Brasil
Edição 143 > ENTREVISTA – Dermeval Saviani
ENTREVISTA – Dermeval Saviani
“Escola sem partido é uma aberração e vai na contramão do lugar atribuído à escola na sociedade moderna”
Desde que as manifestações pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff passaram a ganhar corpo, no início de 2015, dando visibilidade para grupos de extrema-direita, vários temas defendidos por estes grupos também ganharam espaço no debate político e avançaram em forma de projetos de lei em diversas casas legislativas. Um deles é o denominado “escola sem partido”.

Trata-se de um conjunto de propostas defendidas por um movimento de mesmo nome que atua, desde 2004, pregando a instituição de uma verdadeira “lei da mordaça” contra professores sob a alegação de que as escolas brasileiras foram “invadidas por pregação ideológica, quase sempre de viés filossocialista”, conforme escreveu Gustavo Ioshpe, um dos apoiadores do movimento (FSP, 4/9/2016, Ilustríssima). Na contramão dessa ideia, estudiosos especialistas em educação e a quase totalidade das entidades educacionais do país criticam o movimento afirmando que nada na sociedade é isento de ideologia, e que o “escola sem partido”, na verdade, é uma proposta carregada de conservadorismo, autoritarismo e fundamentalismo cristão.
Para o educador Dermeval Saviani, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o movimento “escola sem partido” é parte do processo de luta de classes e uma tentativa da classe dominante em impor suas ideias diante da ameaça de perda de hegemonia. “Não podendo se impor racionalmente a classe dominante precisa recorrer a mecanismos de coerção no plano da sociedade política combinados com iniciativas no plano da sociedade civil que envolvem, por um lado, o uso maciço dos meios de comunicação promovendo uma verdadeira lavagem cerebral junto à população e, por outro lado, a investida no campo da educação escolar tratada como mercadoria e transformada em instrumento de doutrinação”, diz Saviani em entrevista (respondida por e-mail) para a Princípios.
Saviani ressalta que a posição da pedagogia histórico-crítica é diametralmente oposta ao programa do movimento “escola sem partido”. “Para a pedagogia histórico-crítica na sociedade de classes, portanto, na nossa sociedade, a educação é sempre um ato político, dada a subordinação real da educação à política. Dessa forma, agir como se a educação fosse isenta de influência política é uma forma eficiente de colocá-la a serviço dos interesses dominantes”, diz.
O professor concorda que existe similaridade entre o “escola sem partido” e o movimento que recentemente impôs a supressão da questão de gênero nos debates dos planos nacional, estaduais e municipais de Educação e acredita que, “infelizmente”, este tipo de discurso encontra acolhida até entre setores do professorado. “Considerando a precariedade da formação da maioria dos professores, não dispõem eles de antídotos consistentes contra essa avalanche ideológica conservadora que tem atingido até mesmo setores relativamente amplos das universidades públicas”, relata.
Segundo Saviani, o necessário combate ao “escola sem partido” “coincide com a luta por uma escola pública com o mesmo padrão de qualidade acessível a toda a população brasileira, livre das ingerências privadas balizadas pelos interesses do mercado. Para isso uma estratégia possível é reativar os Fóruns em Defesa da Escola Pública nos níveis municipal, estadual e nacional”.
Confira, a seguir, a íntegra da entrevista:
Princípios: Como é de seu conhecimento, tramita na Câmara Federal o PROJETO DE LEI n.º 867, de 2015 (do deputado Izalci – PSDB/DF) – que inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o “Programa Escola sem Partido”. Para você o que tem motivado, no atual contexto de ofensiva da direita, esse tipo de investida sobre a Educação e quais os possíveis impactos desse PL, se aprovado, sobre a formação de docentes e o funcionamento do ensino público no Brasil?
