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Brasil 2016: mecanismos políticos e ideológicos do golpe conservador
Os recentes acontecimentos na vida política brasileira devem ser fonte de reflexão para os comunistas e as forças democráticas e de esquerda, seja no Brasil, seja na América Latina – cujas tendências o país segue, confirma e desenvolve –, seja em todo o mundo. Embora a situação encontre-se ainda em desenvolvimento, já é possível registrar que, após intensa e duradoura batalha política, o país vivenciou uma inflexão conservadora. Avaliar as razões dessa inflexão é tarefa incontornável à agenda de reflexões teóricas que se impõe, neste momento, às forças progressistas. Desse labor podem surgir importantes lições para a nova luta pelo socialismo que brota das entranhas do século XXI

A viragem conservadora culminada no golpe parlamentar que encerrou precocemente o segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff teve causações objetivas e subjetivas. Entre as objetivas, destaque-se a crise econômica mundial que, depois de uma primeira onda entre os anos de 2009 e 2010 – contornada de maneira bem-sucedida com a adoção de políticas anticíclicas –, voltou a se abater com força sobre o país a partir de 2014. Por outro lado podemos apontar, entre as causas subjetivas da crise, elementos de caráter político e ideológico. Este artigo procura debruçar-se mais diretamente sobre este segundo conjunto de fatores.
Crise de hegemonia
A esquerda e as forças progressistas vivenciam no Brasil uma crise de sua hegemonia política e ideológica, a qual possuía, há até bem pouco tempo, relativa estabilidade e solidez. É este o conteúdo concreto daquilo que os meios de comunicação locais têm chamado de crise política. Cumpre analisar os fatores que levaram à corrosão dessa hegemonia. Eles devem ser buscados, de saída, na atividade enérgica dos setores conservadores e reacionários, que conseguiram impor dura resistência ao processo transformador iniciado em 2002, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República.
Como teorizava o pensador marxista Antonio Gramsci (1977), situações de crise política prolongada atestam a existência de contradições insanáveis que amadureceram na base infraestrutural de uma sociedade. Revela-se, nesse caso, a operação de forças políticas interessadas na conservação do status quo, isto é, na defesa das condições sociais e políticas garantidoras de seus privilégios. Essas forças buscam, por todos os meios, se não superar a crise a partir de sua perspectiva e seus interesses, pelo menos saná-la dentro de certos limites políticos aceitáveis.
É característica desse tipo de crise a falência total ou parcial do sistema político-partidário, que caduca e se descola dos interesses das classes ou frações de classe que deveria representar. Isso pode acontecer de muitas formas. Em todo caso, abre-se espaço para a atuação política de outros tipos de instituições, estatais ou paraestatais. Reforça-se, dessa maneira, o poder da burocracia, da finança, dos meios de comunicação e de toda uma série de organismos dotados, em geral, de maior estabilidade e permanência. Nas palavras de Gramsci,
“A certo ponto de sua vida histórica os grupos sociais se destacam de seus partidos tradicionais, isto é, os partidos tradicionais naquela dada forma organizativa. [...] Quando essas crises se verificam, a situação imediata torna-se delicada e perigosa, porque o campo é aberto às soluções de força, à atividade de poderes sombrios representados pelos homens providenciais ou carismáticos. Como se formam essas situações de contraste entre representantes e representados, que do terreno dos partidos (organizações partidárias em sentido estrito, campo eleitoral-parlamentar, organizações jornalísticas) reflete-se em todo o organismo estatal, reforçando a posição relativa do poder da burocracia (civil e militar), da alta finança, da Igreja [...]- Em cada país o processo é diverso, se bem que o conteúdo seja o mesmo. E o conteúdo é a crise de hegemonia da classe dirigente [...].” (1977, pp. 1602-1603)
Os aspectos descritos por Gramsci confirmam-se dramaticamente no caso brasileiro. Cabe sublinhar que a resistência aos avanços democráticos jamais teria sido possível apenas por meio dos partidos conservadores tradicionais. Não se trata de que esses partidos deixaram de representar os interesses das camadas dominantes. Eles simplesmente mostraram-se impotentes para, operando dentro do jogo político tradicional, realizar o objetivo maior das elites conservadoras: deter o processo de mudanças estabelecido pelos novos atores sociais e políticos alçados ao poder central da República em 2002. Dada a relativa solidez da hegemonia democrática e progressista, foi necessário às forças conservadoras mobilizar uma multiplicidade maior de instrumentos, além daqueles confinados ao campo da política eleitoral e partidária.
