiu.

A falácia do estrangeiro como ameaça

O terceiro e último painel do dia discutiu migrações e trabalho. Participaram do debate Ana Avendaño, da Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais (AFL-CIO); Deisy Ventura, professora da Universidade de São Paulo (USP); Kjeld Jakobsen, consultor em cooperação e relações internacionais; e Rubens Diniz, membro do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois, coordenando o debate.

Ana Avendaño lembra que o império de Donald Trump foi construído a partir de três elementos: a herança, recebida após a morte de seu pai, a superexploração de trabalhadores e a sonegação de impostos. Ana discordou dos palestrantes anteriores, que propõem analisar Trump unicamente como fenômeno político e não como indivíduo: uma pessoa racista, sexista, xenófoba e que se gaba de todas estas características, o que o torna muito perigoso tanto para os EUA como para o mundo. Segundo ela, não se está discutindo democratas e republicanos, mas o trumpismo, uma cultura de ódio perigosa pra democracia americana. “Quantos mais rápido o impeachment, melhor!”

Ana lembrou que o perfil médio dos eleitores de Trump é de trabalhadores brancos apavorados com o desemprego e que tentam apontar culpados para a situação de crise, e o combate a isso deve orientar a política sindical americana. Embora não tenha a maioria dos votos, Trump teve uma pequena margem de votos a mais nos colégios eleitorais de estados como Wisconsin, Michigan e Pensilvânia, os estados mais sindicalizados, e os mesmos onde o esquerdista Bernie Sanders ganhou de Hillary Clinton nas primárias democratas. 

Ana denunciou a postura de sindicatos que evitam atacar Trump, pois consideram que seus associados votaram nele. Ela contesta essa narrativa, já que uma parcela grande da população americana não elege, como presidiários, pessoas sob condicional, pessoas não documentadas (imigrantes) e não cadastradas (29%) para votar, já que o voto não é obrigatório. Mulheres, negros e muçulmanos também rejeitam Trump, mas o silêncio dos democratas fez com que o presidente eleito tivesse a posse sobre os argumentos e a narrativa contra os imigrantes.

Ela, no entanto, tem uma percepção otimista sobre a intervenção que a chamada “geração do milênio” pode ter neste governo, como teve durante o governo Obama, mesmo não sendo eleitores. Sua atuação nas mídias sociais é marcada por uma agenda de esquerda, sendo que muitos são filhos de imigrantes e não falam apenas inglês. Ana lamenta que a esquerda tradicional tenha rejeitado e ignorado suas estratégias radicalizadas que levaram Obama a recuar da deportação de milhares de imigrantes, após dizer que não tinha suporte constitucional para fazer isso.

Deisy Ventura tentou interpretar o que significam as primeiras ações de Trump, a partir de uma percepção da aplicação de uma “xenofobia de governo”, o que significa uma série de políticas públicas com o objetivo de negar os direitos das pessoas estrangeiras ou descendentes, e que, de forma sutil, vai estimulando a xenofobia contestatária, quando a declaração de guerra ao estrangeiro é abertamente declarada. 

Ela mencionou a Hungria ou o Ministério da Identidade Nacional da França, durante o governo Sarkozy, como exemplos dessa xenofobia de Estado, embora considere os EUA um fenômeno de outra dimensão ao assumir esse tipo de política. Na França, a candidata Marine Le Pen fala abertamente no pressuposto de uma “guerra civil” entre franceses e estrangeiros, que é ignorada pelo “frouxo” governo socialista. Em sua defesa, a esquerda nega a existência de uma guerra civil, reforçando ainda mais o vocabulário de um conflito aberto entre franceses e estrangeiros.
Vão se naturalizando os charters lotados de estrangeiros sendo deportados, assim como a proliferação dos campos de estrangeiros refugiados esperando por deportação ou pela entrada no país e a criminalização da ajuda a refugiados ou imigrantes ilegais. “Sem se utilizar da linguagem racista da extrema direita, e sem incentivar o ódio, governos europeus vão, serenamente, transformando os estrangeiros em um problema a ser resolvido, seja do ponto de vista do mundo do trabalho ou da segurança pública”, indica ela. 

A pesquisadora apontou diversos atos de Trump no sentido de retomar ou reforçar privilégios de alguns grupos, demonizando as pessoas que não se enquadram no modelo de cidadão que o presidente defende. Ela mostrou que os deslocamentos migratórios mantém uma média histórica, mesmo diante dos deslocamentos forçados por conflitos armados. Também mostrou que a Europa não é o continente mais procurado, mas países em desenvolvimento, como  Líbano, Turquia, Irã, Paquistão e Etiópia, que recebem cerca de um milhão de refugiados cada, revelando uma visão distorcida do êxodo migratório no Ocidente. “Europa e EUA sequer assumem suas responsabilidades em relação ao papel que desempenham nos conflitos armados que representam esse deslocamento migratório”, acusou.

Deisy lembrou também da força das palavras que utilizamos diariamente que não dão conta de significar a complexidade política: “se nos referimos ao momento histórico em que vivemos como crise dos refugiados ou crise das migrações, como vemos diariamente nos jornais, então somos xenófobos”. Ela sugere o uso de termos sem a conotação negativa, assim como houve um movimento para evitar o termo imigração “ilegal”.

Kjeld Jakobsen iniciou sua fala elencando as novas políticas de migração estadunidenses, recrudescendo o desrespeito aos direitos dos imigrantes no país e estimulando a narrativa da ameaça estrangeira. Ele mostrou que, dentre os muçulmanos envolvidos no ataque às torres gêmeas, a maioria era de países aliados dos EUA (e de Trump), como Arábia Saudita e Emirados Árabes, assim como do Egito. Talvez, apenas um dos terroristas seria de um dos sete países que Trump proibiu a entrada no país nesse início de governo. Para ele, o discurso da ameaça terrorista é uma falácia para enganar americanos em pânico.

Ele seguiu mapeando as origens e o perfil das pessoas que migram para os EUA, demonstrando a falácia da ameaça aos trabalhadores brancos. A maior parte da imigração se destina a estados agrários dos EUA, ou à empregos na construção civil, serviços domésticos ou de baixa qualificação, rejeitados pelos americanos brancos. Bons empregos na indústria não estão disponíveis para imigrantes não documentados e sem qualificação para eles. Jakobsen também imaginou o impacto do retorno de milhões de imigrantes para países com altas taxas de desemprego, como El Salvador, México ou Brasil, conforme promete Trump.

Assim, não há qualquer sustentação ao argumento de que imigrantes supostamente estariam tomando os empregos nas indústrias; e que deve nos preocupar o risco de perseguição e deportação, desrespeitando as relações constru das por pessoas que migraram e que vivem nos EUA há anos, desrespeitando qualquer perspectiva de dignidade.

* Cézar Xavier é jornalista, integra a equipe do portal Grabois e é colaborador da revista Princípios.

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