Dermeval Saviani: Na verdade, pelas informações que obtive, esse movimento teve início em 2004 por iniciativa de Miguel Nagib, advogado e procurador do estado de São Paulo que segue liderando o movimento tendo criado uma ONG com o mesmo nome. E vários projetos surgiram tanto em assembleias legislativas estaduais como em câmaras municipais e em âmbito nacional. No plano federal temos, na Câmara dos Deputados o PL 867 mencionado na pergunta. E no Senado tramita também o PLS 193/2016, de iniciativa do senador Magno Malta, do PR-ES, cujo relator é o senador Cristovam Buarque, ex-PT e PDT, agora no PPS-DF. Penso que a motivação dessa ofensiva da direita com a consequente investida sobre a educação tem um duplo componente. O primeiro é de caráter global e tem a ver com a fase atual do capitalismo que entrou em profunda crise de caráter estrutural. A sociedade capitalista tomou conta de todo o globo e, consequentemente, não tem mais como se expandir, tendo esgotado todas as suas possibilidades. Nas circunstâncias atuais, a classe dominante já não consegue mais ser dirigente, ou seja, vai perdendo sua capacidade hegemônica não conseguindo obter o consenso das demais classes em torno da legitimidade de seu domínio. Ocorre, então, o acirramento da luta de classes. Não podendo se impor racionalmente a classe dominante precisa recorrer a mecanismos de coerção no plano da sociedade política combinados com iniciativas no plano da sociedade civil que envolvem, por um lado, o uso maciço dos meios de comunicação promovendo uma verdadeira lavagem cerebral junto à população e, por outro lado, a investida no campo da educação escolar tratada como mercadoria e transformada em instrumento de doutrinação. Essa é a tendência que vem se intensificando em todos os países com a adoção de políticas repressivas classificadas pelos analistas como neoliberais e com concepções irracionalistas, no plano cultural, subsumidas sob a denominação de pós-modernas. O segundo componente tem a ver com a especificidade da formação social brasileira marcada pela resistência de sua classe dominante em incorporar os de baixo, no dizer de Florestan Fernandes, ou as classes subalternas, na expressão gramsciana, na vida política, tramando golpes sempre que pressente o risco da participação das massas nas decisões políticas. Daí o caráter espúrio de nossa democracia alternando a forma restrita, quando o jogo democrático é formalmente assegurado, com a forma excludente em que a denominação “democracia” aparece como eufemismo de ditadura. É assim que em nossa república transitamos de uma democracia ultrarestrita com eleições a bico de pena para o sufrágio universal com a admissão do voto das mulheres seguido da modernização do Estado Novo sucedido pela democracia restrita de caráter populista que, quando ameaçava ampliar-se, foi cortada por um golpe militar justificado pela defesa da democracia que, de fato, excluiu deliberada e sistematicamente os setores populares do jogo político, por sua vez sucedida por uma abertura democrática transacionada pelo alto que veio a negar aos de baixo “o direito à revolução tanto contra a ordem como dentro da ordem” recorrendo, novamente, à expressão de Florestan Fernandes. É essa classe dominante que, conforme a expressão de um de seus próceres, não suporta cheiro de povo; e é ela mesma que agora, no contexto da crise estrutural do capitalismo, dá vazão ao seu ódio de classe mobilizando uma direita raivosa que se manifesta nos meios de comunicação convencionais, nas redes sociais e nas ruas tendo perpetrado um golpe jurídico-midiático-parlamentar destinado a afastar do poder a presidenta eleita e instaurar um governo ilegítimo e antipopular. Nesse contexto, se aprovado o projeto da escola sem partido todo o ensino, incluída a formação dos professores, estará atrelado a esse processo de destituição da democracia como regime baseado na soberania popular, colocando o país à mercê dos interesses do grande capital e das finanças internacionais.
Princípios: Ao fazer uso da palavra na Câmara Municipal de Campinas, SP, dia 02 de agosto de 2016, por ocasião do recebimento do título de Cidadão Campineiro, o senhor se referiu à escola sem partido e citou Marx, sobre a obviedade da não doutrinação. Poderia desenvolver essa ideia?
