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Edição 144 > PEC 241 - “Não haverá perdas para o SUS” – Será?
PEC 241 - “Não haverá perdas para o SUS” – Será?
O governo, a maioria dos parlamentares que ainda estão na base governista e uma parte da grande mídia que defende os interesses do capital financeiro estão afirmando à sociedade em geral que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241/2016 – em tramitação na Câmara dos Deputados – não reduzirá direitos sociais, e muito menos reduzirá os recursos federais para a educação e saúde públicas.

Inicialmente, é importante destacar que nem o governo, nem o senhor deputado Relator da PEC 241/2016, Darcisio Perondi, outrora defensor do Sistema Único de Saúde (SUS) e do fortalecimento do seu financiamento, abriram espaço para um diálogo franco e aberto em torno do tema com aqueles que têm posição contrária. É a volta do pensamento único, agora de caráter ultraneoliberal.
O presente artigo tem como objetivo central rebater alguns dos novos argumentos apresentados pelos defensores da PEC 241/2016, assim resumidos: “não há teto específico para a despesa com saúde, mas sim piso”; “a saúde não perderá recursos, pelo contrário, serão aumentados em 2017 e preservados a partir de 2018”; “as projeções de perdas feitas para o período 2017-2036 desconsideram que nada impede que o Poder Executivo proponha um valor acima do piso a partir de 2018”; “não há qualquer alteração relativa às despesas de estados e municípios com saúde”; e “não se pode considerar somente os gastos públicos, mas também os privados”.
São verdadeiras as seguintes afirmações do governo de que “não há teto específico para a despesa com saúde” e “nada impede que o Poder Executivo proponha um valor acima do piso” a partir de 2018; porém, não é menos verdade que o governo omite muitos aspectos que derrubam essas afirmações inconsistentes à luz dos fatos e da história da saúde pública.
Primeiramente, haverá um teto para o conjunto das despesas primárias mediante correção anual pela variação do IPCA por 20 anos – isto representará a deterioração das condições de vida da população, o que significará a deterioração das condições de saúde da população pelo conceito da Organização Mundial de Saúde. Além disso, em 20 anos, para que saúde e educação recebam recursos acima do mínimo, haveria um limite matemático em termos absolutos para redução de despesas de outras áreas, muitas das quais tendem a pressionar as despesas pelo simples crescimento vegetativo das necessidades e obrigações, como é o caso da previdência social.
O aumento de receita que ocorrerá nos próximos 20 anos não será repassado proporcionalmente para esse conjunto de despesas primárias, o que representará uma integral transferência desse aumento de receita para pagamento de juros e amortização da dívida em prejuízo da população, cujo crescimento está estimado em torno de 1% ao ano. Ou os defensores da PEC 241/2016 pretendem instituir outra PEC definindo que está proibido nascer mais gente do que morrer nos próximos 20 anos-
A série histórica dos gastos federais com o SUS nos últimos 16 anos evidencia que os valores disponibilizados pelas respectivas áreas econômicas de todos os governos que estiveram presidindo o Brasil sempre ficaram próximos dos da aplicação mínima constitucional – exceto a partir de 2014, quando a queda de receita inviabilizou a alocação desses valores pelo nível mínimo, o que não impediu que, nesse mesmo ano, cerca de R$ 3,8 bilhões, de despesas que deveriam ter sido transferidas para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde até 31 de dezembro de 2014, fossem depositados somente no início do ano seguinte e onerando orçamento de 2015. Portanto, não é verdadeira a afirmação de que “não há qualquer alteração relativa às despesas de estados e municípios com saúde”: cerca de 2/3 das despesas federais em saúde são transferências fundo a fundo para esses entes da Federação, sendo que os estados, e principalmente os municípios, aumentaram bastante a alocação de recursos próprios para o financiamento do SUS, não tendo mais margem de ampliação para compensar a queda que ocorrerá nessas transferências federais após a PEC 241/2016.
