Resenhas
Edição 142 > A esquerda ausente – crise, sociedade do espetáculo, guerra
A esquerda ausente – crise, sociedade do espetáculo, guerra
Quando a esquerda se ausenta

Autor: Domenico Losurdo
Págs.: 400
Editora: Anita Garibaldi/Fundação Maurício Grabois
Ano de publicação: 2016
ISBN: 978-85-7277-171-9
Preço: R$ 45,00
Disponível em: http://www.anitagaribaldi.com.br/
A Esquerda Ausente, do pensador marxista italiano Domenico Losurdo – como é possível ver pelo título – é uma obra polêmica. Quando lançada na Europa em 2014 gerou acaloradas discussões nos meios socialistas. Nela, o nosso autor desfere críticas contundentes à subordinação de parte significativa da esquerda ocidental à ideologia liberal-burguesa. Processo que a faz se ausentar da luta contra o neocolonialismo. Este fenômeno vem se agravando desde a derrota das experiências socialistas na antiga União Soviética e no Leste Europeu. A nova esquerda, desprovida de qualquer capacidade crítica, tornou-se refém do “terrorismo da indignação”, produzido por um poderoso aparelho midiático a serviço da construção da hegemonia mundial do imperialismo, especialmente estadunidense. Além de garantir o predomínio quase absoluto das ideias das classes dominantes, ele também estabelece o monopólio das emoções, que é dirigido contra governos indóceis e povos insubmissos.
A sua força é tão desproporcional que chega a inibir amplos setores da esquerda e – em muitos casos – os faz se aliarem às grandes potências contra as pequenas nações vítimas desse monstruoso processo de mistificação, como pode ser observado nos casos das guerras travadas pelo “Ocidente” – leia-se Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] – no Iraque, Afeganistão, Sérvia, Líbia e Síria. O “terrorismo da indignação” volta-se também contra a Rússia e a China. Em torno desta última vai se montando um verdadeiro cerco ideológico, econômico, político e militar. Muitos porta-vozes da esquerda moderna, ingenuamente, contribuem com essa manobra do imperialismo.
Sob a falsa argumentação de defesa dos direitos humanos – ameaçados por supostos regimes tirânicos – se travam guerras sanguinárias de caráter neocolonial. Aqueles que não denunciam essa farsa não aprenderam uma das lições mais importantes retiradas das lutas monumentais travadas pelos povos do mundo ao longo do século 20: não é possível concretizar uma verdadeira democracia no interior de cada país sem que, ao mesmo tempo, se estabeleça a democracia nas relações internacionais. Por isso, a conquista da verdadeira paz – ou o “direito de não ter medo” – deveria estar entre as primeiras tarefas da esquerda moderna, como havia sido no passado. Sem essa compreensão a esquerda ocidental será uma esquerda permanentemente ausente.
É preciso mostrar os adversários da “nova ordem mundial” como monstros, capazes dos atos mais bárbaros. Nem que para isso seja preciso mentir, acusando-os de possuírem armas de destruição em massa e estarem promovendo genocídios. E contra eles travarem-se guerras de aniquilamento maquiadas de guerras humanitárias. Assim aconteceu na Sérvia de Milosevic, no Iraque de Saddam Hussein, na Líbia de Gadaffi. Também pudemos observar essa mesma manobra nas campanhas midiáticas contra a Síria e o Irã. Nestes dois casos o “terrorismo da indignação” não conseguiu plenamente o seu objetivo.
Enquanto isso, a “plutocracia” – o domínio dos grandes bancos e das grandes fortunas – vai se impondo nos países capitalistas centrais. A democracia, mesmo burguesa, perde substância. O sufrágio universal e o pluralismo transformam-se em meras ilusões. A riqueza hereditária – fruto do capitalismo patrimonial – não precisa mais se cobrir com o manto roto da ideologia meritocrática, com sua aparente valorização das capacidades individuais, tão caras ao liberalismo tradicional. Este regime político, que domina o Ocidente, poderia muito bem ser chamado de “cleptocracia”, onde o domínio da riqueza se tornou também o predomínio da “criminalidade financeira” – muitas vezes consentida pelo Estado. Não sem razão muitos passam a se referir aos líderes dessas grandes instituições financeiras como “banksters” – uma mistura de banqueiros com gângsteres.
“Com efeito, nos dias atuais é tão forte o peso exercido pela riqueza que o sistema político-eleitoral existente de fato condena ao silêncio as classes inferiores e dá voz apenas à competição, aliás furiosa, de elites políticas que remetem em última análise à mesma classe social, isto é, à grande burguesia”. As campanhas eleitorais são cada vez mais caras. O que, tendencialmente, limita “o acesso à política àqueles candidatos que possuem fortunas pessoais ou que recebem dinheiro (...) de ‘grupos de interesse’ e ‘lobbies’ vários”, como diz um dos autores citados por Losurdo. Ou Stiglitz que afirmou: “num país dominado pelo dinheiro (...) a desigualdade econômica se traduz em desigualdade política”. A competição é restrita aos ricos numa espécie de “unipartidarismo competitivo”. Isso explica a atual crise de representação dos parlamentos e do sistema partidário.
Abaixo da casta dos super-ricos vai se formando “uma casta hereditária de pobres”. O muro de desigualdade – a “grande divergência” – que separava o primeiro do terceiro mundo foi se transferindo para o centro do capitalismo. Os EUA são um caso extremado. Ali – no país mais rico do mundo – menos de 1% abocanha 1/5 da riqueza do país, enquanto 15% da população estão abaixo da linha da miséria e ¼ das crianças vive em condições de pobreza. Algo que vai se repetindo em outros países capitalistas centrais.
Uma situação ainda mais agravada pelo desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social que, em grande parte, havia sido uma das consequências do medo burguês diante do possível crescimento da influência “comuno-soviética” sobre os trabalhadores. Eliminado aquele perigo, as conquistas operárias poderiam ser mais facilmente retiradas.
Segundo Losurdo, o Ocidente “não apenas apregoa a universalidade da religião dos direitos humanos como também fixa o seu calendário sagrado”. Relembra anualmente os atentados às Torres Gêmeas e coloca na sombra o golpe militar no Chile, ocorridos na mesma data (11 de setembro). Presta tributo anual aos mártires da Praça de Tienanmen e esquece dos mortos na ocupação estadunidense do Panamá em 1989. Os exemplos dessa dubiedade moral são infinitos. Continua o nosso autor: “Fixar calendário significa certificar-se do controle da memória histórica, e tal controle (...) é um componente essencial do poderio geral do aspirante a império planetário (...). Se pensarmos particularmente no mundo colonial, a relação de domínio resulta sólida e duradoura apenas quando se respalda na destruição da história, da identidade cultural, da autoestima do povo dominado, de maneira que o último sucumba à autofobia e pretenda participar, mesmo de modo subalterno, da identidade do vencedor”. “Infelizmente, os pretensos defensores da democracia continuam a desfrutar de muito crédito na esquerda ocidental, que muitas vezes reverenciou como revoluções democráticas golpes de Estado”, como ocorreu na Ucrânia.
Por tudo isso, este é um livro corajoso e segue na contramão do que a chamada esquerda ocidental – submetida à ideologia do império – vem escrevendo e praticando nestas últimas décadas.
* Augusto César Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois e membro do Conselho Editorial da revista Princípios