DS: De fato, considerado em si mesmo, o enunciado “escola sem partido” é uma obviedade. Claro que a atividade educativa é distinta, e mesmo, incompatível, com a atividade partidária. Mas o movimento “escola sem partido” parte da suposição de que a educação escolar estaria sendo aparelhada pelos partidos de esquerda, de orientação marxista, especificamente pelo PT, tornando-a agente da ideologia comunista o que, evidentemente, situaria Marx como o mentor principal dessa suposta partidarização da escola. Eis a razão pela qual chamei a atenção para o posicionamento explícito de Marx contra esse entendimento. Contrapondo-se à proposta de que “a escola burguesa da época desse aos alunos conhecimentos em matéria de economia política” apresentada pelo operário inglês Milner, Marx, na sessão de 17 de agosto de 1869 do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, afirmou: “Nem nas escolas elementares, nem nas superiores, se deve introduzir matérias que admitam uma interpretação de partido ou de classe”. E acrescentou: “Apenas matérias como ciências naturais, gramática etc., podem ser ensinadas na escola. As regras gramaticais, por exemplo, não mudam quando explicadas por um crente tory ou por um livre pensador. Matérias que admitem conclusões diferentes não devem ser ensinadas na escola”. Mas isso não significa, propriamente, a exclusão da política da formação escolar. Isso fica claro na medida em que Marx, ao mesmo tempo em que afirmava que se devia subtrair a escola da influência tanto dos governos como das Igrejas, defendia que o Estado deveria determinar por lei os recursos para as escolas, o nível de ensino dos professores, as matérias de ensino e a supervisionar, com seus inspetores, o cumprimento das normas de ensino. E, em maio de 1871, em seu escrito sobre a Comuna de Paris, exaltou as medidas referentes ao ensino observando que todas as instituições de ensino foram abertas gratuitamente ao povo e, ao mesmo tempo, liberadas de toda ingerência da Igreja e do Estado, acrescentando: “assim, não apenas a educação foi tornada acessível a todos, mas a própria ciência liberta das grilhetas que os preconceitos de classe e a força governamental lhe tinham imposto” (MARX, A guerra civil na França. Lisboa: Edições Avante!, 1983, p. 66).
Princípios: Quais as principais contraposições da Pedagogia Histórico-Crítica aos princípios e propostas do Projeto Escola sem Partido?
DS: Pode-se considerar que o entendimento da pedagogia histórico-crítica sobre as relações entre escola e política é aquele que está sucintamente expresso no capítulo quarto do livro Escola e democracia, denominado “Onze teses sobre educação e política”. Ali procurei mostrar que educação e política são práticas distintas, mas inseparáveis entre si. Assim, embora não exista identidade entre educação e política (tese 1), toda prática educativa contém, inevitavelmente, uma dimensão política (tese 2), assim como toda prática política contém, inevitavelmente, uma dimensão educativa (tese 3). Só é possível compreender a dimensão política da educação na medida em que se explicita a especificidade da prática educativa (tese 4), do mesmo modo que só é possível compreender a dimensão educativa da política na medida em que se explicita a especificidade da prática política (tese 5). Ora, a especificidade da prática educativa define-se pelo caráter de uma relação que se trava dominantemente entre contrários não antagônicos (tese 6), o que significa que se trata de uma relação de hegemonia alicerçada na persuasão, no consenso, na compreensão. Por sua vez, a especificidade da prática política se define pelo caráter de uma relação que se trava entre contrários antagônicos (tese 7) sendo, pois, uma relação de dominação alicerçada na