Quando os defensores dessa PEC afirmam que houve aumento “do gasto mínimo (piso) em saúde, para 2017, em aproximadamente R$ 10 bilhões”, de R$ 104,0 bilhões (que seria pela Emenda Constitucional (EC) 86/2015) para R$ 114,0 bilhões (1) (com o novo texto substitutivo da PEC 241/2016), e que a partir de 2018 esse “aumento” seria corrigido pela variação anual do IPCA, estão omitindo também que o ponto de partida dessa projeção está completamente arrochado pela queda de receita observada a partir de 2014 – além das perdas trazidas pela vigência da EC 86/2015, em 2016, em relação à regra que vigorava pela EC 29/2000, tema que foi denunciado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) em 2015 antes da aprovação da mudança pelos senhores congressistas. Os cenários de perdas para o SUS em 2017 apontam para diferentes valores dependendo da base de comparação:
a) PERDA DE R$ 5,5 bilhões: considerando que as despesas “competência total” de 2014 (empenhadas em 2014 e no início de 2015), corrigidas para 2017, seriam de R$ 119,2 bilhões.
b) PERDA DE R$ 1 bilhão: considerando a regra aprovada no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2017, ou seja, o valor empenhado em 2016 corrigido pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que foi definido pelo ministro Meirelles, em entrevista no dia 04 de outubro, em 7,2%; e considerando que serão empenhados em Ações e Serviços Públicos em Saúde (ASPS) pelo Ministério da Saúde em 2016 os R$ 106,9 bilhões que foram disponibilizados no Decreto 8784, o valor de 2017 não poderia ser inferior a R$ 114,6 bilhões.
c) PERDA DE R$ 5 bilhões: considerando que as despesas empenhadas em 2015 corrigidas para 2017 seriam de R$ 118,7 bilhões.
Mas o texto substitutivo da PEC 241/2016 apresentado pelo senhor deputado Relator, Darcisio Perondi, já aprovado em 1º turno pela Câmara dos Deputados, se aprovado definitivamente, será responsável por uma redução bilionária de recursos para o SUS, quer pela metodologia prospectiva (projeção 2017-2036 com moderada taxa de crescimento econômico e de receita, além da variação do IPCA no centro da meta), quer pela metodologia contrafactual (ou retrospectiva do período 2003-2015):
a) PERDA DE R$ 434 bilhões: considerando o cenário prospectivo apresentado na nota conjunta do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) de 05 de outubro de 2016, que projeta essa perda no período 2017-2036.
b) PERDA DE R$ 135 bilhões: considerando o cenário contrafactual (retrospectivo) – isto é, com a vigência da PEC 241/2016 no período 2003-2015, portanto, em comparação aos valores efetivamente empenhados nesse período –, não teria sido aplicado no SUS o valor de R$ 135 bilhões a preços médios de 2015 (isto é, a perda é muito maior que em um ano inteiro empenhado em 2015 e que deverá ser empenhado em 2016). A Tabela 1, a seguir, ilustra esta situação para as perdas que teriam ocorrido na alocação de recursos para as despesas com ações e serviços públicos de saúde.
Tabela 1
Cenário Retrospectivo 2003-2015: Despesa Empenhada X PEC 241
Ano EC 29 - Despesa Empenhada Simulação da PEC 241 partindo de 15% RCL em 2002
R$ milhões correntes % do PIB R$ milhões correntes (1) % do PIB Perda em relação à EC 29 (R$ milhões a preços médios de 2015)
2002 24.737 1,66% 30.289 2,03%
2003 27.181 1,58% 32.609 1,90% -10.758
2004 32.703 1,67% 38.013 1,94% -9.871
2005 37.146 1,71% 40.316 1,86% -5.516
2006 40.750 1,69% 43.247 1,79% -4.170
2007 44.303 1,63% 44.990 1,65% -1.106
2008 48.670 1,57% 46.650 1,50% 3.080
2009 58.270 1,75% 49.477 1,48% 12.782
2010 61.965 1,59% 51.852 1,33% 13.995
2011 72.332 1,65% 54.362 1,24% 23.321
2012 80.063 1,67% 58.009 1,21% 27.153
2013 83.053 1,56% 60.864 1,14% 25.725
2014 91.899 1,62% 64.941 1,14% 29.391
2015 100.055 1,69% 69.176 1,17% 30.879
total 2003-2015 134.905
Fonte: Adaptado de Grupo Técnico Interinstitucional de Discussão sobre Financiamento do SUS (GTIF-SUS) e Substitutivo da PEC 241 apresentado no Relatório do Deputado Darcisio Perondi de 04/10/2016.
