Brasil
Edição 143 > Democracia e cidadania em tempos de golpe
Democracia e cidadania em tempos de golpe
Os agentes dos processos de ruptura das normas democráticas que assistimos agora com o golpe que afastou Dilma da presidência são os mesmos dos golpes passados: as classes dominantes do país. Setores que historicamente se beneficiaram da mão de obra escrava, da mão de obra dos trabalhadores assalariados do capitalismo tardio brasileiro. Para esses setores não vale a ordem constituída quando está em jogo uma parcela de seus interesses

O Brasil se encontra num processo político de ruptura de normas democráticas estabelecidas na Constituição Federal de 1988. A presidenta Dilma Rousseff sofreu um ilegal afastamento do cargo. Houve a violação do Estado Democrático de Direito. A presidenta foi eleita democraticamente pela maioria do povo brasileiro e, pelo direito constitucional, deveria encerrar seu mandato em dezembro de 2018. A Carta Magna de 1988, conhecida também como Constituição Cidadã, assim assegura a normalidade democrática.
Porém, assim não aconteceu. No presidencialismo, ao qual nosso sistema político é submetido, não é legal o afastamento de um presidente por maioria no parlamento sem comprovação de crime.
O sistema político do país tem algumas características que alguns autores chamam de presidencialismo de coalizão. E o que caracteriza o presidencialismo de coalizão é um presidente eleito com a maioria dos votos da população, tem seu partido no poder legislativo federal com um percentual bem menor do que o obtido na eleição presidencial. Com isso, o partido do presidente negocia com os demais partidos, coligados na chapa majoritária do presidente eleito no processo eleitoral, para obter uma maioria no parlamento. Assim consegue aprovar propostas oriundas do Executivo. Muitas vezes esses partidos não comungam com o projeto eleitoral do presidente eleito e, então, ocorrem negociações partidárias para se obter a governabilidade.
O estudo da evolução da cultura democrática no Brasil no período mais recente assinala que o sistema político sob o presidencialismo de coalizão teve uma ascensão no período de 1994 até 2002, durante o mandato do presidente Fernando Henrique Cardozo. Depois, houve uma ligeira crise entre 2003 e 2005, quando o presidente Lula não buscou aliança com o PMDB. Logo em seguida no período de 2006 até 2010 ele se recompõe com o PMDB como principal partido da base aliada. Com o primeiro mandato da presidenta Dilma ocorre a crise dessa aliança para finalmente detonar o presidencialismo de coalizão na sua segunda gestão. Houve uma ruptura institucional. Os partidos, outrora coligados com a chapa vencedora encabeçada por Dilma, não honraram seus compromissos eleitorais.
Em outros momentos da história do Brasil também tivemos rupturas institucionais. A ditadura implantada no país em março de 1964 é outro exemplo de ações antidemocráticas contra a ordem jurídica e constitucional. O golpe civil militar de 1964 foi, na forma do atual, anticonstitucional. O Congresso Nacional assim como o Poder Judiciário acataram a perda de poder do presidente eleito João Goulart, Jango, que, embora eleito como vice-presidente em 1960 e empossado como presidente, foi defenestrado violentamente do poder.
Esses são dois momentos da história brasileira onde a quebra das regras democráticas foi tratada como fato corriqueiro ou procedimento natural por parte da sociedade brasileira.
Por que isso ocorre no nosso país?
É comum na história do nosso país essas rupturas institucionais e também a convivência com regimes ilegítimos por um longo período de tempo. Ao longo da nossa história tivemos momentos decisivos. Segundo Hobsbawm, a Depressão de 1929-1930 deixou uma crise no Brasil. E a principal característica dessa crise foi uma queda de consumo no mundo. O país respondia com “dois terços a três quartos do café vendido no mundo” (HOBSBAWM, 1995, p. 97). Com a diminuição do consumo provocada pela crise e com a não diminuição da produção do café, o país entrou numa crise com muita produção e baixo consumo, forçando o preço do café para baixo, tornando-o inviável economicamente. Essa crise se estendeu por alguns anos e só foi encerrada com a deflagração da Segunda Guerra Mundial entre 1938 e 1945.