dissuasão, dissenso, repressão. Assim dispostas, as relações entre educação e política dão-se na forma de autonomia relativa e dependência recíproca (tese 8), realizando-se diferentemente conforme as variações históricas de sua manifestação, o que nos permite constatar que as sociedades de classe caracterizam-se pelo primado da política ocorrendo, em consequência, a subordinação real da educação à prática política (tese 9). Ora, é essa a situação em que nos encontramos, pois a sociedade capitalista em que vivemos é dividida em classes com interesses antagônicos. Esta é a razão do primado da política. Uma vez que a relação política se trava fundamentalmente entre antagônicos, nas sociedades de classes ela se constitui na prática social fundamental. Nessas condições, obviamente a dependência da educação em relação à política é maior do que a da política em relação à educação. Daí, a subordinação da educação diante da política. Se as condições de exercício da prática política estão inscritas na essência da sociedade capitalista, as condições de exercício da prática educativa estão inscritas na essência da realidade humana, mas são negadas pela sociedade capitalista, não podendo realizar-se aí senão de forma subordinada, secundária. Por aí se pode entender o “realismo” da política e o “idealismo” da educação. De fato, acreditar que estão dadas em nossa sociedade as condições para a realização plena da educação é assumir uma atitude idealista. Inversamente, nesta sociedade é realista quem considera a política como a prática dominante à qual se subordina a educação. Mas se trata de uma subordinação histórica e, como tal, não só pode como deve ser superada. E, superada a sociedade de classes cessa o primado da política e, em consequência, a subordinação da educação (tese 10). Assim, chegado o momento histórico em que prevalecem os interesses comuns, a dominação cede lugar à hegemonia, a coerção à persuasão, a repressão desfaz-se, prevalecendo a compreensão. Então estarão dadas as condições para o pleno exercício da prática educativa. Sendo uma relação que se trava entre antagônicos, a política supõe a divisão da sociedade em partes inconciliáveis devendo, necessariamente, ser partidária. Inversamente, a educação, por ser uma relação entre não antagônicos, supõe a união e tende para a universalidade não podendo, portanto, ser partidária. A prática política se apoia na verdade do poder, enquanto a prática educativa se apoia no poder da verdade. E a verdade, a ciência, não é desinteressada. No entanto, a classe dominante não se interessa pela verdade, pois isso evidenciaria a dominação que exerce sobre as outras classes. Em contraposição, a classe dominada tem todo interesse que a verdade se manifeste porque isso põe em evidência a exploração a que é submetida, engajando-a na luta de libertação. É esse o sentido da frase “a verdade é sempre revolucionária”, o que explica por que a classe efetivamente capaz de exercer a função educativa em cada etapa histórica é aquela que está na vanguarda, a classe historicamente revolucionária. Assim, como conclusão necessária das dez teses que explicitam como se dão historicamente as relações entre política e educação segue-se que a função política da educação se cumpre na medida em que ela se realiza enquanto prática especificamente pedagógica (tese 11). A importância política da educação reside, enfim, no cumprimento de sua função própria que consiste na socialização do conhecimento. E, especificamente no caso da escola, sua importância política reside no cumprimento de sua função própria: a socialização do saber elaborado, sistemático, assegurando, às novas gerações, a plena apropriação das objetivações humanas mais ricas representadas pela produção científica, filosófica e artística.
