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Edição 142 > A Comissão de Legislação Participativa e a resistência ao golpe de 2016
A Comissão de Legislação Participativa e a resistência ao golpe de 2016
Em pleno contexto de resistência ao golpe de 2016 e de luta pelo restabelecimento da democracia no Brasil, com a volta da presidenta legitimamente eleita e com a retomada do respeito à Constituição e aos votos dos brasileiros, a Comissão de Legislação Participativa, da Câmara dos Deputados, é um importante espaço à disposição dos cidadãos, dos movimentos sociais, daqueles que mais precisam de voz para lutar por seus direitos e suas bandeiras

O golpe de Estado que tristemente vivenciamos hoje no Brasil coloca nossa população em grave risco, diante da total incerteza sobre os direitos individuais e coletivos, em um contexto de plena imprevisibilidade, com os avanços de forças ultraconservadoras ameaçando conquistas sociais duramente conquistadas ao longo dos últimos 14 anos. O povo brasileiro, porém, compreendeu a farsa do golpe e não tardou a protestar contra ele, em manifestações que se repetem a cada dia, em todo o país. Enquanto segue a luta pelo restabelecimento da democracia, pelo respeito à Constituição e aos votos de mais de 54 milhões de brasileiros que livremente escolheram Dilma Rousseff como sua presidente legitimamente eleita, espaços de resistência são cada vez mais importantes. A Comissão de Legislação Participativa, da Câmara dos Deputados, com tradição de abrir espaço para os mais ameaçados setores da sociedade, dando voz e vez a quem mais precisa, é uma dessas importantes frentes para resistir ao golpe, ao arbítrio, à injustiça, à violência cometida contra a Constituição e contra o povo brasileiro.
No dia 17 de abril, página infeliz de nossa história, em uma sessão realizada em pleno domingo e transmitida pela televisão, qual um triste espetáculo ensaiado para forçar um resultado e colocar em xeque a democracia, a Câmara dos Deputados votou e aprovou, em meio a uma flagrante injustiça e a uma clara ilegalidade – vez que não houve qualquer crime de responsabilidade cometido pela presidenta Dilma –, a abertura de um processo de impedimento contra a chefe do Poder Executivo. O Brasil assistiu, estarrecido, à realidade de seus representantes no parlamento. Pouquíssimos se referiram ao suposto crime de “manobras fiscais”, “pedaladas”, que para mim são apenas aquelas que a presidenta costuma fazer de manhã cedo, para se exercitar e manter uma rotina saudável, dando bom exemplo ao povo brasileiro quanto ao cuidado com a saúde. Entre justificativas as mais absurdas e argumentos os mais frágeis, os votos contra a presidenta Dilma, contra a democracia e contra a Constituição foram sendo dados em meio a citações a “bons pais”, “bons maridos”, “Deus”, “família”, à cidade de origem de cada parlamentar, entre outras expressões que nada tinham a ver com a questão que se debatia no momento. Tudo sob o comando do então presidente da Casa, Eduardo Cunha, sabidamente motivado por vingança ao colocar a matéria em pauta, agindo para derrubar uma presidenta democraticamente eleita e sem guardar a menor consideração pela verdade, pela justiça, pela vontade soberana do povo brasileiro, expressa nas urnas, em mais de 54 milhões de votos, cassados por um golpe contra Dilma e contra a democracia.
Em um momento em que forças ultraconservadoras ousam tomar o poder de forma autoritária e antidemocrática, que pode ser o início de uma era de muitas dificuldades para a participação social, tive a honra de ter sido indicado por meu partido e eleito por meus pares presidente da Comissão de Legislação Participativa, da Câmara dos Deputados. Uma instância importantíssima para promover exatamente aquilo que a nova conjuntura deseja dificultar: a participação da sociedade, a voz aos cidadãos, a participação de cada pessoa, tendo seus direitos respeitados, suas denúncias escutadas, suas bandeiras levantadas clamando por respostas e transformação. Em um momento de ascensão de forças conservadoras, precisamos cada vez mais garantir e estimular espaços de participação social, instâncias de resistência ao golpe e às práticas atentatórias à liberdade. Ficaremos muito satisfeitos se, ao final de nossa gestão na presidência da CLP, a Comissão puder ter sido um espaço para essa resistência.
Histórico, objetivo e novas perspectivas
Criada em 2001, a Comissão de Legislação Participativa (CLP) tem justamente o objetivo de facilitar a participação da sociedade no processo de elaboração das leis. Através da comissão, a sociedade, por meio de qualquer entidade civil organizada, de ONGs, sindicatos, associações, órgãos de classe, pode apresentar à Câmara dos Deputados suas sugestões legislativas – desde propostas de leis complementares e ordinárias, até sugestões de emendas ao Plano Plurianual (PPA) e à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Essas sugestões podem dar origem a projetos em tramitação no Congresso Nacional, por meio da comissão ou de seus integrantes, constituindo um modo mais rápido e efetivo de promover a participação popular direta na elaboração de leis – em contraste com o chamado projeto de iniciativa popular, que depende de coleta de assinaturas de pelo menos 1% do eleitorado, distribuído por no mínimo cinco estados.