Os mais importantes dentre esses instrumentos foram cooptados dentro da própria máquina estatal. É o caso da Polícia Federal, do Poder Judiciário e do Ministério Público, utilizados em investigações seletivas contra a corrupção, a exemplo da chamada operação “lava-jato”, planejada para golpear e desmoralizar o campo político de esquerda. Outros segmentos, que poderíamos qualificar como paraestatais – a exemplo dos meios de comunicação, que no Brasil, como em outros países, são concessões públicas operadas por corporações privadas –, forneceram a visibilidade e o respaldo político responsáveis por transformar a “lava-jato” em um autêntico poder paralelo. Casas parlamentares conservadoras, eleitas com forte influência do poder econômico, completam o leque de instrumentos institucionais acionados para dar combate à hegemonia das forças progressistas.
A burocracia a serviço da ordem
Podemos afirmar que, no caso brasileiro, a composição social e política do governo entrou em choque com o caráter de classe do Estado. Isso se tornou possível com a mobilização, para finalidades diretamente políticas, de setores da burocracia estatal. Ao colaborar para a desmoralização das instituições políticas, o discurso anticorrupção repisado pela mídia corporativa abriu caminho a essa finalidade. Percebendo-se impossibilitadas de retomar o poder pelo caminho tradicional – a disputa eleitoral-partidária – as forças de direita buscaram um atalho: a substituição da política pela tecnocracia.
É nesse momento que, por meio do debate ideológico travado junto à sociedade, os meios de comunicação elevam o mérito acima da política. A política é “suja”; o mérito é “glorioso”. Corporações profissionais – policiais, juízes, procuradores, auditores, gestores, jornalistas – passaram a ditar os rumos do jogo político. O concurso público sobrepôs-se ao voto. A assim chamada “classe política”, que deveria ter a seu serviço a tecnoburocracia do Estado, terminou a reboque dela. Evidentemente, esse processo não se realiza de maneira tácita. São inúmeras as contradições, como vemos na reação crescente dessa mesma “classe política” – incluindo políticos do bloco conservador – ao que consideram “exageros” da operação “lava-jato” e de empresas jornalísticas.
Essa realidade traz à ordem do dia a reflexão sobre as camadas burocráticas, em particular aquelas que compõem a máquina do Estado. O tema não se encontra ausente da literatura marxista, como podemos depreender das assertivas abaixo, anotadas por Gramsci em seus Cadernos do Cárcere:
“O fato de que no desenvolvimento histórico das formas políticas e econômicas se tenha formado o tipo do funcionário ‘de carreira’, tecnicamente adestrado ao trabalho burocrático (civil e militar) tem um significado primordial na ciência política e na história das formas estatais. Trata-se de uma necessidade ou de uma degeneração em face do autogoverno (self-governance) como pretendem os liberais ‘puros’- É certo que cada forma social e estatal tem tido um seu problema dos funcionários, um seu modo de impostá-lo e resolvê-lo, um seu sistema de seleção, um seu tipo de funcionário por educar.” (1977, p. 1632)
Qual a real natureza da atividade desempenhada pelos setores burocráticos da máquina estatal- Como podem ser definidas suas relações com o campo político, de um lado, e com as classes sociais, de outro- Em comentário à obra de Gaetano Mosca, Gramsci mostra como essas relações são por vezes abordadas de maneira pouco clara na ciência política tradicional.