Pelo exposto percebe-se que a posição da pedagogia histórico-crítica é diametralmente oposta ao programa do movimento “escola sem partido”. Para a pedagogia histórico-crítica na sociedade de classes, portanto, na nossa sociedade, a educação é sempre um ato político, dada a subordinação real da educação à política. Dessa forma, agir como se a educação fosse isenta de influência política é uma forma eficiente de colocá-la a serviço dos interesses dominantes. E é esse o sentido do programa “escola sem partido” que visa, explicitamente, subtrair a escola do que seus adeptos entendem como “ideologias de esquerda”, da influência dos partidos de esquerda colocando-a sob a influência da ideologia e dos partidos da direita, portanto, a serviço dos interesses dominantes. Ao proclamar a neutralidade da educação em relação à política, o objetivo a atingir é o de estimular o idealismo dos professores fazendo-os acreditar na autonomia da educação em relação à política, o que os fará atingir o resultado inverso ao que estão buscando: em lugar de, como acreditam, estar preparando seus alunos para atuarem de forma autônoma e crítica na sociedade, estarão formando para ajustá-los melhor à ordem existente e aceitarem as condições de dominação às quais estão submetidos. Eis por que a proposta da escola sem partido se origina de partidos situados à direita do espectro político com destaque para o PSC e PSDB secundados pelo DEM, PP, PR, PRB e os setores mais conservadores do PMDB. Como se vê, a “escola sem partido” é a escola dos partidos da direita, os partidos conservadores e reacionários que visam manter o estado de coisas atual com todas as injustiças e desigualdades que caracterizam a forma de sociedade dominante no mundo de hoje.
Princípios: A onda conservadora e de direita que se alastrou no país nos últimos anos na esteira dos protestos contra os governos petistas pode ter contaminado também parcela dos professores- Há alguma chance de um movimento de apoio ao Escola sem Partido dentro do ambiente acadêmico e escolar?
DS: Infelizmente, a resposta a essa pergunta é positiva. Os professores também não estão imunes à influência da mídia que divulga amplamente a visão da educação escolar correspondente aos interesses dominantes com sua consequente subordinação ao funcionamento do mercado além de insistir frequentemente no refrão do dito aparelhamento das escolas pelas esquerdas, dominantemente pelo PT, disseminando aquilo que é tachado como influência marxista nas escolas. Considerando a precariedade da formação da maioria dos professores, não dispõem eles de antídotos consistentes contra essa avalanche ideológica conservadora que tem atingido até mesmo setores relativamente amplos das universidades públicas. Exemplo disso nós vivenciamos na minha própria universidade, a Unicamp, quando, por ocasião da recente greve dos três segmentos, professores, estudantes e funcionários, mais de 180 docentes assinaram a convocação de uma assembleia da Adunicamp com uma pauta conservadora exigindo que a entidade aprovasse pedido à Reitoria de punição severa de atos praticados pelos estudantes no exercício do direito de greve. Felizmente, os professores críticos conseguiram reunir maioria para barrar essa pauta negativa na assembleia da Adunicamp.
Princípios: É possível estabelecer alguma conexão entre este movimento que defende o Escola sem Partido e aquele outro que recentemente infestou o debate sobre os planos estaduais e municipais de Educação exigindo a retirada da questão de gênero destes Planos, como ocorreu em São Paulo?
DS: Sem dúvida. Aliás, essa conexão é reconhecida explicitamente pelo próprio Congresso Nacional que, ao acolher na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n.º 867, de 2015 (do Deputado Izalci – PSDB/DF), determinou que fosse apensado ao PL-7180/2014 do deputado Erivelton Santana, do PSC-BA, que trata exatamente da questão de gênero.
Princípios: O Ministério Público já se pronunciou pela inconstitucionalidade de propostas como Escola sem Partido e Lei da Mordaça, mas mesmo que não vire lei federal, o senhor acredita que este debate possa fazer com que escolas particulares, por exemplo, exerçam vigilância e pressão sobre os professores para que filtrem os conteúdos dados em sala de aula?