Acrescentamos a elas a missão de garantir um diálogo amplo, sobre temas de interesse da sociedade e que podem ser levados mais diretamente ao Congresso Nacional. A comissão pode atuar tanto em temas como a defesa do consumidor – nestes tempos de luta contra os reajustes da energia e contra as tentativas de limitar o acesso à Internet –, quanto na luta das mulheres, dos idosos, nas políticas afirmativas, nos movimentos sociais, neste momento em que já vemos muito claramente tentativas de cerceamento da liberdade, da mobilização e dos movimentos sociais, por aqueles que representam os setores mais conservadores da sociedade.
A própria situação das comissões da Câmara dos Deputados neste ano, que demoraram de forma recorde a serem definidas, deixou claro quão grave é a situação que vivenciamos no Brasil. Enfrentamos a quebra da democracia, da legalidade, do Estado Democrático de direito e até das prerrogativas dos parlamentares, tolhidas pela manipulação de Eduardo Cunha, que não deveria estar sentado na cadeira de presidente da Câmara nem possuía qualquer respaldo ou autoridade para comandar como fez, com mão de ferro e claro caráter persecutório, um processo de questionamento do mandato democrático da presidenta da República.
Em meio a todo esse cenário mais do que atribulado, valeu o esforço do PCdoB e o apoio dos partidos do campo popular para que pudéssemos contar com a Comissão de Legislação Participativa como um espaço de resistência ao golpe e de espaço aberto à democracia, de reforço da participação social, para preservar conquistas e evitar retrocessos graves, como os que antevemos agora, com as primeiras medidas do “governo” interino e golpista, atacando frontalmente direitos dos trabalhadores, prerrogativas dos aposentados e mesmo os investimentos públicos em saúde e educação. Incluindo até mesmo uma desavergonhada tentativa de ingerência sobre as administrações estaduais, pleiteando reproduzir também nos estados as medidas draconianas de redução de investimentos públicos e falta de compromisso com aquilo que é papel do Estado.
Papel estratégico em momento decisivo
As possibilidades de atuação da Comissão de Legislação Participativa são muitas e estratégicas, neste atual momento. Iniciamos os trabalhos promovendo uma ampla consulta aos movimentos sociais, para atualização das pautas de reivindicação a serem tratadas na comissão. Dessa pauta pode inclusive constar a proposta de realização de eleições diretas, que vem sendo defendida por diversos movimentos e entidades, como uma das possíveis saídas para o retorno à democracia e ao rumo progressista e popular no País, após o movimento golpista, atualmente em suspenso quanto à decisão final sobre o impedimento da presidenta, a ser tomada pelo Senado.
Para que as demandas populares tenham a devida força no Congresso Nacional, em participação direta, é fundamental que os movimentos sociais e entidades da sociedade civil estejam sempre presentes à Comissão como um espaço de debates, participando efetivamente e permanentemente de seus trabalhos. Nosso objetivo é garantir a participação popular na construção da pauta da CLP, contando com representantes de entidades da sociedade civil organizada de todo o país, dentre eles lideranças das diversas frentes dos movimentos sociais, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), além de membros da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), apenas como exemplos de muitas e muitas instituições e de variados movimentos com os quais pretendemos manter permanente diálogo.
Com essa participação plural e democrática, a Comissão alcançará sua meta de ser também um espaço para a luta pela preservação de conquistas da sociedade e para evitar retrocessos em campos como os direitos trabalhistas, as políticas afirmativas, as liberdades coletivas e individuais, os avanços de visibilidade e direitos dos negros, das mulheres e da comunidade LGBT. Assim como o objetivo de ser um importante espaço de defesa da liberdade de expressão, neste momento em que já vemos muito claramente tentativas de cerceamento de discurso, da mobilização e dos movimentos sociais, por aqueles que representam os setores mais conservadores da sociedade.
Primeiras ações: participação na prática
Entre as audiências já realizadas neste ano, promovemos mesa-redonda geral com representantes da sociedade civil organizada, no dia 18 de maio, para ouvir o ponto de vista e as sugestões das principais organizações que representam a sociedade brasileira, visando à construção de uma agenda para a Comissão. Tivemos o privilégio de contar com quase 30 entidades de todo o país participando do debate e discutindo temas acerca do meio ambiente, da defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Educação, dos povos indígenas e do direito à diversidade sexual. Todas as sugestões apresentadas durante o debate serão usadas na elaboração do plano de trabalho da Comissão para este ano.