“A questão da classe política, como é apresentada na obra de Gaetano Mosca, torna-se um enigma [...] tão elástica e oscilante é a noção. Às vezes parece que por classe política se entende a classe média, outras vezes o conjunto das classes possuidoras, outras ainda o que se chama a ‘parte culta’ da sociedade, ou o ‘pessoal político’ (a camada parlamentar) do Estado: às vezes parece que a burocracia, também em seu estrato superior, está excluída da classe política, ao passo que deve ser controlada e conduzida pela classe política [...].” (1977, p. 1565)
Como mostra o arrazoado gramsciano, mesmo no pensamento político tradicional a questão da “classe política” surge por vezes misturada e sobreposta, por um lado, ao problema de sua composição social – em larga medida assentada nas “classes possuidoras” e em setores economicamente intermediários (a “classe média”) –, e, por outro, à ação de segmentos profissionais gerados pela divisão social do trabalho, a exemplo de funcionários e intelectuais.
O véu de obscuridade que cerca a questão provém da forma abstrata a partir da qual o Estado é comumente compreendido. A máquina estatal surge, nessa perspectiva, como materialização de uma “razão” situada acima dos homens. Esse tipo de concepção – da qual mesmo parte da esquerda não se encontra inteiramente livre – impede a correta impostação do problema da burocracia, vista muitas vezes como “neutra” ou “republicana”, expressão de uma “racionalidade superior” desprovida de vínculos concretos e de classe. Nada mais equivocado.
A composição de classe do Estado
No estudo da burocracia, deve-se evitar o erro de tomá-la apenas em “ato”. É necessário considerar seus mecanismos de formação e recrutamento, que determinam muito de sua composição social. Ao refletir sobre o assunto, Gramsci conclui que, na sociedade europeia, as classes burguesas têm o hábito de recrutar seus quadros burocráticos junto à pequena e média burguesia rural, cujos filhos teriam, em geral, boa formação erudita.
“[...] Existe em um determinado país um estrato social difuso para o qual a carreira burocrática, civil e militar, seja elemento muito importante de vida econômica e de afirmação política (participação efetiva no poder, seja mesmo indiretamente, por ‘chantagem’)- Na Europa moderna esse estrato pode ser identificado na burguesia rural média e pequena que é mais ou menos difundida nos países de acordo com o desenvolvimento das forças industriais de um lado e da reforma agrária de outro. Sem dúvida a carreira burocrática (civil e militar) não é um monopólio desse estrato social. Todavia esta lhe é particularmente adaptada para a função social que esse estrato desenvolve e para as tendências psicológicas que a função determina ou favorece [...].” (GRAMSCI, 1977, pp. 1605-1606)
Esses estratos da sociedade, uma vez recrutados para o trabalho técnico nas instituições do Estado, não abandonam suas convicções políticas e ideológicas. Ao contrário, valem-se do poder burocrático para a conquista de vantagens e para a realização de suas aspirações de classe, o que pode ocorrer de maneira positiva ou, como destaca Gramsci, negativa (isto é, “por chantagem”).
“Esse grupo social encontra seus limites e as razões de sua íntima debilidade em sua dispersão territorial e na ‘inomogeneidade’ que é intimamente conexa a tal dispersão; o que explica também outra característica: a volubilidade, a multiplicidade de sistemas ideológicos seguidos, a estranheza das ideologias por vezes seguidas. A vontade é dirigida a um fim, mas é retardada e necessita, em geral, de um longo processo para centralizar-se organicamente e politicamente. O processo acelera-se quando a ‘vontade’ específica desse grupo coincide com a vontade e os interesses imediatos da classe alta; não apenas o processo acelera-se, mas manifesta-se de súbito a ‘força militar’ desse estrato, que às vezes, organizado, dita leis à classe alta, ao menos no que respeita à ‘forma’ das soluções, senão também no que tange ao conteúdo. [...] Esse grupo entende e vê que a origem de seus males está na cidade, na força da cidade e por isso entendem ‘dever’ ditar a solução às classes altas urbanas [...]. Nesse sentido deve entender-se a função diretiva desse estrato e não em sentido absoluto; porém, não é pouca coisa.” (GRAMSCI, 1977, pp. 1606-1607)
Quando examinamos as origens sociais dos juízes e procuradores que hoje conduzem a operação “lava-jato”, logo somos levados ao estado do Paraná. Não à toa, o momento político inaugurado com o protagonismo da “lava-jato” é denominado, na imprensa brasileira, “república de Curitiba”. Trata-se de um estado de tradição rural, cuja estrutura fundiária baseava-se, até o passado recente, em pequenas e médias propriedades. Desde seus primórdios, a região é fortemente integrada a São Paulo. Ambos os estados possuem tradição marcadamente conservadora.