DS: Entendo que a iniciativa do projeto de lei tem em mira utilizar o poder legítimo do Estado de impor regras que obrigam a todos, do que resulta o poder, também reconhecido como legítimo, de aplicar sanções ao eventual descumprimento das regras aprovadas. Assim, mediante a aprovação do projeto, a ideologia desse movimento autodenominado “escola sem partido” se tornaria impositiva para todas as escolas e todos os professores. Caso, no entanto, por algum motivo o projeto venha a ser rejeitado e arquivado, presumo que os adeptos do referido movimento não desistirão de procurar, pelos mais diferentes meios, fazer valer as suas posições. Consequentemente, certa vigilância e pressão sobre os professores acontecerão e, a meu ver, não apenas nas escolas particulares, mas também nas públicas seja porque a iniciativa privada, por meio de vários organismos, vem crescentemente interferindo na formulação das políticas educacionais e atuando na montagem dos currículos, no conteúdo do ensino por meio de materiais escolares com destaque para a volta das apostilas, vendendo pacotes para as redes públicas de ensino; seja porque os adeptos do dito movimento já ocupam postos na rede pública com tendência a ampliar essa participação visando a fazer prevalecer seus interesses e sua visão do papel da escola. Além disso, o risco da vigilância torna-se ainda mais presente, uma vez que já há propostas de instalação de câmeras no interior das salas de aula, o que significa que o princípio da “liberdade de cátedra”, ou seja, a autonomia do professor na sala de aula acabará por ser simplesmente abolida.
Princípios: Esta “vigilância” sobre o conteúdo escolar de certa forma já atinge a produção do material didático?
DS: Por enquanto, parece que a referida “vigilância” ainda não chegou a atingir o programa do livro escolar mediante o qual o MEC, a partir de comissões de especialistas, seleciona livros didáticos e os distribui gratuitamente às escolas. Mas, como adiantei, ela facilmente penetra nos pacotes produzidos por grupos empresariais que atuam no campo da educação. E, caso o atual governo interino venha a se tornar permanente, tal tendência deverá se fazer presente também nas iniciativas do próprio MEC.
Princípios: Como o senhor vê o papel dos meios de comunicação neste debate?
DS: Se por meios de comunicação estivermos entendendo a chamada “grande mídia”, em especial a radio-televisiva, o papel que está sendo desempenhado é de reforço dessa tendência conferindo-lhe maior visibilidade e facilitando, portanto, sua ampliação.
Princípios: Quais as suas recomendações/sugestões para se travar a luta contra esse projeto?
DS: Penso que devemos distinguir a luta contra o projeto de lei, especificamente, e a luta contra o programa do movimento autodenominado “escola sem partido”. A luta contra o projeto de lei deve ser travada mostrando que se trata de uma aberração, pois fere o bom senso, vai na contramão do lugar atribuído à escola na sociedade moderna e nega os princípios e normas que compõem o aparato jurídico vigente no Brasil sendo manifestamente anticonstitucional. Fere o bom senso, pois retira dos professores o papel que lhes é inerente de formar as novas gerações para se inserirem ativamente na sociedade, o que implica trabalhar com os alunos os conhecimentos disponíveis tendo como critério e finalidade a busca da verdade sem quaisquer tipos de restrição. Vai na contramão da sociedade moderna que no século XVIII forjou o conceito de escola pública estatal, de caráter universal, obrigatória, gratuita e laica e buscou implantar, no século XIX, os sistemas nacionais de ensino como instrumentos de democratização com a função de converter os súditos em cidadãos.
É esta a condição para a existência das sociedades democráticas mesmo sob a forma capitalista e burguesa que proclama a democracia como o regime baseado na soberania popular. E o povo, para se transformar de súditos em cidadãos, isto é, para ser capaz de governar ou de eleger e controlar quem governa, deve ser educado. Para esse fim é que foi instituída a escola pública universal, obrigatória, gratuita e laica. Em consonância com esse significado histórico da escola a Constituição vigente no Brasil define como finalidade da educação o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Ora, o preparo para o exercício da cidadania tem um significado precipuamente político. Mas, mesmo com a rejeição do projeto de lei, é preciso organizar a luta contra o programa do movimento “escola sem partido”, o que coincide com a luta por uma escola pública com o mesmo padrão de qualidade acessível a toda a população brasileira, livre das ingerências privadas balizadas pelos interesses do mercado. Para isso uma estratégia possível é reativar os Fóruns em Defesa da Escola Pública nos níveis municipal, estadual e nacional.