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Edição 141 > Máximo Gorki e o Realismo Socialista
Máximo Gorki e o Realismo Socialista

Um escritor como Máximo Gorki, o problema estético do realismo e a sociedade socialista são -expressões- que precisam ser compreendidas em conjunto.
E se é certo que devem ser vistas como elementos pertencentes a determinado período histórico, constituem também fatores com relativa autonomia, ligados por incontáveis mediações à universalidade humana, à formação ontológica do ser social, à inteira sociedade em seu devir.Por que escolhemos Gorki e a literatura russa- A escolha se deu, sobretudo, na medida em que representam algo paradigmático para a literatura realista universal, a literatura que encerra a perspectiva - teleológica - como fator catalisador do processo social e do progresso como uma necessidade da humanidade.
Na segunda metade do século XIX, de um modo simultaneamente amplo e profundo, só a literatura russa foi capaz de conservar, em si, a perspectiva da superação histórica, foi capaz de apontar para a necessidade e a possibilidade da construção da verdadeira história dos homens, de assimilar a ideia de progresso enquanto tendência inerente ao ser social.
Só ela foi, nesse período, capaz de se contrapor aos efeitos que ameaçavam as artes e a literatura na Europa ocidental, efeitos desencadeadas pela decadência ideológica burguesa, sobretudo após as jornadas de junho de 1848, quando o proletariado, de classe aliada à burguesia, se transformou, definitivamente, em classe para si.
A literatura realista nesses países se vê profundamente hostilizada pelas novas circunstâncias sociais do capitalismo monopolista.
Surge, num outro horizonte, uma literatura nova, de grande potência realista, de um vigor humanista que o ocidente não podia produzir, após Balzac, Stendhal e Dickens.
Este vigor, o leitor europeu iria encontrar, renascido, em Pushkin, Gogol, Dostoievski e Tolstoi.
E Gorki foi herdeiro direto dessa geração.
Gorki, além de se ligar a essa tradição interna, de escritores russos, que buscavam uma forma de representação própria, capaz de figurar o avanço do processo social capitalista em outras e novas circunstâncias, irá se ligar também, implicitamente, à tradição literária clássica, ao grande realismo do passado.
Por outro lado, Gorki se liga ao realismo revolucionário, à tradição realista russa que, como uma tendência social em curso, se liga definitivamente ao realismo socialista, ou melhor, a realismo de perspectiva socialista.
Se é herdeiro direto e indireto dos grandes realistas russos e do ocidente, Gorki cria também uma nova forma de expressão artística e literária, uma forma capaz de plasmar o novo conteúdo social em formação, isto é, a história em movimento.
A obra de Gorki constitui, portanto, entendida como parte integrante da tradição realista russa, uma espécie de elo para o ulterior desenvolvimento da literatura, na Rússia socialista e nos países ocidentais, sobretudo após a Segunda Guerra mundial; torna-se, por extensão, referência artística e política para o movimento do progresso histórico humano.
É o que percebe o filósofo Georg Lukács já nos anos 30, década em que, vivendo em Moscou, se dedica a trabalhos de crítica literária.
O nexo com a arte realista do passado apresenta um duplo caráter: de continuidade e de ruptura.
Gorki é herdeiro de Balzac e Goethe, de Shakespeare e Cervantes etc.
Mas há em sua arte também, em relação à herança burguesa, um nítido caráter de superação, quer dizer, de uma Aufhebung dialética, que, simultaneamente, nega e afirma, ultrapassa e conserva.
Pois, se na arte de Gorki vemos conservada a expressão maior do realismo crítico burguês (Balzac etc.
), há nela, na prática, também uma recusa da arte burguesa, sobretudo em seu período decadente, uma recusa dos métodos artísticos das vanguardas européias.
Não encontramos em seus livros aquele virtuosismo e experimentalismo literário vazio de conteúdo, nem há em sua forma literária a menor tendência para aquela pura técnica -artística-, que, desde os tempos de Goethe, se apresentava como uma tendência em moda, e que ganharia força total na fase da decadência burguesa, junto com a divisão capitalista do trabalho, junto ao aparecimento de uma sociedade de indivíduos de horizontes estreitos, de meros especialistas.
O vínculo da obra de Gorki e de seus contemporâneos russos com essa tradição maior, artística, cultural, histórica, foi, por muito tempo, mal compreendido.
Toda a literatura russa - não só a do realismo socialista, não só a de Gorki - foi recebida e lida de modo distorcido, falsificado, sobretudo no ocidente.
Os críticos e tradutores dessa literatura procuraram ignorar as grandes figuras literárias da democracia revolucionária russa.
Procuraram, ainda, desviar-se daqueles críticos que já apontavam para uma tendência revolucionária dentro da tradição literária russa, como faziam Herzen, Bielinsky, Tchernichevsky e Dobroliobov.
Tentou-se, enfim, dissociar a literatura socialista do realismo clássico russo.