É este o background histórico-social que informa o patrimônio intelectual, sensorial e moral das elites burocráticas que conduzem a operação “lava-jato”. Não é necessária nenhuma pesquisa circunstanciada sobre o perfil desses profissionais para perceber seu modo de pensar, suas inclinações, seus tabus. Basta assistir a uma das entrevistas espalhafatosas que costumam conceder a cada indiciamento ou operação deflagrada. São jovens pretensiosos de classe média, com pouco ou nenhum contato com a realidade do povo. Dotados de vasta instrução jurídica, são porém ignorantes em termos de cultura humanística. Desconhecem os reais problemas brasileiros, em relação aos quais se mostram inteiramente descomprometidos. Expõem a todo tempo seus preconceitos e convicções de classe.
Esse etos não se encontra restrito às carreiras da área jurídica. O que temos aqui é apenas uma breve amostragem da composição social e da orientação ideológica de setores da burocracia. Trata-se de realidade facilmente encontrável, embora com gradações diversas, entre jornalistas, médicos, diplomatas, professores universitários, economistas, administradores. O prestígio social dessas categorias contrasta com o descrédito da política e dos políticos. A pergunta que se impõe neste ponto é: como esses setores – ligados, em geral, às camadas economicamente intermediárias – comportaram-se diante do avanço do processo de mudanças inaugurado no Brasil em 2002-
Classe média conservadora:
base social do fascismo
A existência de setores radicalizados da classe média conservadora não é exclusividade do Brasil de nossos dias. O fenômeno apresenta-se em outros países e outros momentos históricos. Retomá-los é uma boa forma de aprofundar, por contraste e semelhança, o entendimento da realidade brasileira atual.
Em seus estudos sobre a experiência fascista na Itália, o teórico marxista peruano José Carlos Mariátegui observa que os ressentimentos deixados pela participação da Itália na 1º Grande Guerra criaram um clima favorável à reação conservadora. A guerra não havia sido, em face dos sacrifícios realizados, um bom negócio para o país. Ela deixou como herança um rastilho de mágoa e decepção. Esse caldo de cultura revelou-se propício à reação, que seria movida, em primeiro plano, pela classe média.
Portando um discurso aparentemente revolucionário – embora na verdade demagógico –, que incluía veleidades de chauvinismo, desprezo pela política eleitoral-parlamentar e até mesmo um vago sindicalismo, os setores economicamente intermediários assumiram protagonismo na vida política italiana. “Seus princípios [...] estavam impregnados da confusão ideológica da classe média que, instintivamente descontente e desgostosa com a burguesia, é vagamente hostil ao proletariado” (MARIÁTEGUI, 2012, p. 22).
A classe média italiana, segundo Mariátegui,
“[...] Sentia-se distante e adversária da classe proletária socialista. [...] Não lhe perdoava os altos salários, os subsídios do Estado, as leis sociais que, durante a guerra e depois dela, havia arrancado ao medo da revolução. [...] Esses maus humores da classe média encontraram guarida no fascismo.” (2012, p. 21)
Obviamente, seria um erro conceber o fascismo como fenômeno inerente apenas à classe média. Ele surge, como alerta Mariátegui, do amálgama de forças díspares que, uma vez dadas as condições objetivas e subjetivas, unem-se para golpear o avanço da liberdade e do progresso social. Entre essas forças encontra-se, sem dúvida, a classe burguesa. Não é que ela possua especial inclinação pelo fascismo. A burguesia prefere o liberalismo econômico, a política eleitoral-parlamentar e as demais instituições da normalidade capitalista. Porém, esse comportamento não existe in abstracto. Depende da realidade social e histórica, bem como das conveniências da luta política. Na Itália da primeira metade do século XX, a burguesia, assustada com as chances da revolução, não apenas estimulou política e ideologicamente, mas financiou e armou as brigadas fascistas, empurrando-as a uma postura truculenta contra a esquerda e as organizações sindicais e trabalhistas. “O fascismo converteu-se, assim, em uma milícia numerosa e aguerrida. Acabou por ser forte tal qual o próprio Estado. E então reclamou o poder” (MARIÁTEGUI, 2012, p. 22).