Nota: (1) A partir de 2003, corrigido anualmente pelo IPCA Acumulado em doze meses em junho do ano anterior.
A aplicação efetiva (despesa empenhada) desse período anterior ficou “congelada” entre 1,6% e 1,7% do Produto Interno Bruto (PIB); mas, se vigorasse, a PEC 241/2016 teria sido reduzida para cerca de 1,2% do PIB no final desse período de 13 anos – movimento que pode ser observado no Gráfico 1.
Para o governo (conforme consta no texto da mensagem da PEC 241/2016 encaminhada à Câmara dos Deputados), o principal problema fiscal do Brasil é a vinculação constitucional que garante a aplicação mínima para a saúde e educação: além de isto não ser verdade, representa uma ameaça ao bem-estar das famílias e dos trabalhadores para priorizar o pagamento de juros e amortização da dívida pública (pois este é o objetivo do governo explicitado na citada mensagem).
Não há dúvida de que é preciso equacionar a situação das contas públicas federais; porém, há alternativas de modo a preservar o interesse da maioria dos duzentos e oito milhões de brasileiros – que teriam seus direitos suprimidos com a aprovação da PEC 241/2016. Por exemplo: rever a renúncia fiscal (gastos tributários) que está projetada acima de R$ 300 bilhões para os próximos anos; rever a legislação do Imposto de Renda (IR), para criar faixas de rendimentos superiores às atuais com alíquotas mais elevadas (de modo a tributar os que estão no topo da pirâmide social); rever a estrutura tributária, para que se reduza a incidência sobre produção e consumo e aumente a incidência sobre patrimônio, renda e riqueza; rever a isenção da tributação das remessas de lucros e dividendos; criar uma tributação sobre as grandes transações financeiras e sobre as grandes fortunas; bem como aumentar a tributação sobre tabaco, álcool, motocicletas entre outras iniciativas possíveis.
Da mesma forma, o CNS defende que, conjuntamente, sejam adotadas medidas para aumentar a qualidade do gasto público em geral, e da saúde em particular, com a adoção de mecanismos de gestão mais eficientes que, em última instância, requerem recursos para a modernização tecnológica para esse fim de modo a dar conta de um país com dimensão continental e fortes desigualdades regionais. No caso do SUS, é preciso também garantir que os recursos adicionais sejam destinados à mudança do modelo de atenção, para que a atenção primária seja a ordenadora do cuidado, e à valorização dos servidores públicos da saúde, que refletirão na qualidade do atendimento às necessidades de saúde da população.
Reiteramos aqui a denúncia do Conselho Nacional de Saúde: a PEC 241/2016, se aprovada, aprofundará a atual política econômica recessiva, gerando desemprego, queda de renda e sucateamento das políticas sociais. Portanto, defendemos uma mudança na orientação dessa política para a promoção do crescimento e da inclusão social, reforçando o papel dos gastos públicos em saúde para impulsionar o desenvolvimento e para reduzir as desigualdades sociais e regionais.
* Ronald Ferreira dos Santos é farmacêutico e presidente do Conselho Nacional de Saúde
** Francisco Funcia é economista e mestre em Economia Política (PUC-SP), professor e consultor do Conselho Nacional de Saúde
Nota
(1) O valor não arredondado é de R$ 113,7 bilhões (15% da Receita Corrente Líquida estimada no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2017 em R$ 758,3 bilhões), que adotamos para o cálculo das perdas.