No período de 1930, início da crise, até 1945, fim da Segunda Guerra Mundial, tivemos no Brasil o governo de Getúlio Vargas. Esse presidente, no início, foi líder de um processo revolucionário, passou por influência do nazi-fascismo entre 1937 e 1943, e encerrou seu primeiro ciclo de governo como presidente que aprovou medidas trabalhistas como a Consolidação das Leis do Trabalho –(CLT) em maio de 1943.
Identificamos que a instabilidade política acompanha ou é o resultado direto das crises econômicas no Brasil.
Governos liberais dos países capitalistas ocidentais no início do século 20, com características democráticas àquela época, eram vulneráveis. A democracia representativa, em geral, não era a maneira convincente de governar Estados, “e as condições da Era da Catástrofe raramente asseguravam as condições que a tornavam viável, quanto mais eficaz” (IDEM, p. 140). A opção da burguesia, das classes dominantes, contemporâneas da crise, foi o fim da democracia e a ascensão do nazi-fascismo na maior parte do mundo capitalista.
A opção política da burguesia, das classes dominantes nos momentos de crise, foi a alternativa conservadora. A crise econômica mundial de 1930 foi testemunha disso. A burguesia dos maiores países capitalistas na Europa aderiu ao nazi-fascismo.
No Brasil, nossa burguesia também acompanhou esses passos reacionários. Apesar de não termos naquele momento de crise dos anos 1930 uma Constituição democrática, que assegurasse no mínimo o voto universal, assim como o voto feminino, a classe dominante nativa optou pela via autoritária para impor seus interesses políticos.
Necessariamente, as crises políticas não se desenvolvem a partir das crises econômicas. O golpe civil-militar de 1964 é uma prova disso. As décadas de 1950 e 1960 foram de expansão do sistema capitalista mundial. Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, os países capitalistas iniciaram um processo de recuperação de suas economias. As nações envolvidas diretamente na guerra estavam quebradas, à exceção dos Estados Unidos da América, que foram os grandes financiadores dessa recuperação. “Recuperar-se da guerra era a prioridade esmagadora dos países europeus e do Japão” (IDEM, p. 254), e a palavra de ordem do momento. O mesmo autor batizou esse período como a Era de Ouro, devido à recuperação e à prosperidade econômicas ocorridas naqueles países.
No Brasil havia, de certa forma, uma sintonia com esse crescimento econômico mundial. O país soube aproveitar esse período com propostas de desenvolvimento econômico e social. O governo do presidente Juscelino Kubitschek foi o exemplo desse momento. Seu projeto era o de desenvolvimento e seu programa político “assentava-se na conservação da ordem legal da época e na confiança no futuro de grandeza nacional para o Brasil” (VIEIRA, 2015, p. 99). O legalista presidente, porém, sofreu diversas tentativas de golpes militares no decorrer do seu mandato.
A mesma sorte não teve, no entanto, os presidente e vice-presidente eleitos no pleito seguinte: Jânio Quadros e João Goulart, respectivamente. Ambos não concluíram seus mandatos. O primeiro renunciou e o segundo foi violentamente afastado do poder por um golpe de Estado encabeçado por forças civis e militares. A crise política e militar dos presidentes anteriores só agravou o governo de João Goulart, Jango. Forças conservadoras de direita, formadas por movimentos sociais, derrubaram Jango. Segundo apontamentos de Evaldo Vieira, organizações foram criadas, rápida e ardilosamente, para a derrubada do poder constitucionalmente eleito. Dentre essas organizações destaca-se a tal “Marchas da Família, com Deus, pela Liberdade”, que foi comprovadamente financiada por recursos estrangeiras norte-americanos.
Como falamos, no caso janguista, não foi necessariamente a situação econômica que levou à sua deposição. Assim como Getúlio Vargas, “aqui também os grupos mais conservadores brasileiros ganharam extraordinários meios para acuar o poder constitucional” (IDEM, p. 231) – a despeito de a própria economia brasileira não ter deixado de crescer.
As crises políticas no Brasil se caracterizam, necessariamente, pela violenta tomada do poder com total desrespeito à ordem constituída. No agravamento das crises os presidentes eleitos de forma legal são apeados do poder. E, independente de ocorrerem simultaneamente crises econômicas, as crises políticas são deflagradas pelos setores dominantes, das classes burguesas nativas e em conluio com grandes empresas internacionais e apoiados por países de capitalismo central.