Podemos afirmar que o fascismo representa, em última instancia, o aborto de um processo transformador. Ele emerge quando avanços sociais atingem certo ponto de maturação, despertando a apreensão de setores sociais que temem a perda de privilégios. Muitos desses setores podem colaborar, em um primeiro momento, com o processo transformador. No entanto, não têm interesse em levá-lo às últimas consequências. Não aceitam uma democracia verdadeiramente popular. Resolvem, então, truncar o processo democrático. Aconteceu na Itália do século XX; acontece no Brasil do século XXI.
E é neste ponto que uma advertência feita por Mariátegui décadas atrás reveste-se de enorme atualidade: “Os socialistas italianos cometeram o erro de não usar sagazes armas políticas para modificar a atitude espiritual da classe média” (2012, p. 22). A observação é intrigante. Que tipo de “armas políticas” poderiam ter sido eficazes em mudar a mentalidade da classe média- A resposta a essa questão nos remete ao tema da transformação das estruturas do Estado.
A transformação das estruturas do Estado
Ao longo do ciclo político inaugurado no Brasil em 2002, o tema da transformação das estruturas do Estado nem sempre foi tratado de maneira consequente. Por óbvio, isso se relaciona ao caráter da força hegemônica no processo. Vivenciamos, no Brasil e na América Latina, os dilemas de um processo transformador conduzido por forças não comunistas e, muitas vezes, não revolucionárias. Nesse contexto, a temática do aparelho estatal foi frequentemente tratada sob a perspectiva de um republicanismo ingênuo. Como se fosse possível impulsionar profundamente a democracia e o progresso social sob a cobertura de um Estado visceralmente devotado à manutenção da ordem burguesa.
No que respeita à transformação das estruturas do Estado, avançou-se mais em países como Venezuela e Bolívia. No caso brasileiro não existiu uma reforma mais ampla do ordenamento político. Tampouco se foi capaz de adotar programas e medidas concretas capazes de impactar o sistema de recrutamento e formação de quadros do Estado. Algumas honrosas exceções podem ser identificadas, como a diplomacia e o sistema de acesso ao ensino superior. Mas o formato tradicional de concursos públicos pouco mudou. Não se pensaram novos critérios, capazes de favorecer a incorporação, na máquina estatal, de quadros oriundos do povo.
Apesar disso, os governos Lula e Dilma Rousseff promoveram ampla recomposição das estruturas do Estado, com investimentos e contratações. Salários foram reajustados; vagas foram abertas; concursos públicos foram convocados para os mais variados setores: auditores, policiais, juízes, professores universitários, diplomatas e demais carreiras técnicas do Estado. Mas de onde provieram os quadros contratados- Salvo raras exceções, os postos do serviço público continuaram nas mãos da pequena burguesia e das velhas oligarquias.
Evidentemente, quando impostado em tese o problema parece ter uma simplicidade que, na prática, não tem. Pois qualquer Estado – ainda mais um que não está voltado à rotina, mas à transformação social – precisa de um corpo técnico de qualidade, capaz de enfrentar desafios de dimensão maior. E é nesse ponto que se coloca o problema do nível cultural das massas populares. Obviamente, o povo brasileiro não possui o mesmo nível técnico-científico verificado nas camadas médias e altas da sociedade. Essa situação torna problemática a incorporação dos setores populares à administração estatal.
Não é possível afirmar que esse dilema se tenha colocado de maneira inédita no Brasil do século XXI. Ele já se apresentava desde a principal experiência revolucionária do século passado. Vários artigos e informes elaborados por Lenin entre os anos de 1918 e 1923 apresentam preocupações comuns com a qualidade do material humano a serviço da construção socialista. A dificuldade colocava-se nos mais variados espaços, seja no chão de fábrica, seja nos empreendimentos agrícolas ou nos sovietes. Mas era no aparato administrativo do Estado que o problema se fazia mais visível e inquietante.