Na ocasião, lideranças populares como Carina Vitral, presidente da UNE, enalteceram a coragem dos parlamentares ao realizar o encontro e defenderam seus posicionamentos ao enfrentarem a defesa da democracia. A líder estudantil considera, assim como nós, que a Comissão deve ser espaço de resistência, diante do ambiente político do país.
Já em 31 de maio a Comissão realizou um grande seminário sobre a situação e o papel das guardas municipais em todo o Brasil, contribuindo para as discussões sobre uma política de segurança pública mais cidadã e menos autoritária, mais próxima do dia a dia das pessoas e com maior capacidade de influir positivamente na realidade dos municípios. Entre vários outros representantes dos movimentos sociais, já participaram de audiências da Comissão em 2016 entidades como o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), a União dos Negros pela Liberdade (Unegro), a União Nacional LGBT (UNALGBT), a Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam).
Contra o desmonte da assistência social
No dia 8 de junho, a Comissão de Legislação Participativa realizou audiência pública denunciando a tentativa de desmonte da estrutura de assistência social pelo golpista e interino Michel Temer. Diversas entidades e representantes dos movimentos sociais alertaram para os graves riscos à seguridade social, direito garantido pela Constituição, com ameaças sérias ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e ao Sistema Único de Saúde (SUS), assim como à Previdência Social.
Defesa da democracia e do país
Já no dia 15 de junho, a Comissão de Legislação Participativa debateu o tema “Os desafios da construção da democracia no Brasil”, abordando o afastamento da presidenta Dilma, o golpe e suas consequências para o regime político e constitucional brasileiro.
Como destacou João Paulo Rodrigues, representante do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, no Brasil os períodos democráticos são curtos, sempre interrompidos quando as conquistas sociais começam a avançar. Representantes de diversas frentes do movimento popular também se manifestaram para criticar o golpe e reclamar o retorno da democracia e o respeito ao voto popular.
Em defesa da EBC e da comunicação pública
No dia 21 de junho, a defesa da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), duramente atacada no “desgoverno” do golpista e provisório Michel Temer, foi o tema da Comissão. Em audiência pública, a situação da EBC foi discutida em audiência conjunta com as comissões de Cultura e Direitos Humanos. Tivemos oportunidade de denunciar que, mesmo tendo sido derrotado no Supremo Tribunal Federal (STF) – que anulou a exoneração ilegal do diretor-presidente da EBC, Ricardo Melo –, o presidente ilegítimo não se intimidou e pretende encaminhar projeto de lei ao Congresso que pode resultar no fechamento da TV Brasil e do Conselho Curador da empresa. Poderá ser destruída uma experiência de oito anos, voltada para a construção de uma prática de comunicação balizada pelo interesse público.
Diversos representantes de movimentos sociais se associaram a essa preocupação e ao movimento em defesa da EBC como uma conquista importante para a ainda incipiente luta pela democratização da comunicação no nosso país. A Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública alertou para as fortes ameaças de desmonte da empresa, o que atingiria diretamente o direito da população à informação. Não por acaso, o governo interino e golpista também atacou o Ministério da Cultura, rebaixando-o ao status de secretaria e tendo de voltar atrás, após intensa repercussão negativa em todo o país.
Democracia e participação online
Uma das mais importantes questões suscitadas pela Comissão é a modernização dos mecanismos de participação cidadã, com novos canais, via Internet. A ampliação e a democratização do debate online, Laboratório Hacker da Câmara dos Deputados, são caminhos prioritários para a CLP, procurando contribuir para aproximar cada vez mais os cidadãos e os seus representantes, com ações como as do Lab Hacker e ferramentas como o portal e-Democracia. Há também o “wikilegis”, ferramenta colaborativa de proposições legislativas, estimulando os cidadãos a fazerem sugestões, avaliações e comentários e contribuírem com a elaboração de novas leis.
Próximos passos
Seguiremos trabalhando para que a Comissão de Legislação Participativa continue a abrir espaço para os movimentos sociais, para as reais e urgentes necessidades da sociedade brasileira, para as grandes bandeiras de nosso tempo, com destaque para o urgente retorno da democracia, do respeito à Constituição e ao voto popular. Estamos à disposição para garantir esse debate e para dar encaminhamentos concretos, com a apresentação de novos projetos de lei, a serem votados no Congresso Nacional, garantindo consequências práticas aos trabalhos da comissão. Contem conosco para esta empreitada. Se a vida pede coragem, o momento é de renovar as forças para a luta. Dependem de nós o Brasil, o povo, a democracia.
Sigamos no caminho certo, com coragem e consciência! Vamos à luta pela reconquista do direito de viver em um país democrático, soberano, capaz de escrever sua própria história e trilhar seu próprio caminho, rumo a uma realidade de menos desigualdades, mais avanços e mais justiça social.
* Chico Lopes é deputado federal pelo PCdoB-CE, presidente da Comissão de Legislação Participativa. Após três mandatos como vereador de Fortaleza e dois como deputado estadual no Ceará, está em seu terceiro mandato como deputado federal.