A burguesia brasileira, portanto, não convive harmoniosamente com a democracia. A ela falta compromissos constitucionais que asseguram o pleno exercício da cidadania. Nossa atual Carta Magna, a Constituição Cidadã, como foi batizada à época de sua promulgação em 1988, foi violada.
Essa classe dominante em nosso país assim procede devido aos seus compromissos de classe. Observamos que em todos os momentos de ruptura da ordem democrática estavam em jogo, em disputa, os interesses de classe trabalhadora contra interesses da classe burguesa. Em 1954 com o suicídio de Getúlio Vargas havia uma ascensão da organização e das mobilizações da classe trabalhadora, o salário-mínimo teve dois reajustes onde foi conferido maior poder de compra. O compromisso político do então presidente Vargas era com o projeto de desenvolvimento que incluía uma parcela considerável da classe trabalhadora. Em 1964 havia por parte de Jango um projeto de reformas de base, entre elas a reforma agrária. Ambos os presidentes eram filiados ao Partido Trabalhista Brasileiro, portadores à época, dos interesses da classe trabalhadora brasileira. Assim também está ocorrendo em 2016. O impedimento da presidenta Dilma é feito sem base legal.
Os agentes dos processos de ruptura das normas democráticas acima citados são os mesmos: as classes dominantes do país. Setores que historicamente se beneficiaram da mão de obra escrava, da mão de obra dos trabalhadores assalariados do capitalismo tardio brasileiro. Para esses setores não vale a ordem constituída quando está em jogo uma parcela de seus interesses. A mínima possibilidade de ascensão da classe trabalhadora, quer por distribuição de renda, quer por posse da terra, quer por políticas de proteção social larga, acende nas classes dominantes o alerta.
Esse jogo de interesse já foi conceitualmente explicitado pela análise de Karl Marx. O objetivo das classes burguesas, que no discurso desenvolvem um reconhecimento constitucional da cidadania, na prática é diferente. Marx critica a “‘verdadeira democracia’ concebida como processo permanente” (MARX, 2010, p. 13). Na referida obra, o autor explora os limites da emancipação política. Isto é, existe sim um direito à cidadania, mas somente com limitações de classe.
No momento do conflito dos interesses, na luta política dos vários setores da sociedade civil, o que se sobrepõe são os interesses de classe. A burguesia, que é a classe dominante da sociedade, define de quem são os direitos, se do cidadão, na Constituição ou se seus direitos de classe dominante que pode, muito ao seu arbítrio, não acatar qualquer direito. É assim que “não o homem como citoyen, mas o homem como bourgeois é assumido como homem propriamente dito e verdadeiro” (IDEM, p. 50). E assim vamos desvendando o momento de crise política que neste momento tem na democracia o seu alvo principal. Quando a classe burguesa vê seus interesses em perigo usa o seu verdadeiro poder, o poder da classe burguesa na sociedade capitalista.
Sofremos mais uma vez um golpe de características parlamentar e midiática e com conivência do Poder Judiciário. Um golpe que devolve à classe burguesa o poder de fato. Democracia e cidadania, para essa classe, tem limites. Democracia e cidadania são conceitos historicamente determinados pelos conceitos e contradições de classes sociais. A classe trabalhadora não desfruta, no sistema capitalista e de forma integral e constante, desses dois valores da sociedade moderna. Dilma Rousseff, João Goulart e Getúlio Vagas, como representantes dos interesses da classe trabalhadora, foram vítimas da violência da classe burguesa.
*Carlos Rogério de Carvalho Nunes é assistente social, mestre e doutorando em Serviço Social; secretário de Políticas Sociais da CTB Nacional
Bibliografia
AVRITZER, Leonardo. Impasses da Democracia no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
MARX, Karl. Sobre a questão judaica. Apresentação [e posfácio] de Daniel Bensaïd. Tradução de Karl Marx por Nélio Schneider; Tradução de Daniel Bensaïd por Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2010.
VIEIRA, Evaldo. A república brasileira: 1951-2010: de Getúlio a Lula. São Paulo: Cortez, 2015.