Na visão de Lenin, a edificação de instituições políticas radicalmente transformadas, de uma máquina estatal capaz de levar adiante as tarefas da construção socialista, dependia estreitamente da conquista de novos patamares civilizatórios para o conjunto do povo. Não seria possível transformar o aparelho do Estado sem um vasto trabalho de organização e educação do proletariado e do campesinato. Mas esse trabalho é demorado, jamais seria realizado do dia para a noite. Cabia à nova classe dirigente a tarefa de administrar com a ajuda de homens e mulheres saídos da antiga sociedade, eivados de preconceitos e valores estranhos aos do proletariado.
Colocar os especialistas burgueses a serviço do poder socialista era uma necessidade imperiosa, mas não suficiente. Seria necessário reeducá-los e, ao mesmo tempo, recrutar e formar funcionários nas fileiras da nova classe dirigente, exatamente como, séculos antes, fizera a burguesia. “Os burgueses”, asseverava Lenin,
“Venceram sem saber governar e asseguraram a sua vitória promulgando uma nova constituição, recrutando e selecionando administradores no seio da sua própria classe e começaram a aprender, aproveitando os administradores da classe precedente, e começaram a ensinar os seus, os novos, a prepará-los para a administração, pondo para isso em movimento todo o aparelho de Estado, sequestrando as instituições feudais, admitindo nas escolas apenas os ricos, e deste modo prepararam, durante longos anos e décadas, os administradores recrutados na sua própria classe.” (1982, p. 268)
Tratava-se, portanto, de uma tarefa de dupla face. De um lado, colocar a serviço do povo o aparelho cultural burguês, utilizar o trabalho dos especialistas burgueses, mesmo sabendo que “a maioria desses especialistas está impregnada até a medula da concepção do mundo burguesa” (LENIN, 1982, p. 101). Até por conta disso, outra face do trabalho era igualmente necessária: reeducar as camadas burocráticas, promovendo um amplo movimento de reforma intelectual da sociedade, centrado na necessidade de elevação do nível civilizatório das massas.
Podemos dizer que, no Brasil do século XXI, apenas a primeira parte da tarefa foi cumprida. Por muito tempo a liderança do novo ciclo político conseguiu reorientar o trabalho da tecnoburocracia estatal, direcionando-a a novas prioridades. Porém, as insuficiências verificadas na segunda parte da tarefa – preparar e recrutar o povo para a administração do país – levaram a retrocessos. Em determinada altura, às dificuldades objetivas – trazidas pela crise econômica – vieram somar-se obstáculos de caráter subjetivo, entre eles a oposição de parte significativa dos setores intermediários da sociedade, muitos deles dotados de funções de mando na máquina do Estado.
Muito foi realizado no terreno cultural e ideológico ao longo da experiência de treze anos de governos de esquerda no Brasil. Importantes programas de reforma do ensino básico e superior, além de ações no campo da democratização da cultura, foram levados a cabo. As novas gerações que hoje vão às ruas contra o governo ilegítimo de Michel Temer carregam em seus corações e mentes o espírito democrático e igualitário fomentado no Brasil dos últimos anos. No entanto, não é possível negar que importantes dimensões da batalha cultural foram subestimadas, incluindo-se aí, de maneira destacada, os temas da democratização da comunicação social e da transformação das estruturas do Estado.
*Fábio Palácio de Azevedo é doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP); professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA); diretor de Comunicação e Publicações da Fundação Maurício Grabois.
Este artigo é uma versão condensada do trabalho “Brasil: crise política, golpe conservador e resistência popular - notas sobre o papel da luta ideológica”, apresentado no último dia 21 de outubro no 7th World Socialism Forum, evento realizado em Pequim sob os auspícios da Academia Chinesa de Ciências Sociais.
Bibliografia
BOITO Jr., A. “Lava-Jato, classe média e burocracia de Estado”. Princípios, nº 142, pp. 29-34, mai./jun./jul. 2016.
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Volume terzo – Quaderni 12-29. 2ª edizione. Torino: Giulio Einaudi editore, 1977.
LENIN, V.I. Obras Escolhidas. V. III. Lisboa: Avante!, 1982.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Biología del fascismo. Lanús Oeste: Nuestra América, 2012.
PCdoB. Avançar nas mudanças: documentos e resoluções do 13º Congresso. São Paulo: Ed. Anita Garibaldi, 2014.