Tolstoi e Dostoievski foram seqüestrados pelos ideólogos da burguesia decadente, apresentados ao público como escritores místicos, que se desviavam da realidade, que não queriam envolver-se em lutas históricas.
Pelo contrário, Lukács demonstra que Gorki se liga perfeitamente à tradição literária russa (como faz, por exemplo, posteriormente, um escritor como Mikhail Cholokhov que, pelo seu romance histórico O Don silencioso, é visto como herdeiro direto de Guerra e paz, de Tolstoi).
Gorki, de modo muito semelhante, se liga à herança realista russa e ocidental.
Lukács chega mesmo a compará-lo com Balzac, o que ficaria exposto em seu ensaio -A comédia humana da Rússia pré-revolucionária-, publicado em O realismo russo na literatura universal.
1Bem, sempre que insistimos nas categorias históricas do socialismo e do comunismo, quando defendemos a possibilidade da livre associação dos trabalhadores, o nome de Gorki se apresenta automaticamente como o de um escritor cuja lembrança se relaciona a esse horizonte de expectativas.
Mas muitos acreditam que ele, assim como Lênin e Marx, pertence ao passado, que deve se juntar ao reino daqueles antepassados iludidos e fracassados, dignos de esquecimento.
Entretanto, Gorki é visto, por uns e por outros, como escritor símbolo de toda uma geração de escritores e artistas que procuraram inaugurar uma nova etapa social.
A negação da sua importância é, portanto, igualmente simbólica.
Para nós, no entanto, resta a leve impressão, ou suspeita, de que, desde o decênio de 1990, deitou-se fora o bebê junto com a água do banho.
Justificar o nome de Gorki, associando-o à sociedade socialista, parece-nos, no mínimo, um tanto tautológico.
Mas foi a sociedade russa que abraçou a perspectiva socialista, lutou por ela.
Sociedade em formação que ninguém melhor que o escritor Gorki, na antevéspera (1905) e véspera (1917) da Revolução de Outubro, foi capaz de perceber e de tornar elemento constitutivo de sua obra.
Daí a capacidade de sua obra plasmar, com verdadeiro realismo, a vida e a história de um povo, das classes de baixo, que, como dizia Lênin, -não querem mais a antiga ordem-, e por isso foram capazes de reunir todas as suas forças essenciais para destituir do poder as classes que já não podiam mais viver na forma antiga.
Ao pensar sobre a obra e o envolvimento político de Gorki, justifica-se pensar o conceito realismo como um método literário que é, simultaneamente, clássico e socialista.
A oposição, um tanto mecânica, entre os termos Realismo socialista e Realismo crítico burguês se apresenta inexistente no conjunto da sua obra.
Pois não há, para Gorki, um impedimento de o realismo crítico ter uma perspectiva socialista; nem de ocorrer no realismo socialista o caráter crítico.
Georg Lukács, no prefácio à terceira edição, de 1951, da obra supracitada, diz algo sintomático em relação ao problema colocado acima.
Ao apresentar a lógica da organização dos capítulos nesta edição ampliada, ele comenta que o caráter do livro se altera qualitativamente com a inclusão de ensaios sobre a literatura soviética, ensaios que nesta edição compõe a segunda parte do livro.
Um dado muito curioso, porém, é que, além da inclusão de magníficos ensaios nessa segunda parte (todos dedicados a obras do realismo socialista), a necessidade de reorganizar o livro faz com que Lukács coloque os estudos sobre Gorki ocupando não mais a posição de fechamento, como nas edições anteriores, mas abrindo a segunda parte da nova edição.
Ou seja, os dois estudos sobre Gorki inauguram, significativamente, uma nova fase qualitativa da literatura russa, a do realismo socialista.
Assim, Gorki é apresentado, na história do desenvolvimento da literatura russa, como um marco, como o representante da virada (inflexão) para o novo realismo, como primeiro clássico do realismo socialista.
Gyulla Illyés2, lembrando-se de um diálogo com Lukács durante uma entrevista, diz que, para este: -As expressões comprometedoras do socialismo não deveriam ser rejeitadas, elas deveriam ser apuradas.
O realismo socialista, por exemplo, deveria ser convertido em um conceito útil.
Seu conteúdo não é tão limitado como queria Zdhanov (.
)-.
Na opinião de Lukács, diz Illyés, o realismo socialista -se constitui daquilo que Gorki - com seu exemplo - lhe atribuiu.
Até mesmo a autocrítica não se pode deixar ficar dentro do círculo de idéias do carreirista e do chefe de carcereiro.
- Então, é assim que Lukács, na entrevista concedida, sintetiza sua posição - crítica e autocrítica - no que tange o realismo socialista: -É isto: o caráter mais agudo e firme é necessário para se tornar um debatedor vitorioso de si próprio, até mesmo em relação ao próprio interesse.
-3Aqui, portanto, para concebermos o realismo socialista como uma expressão historicamente nova dentro do realismo crítico, temos que partir de um ponto de vista radicalmente diverso do ponto de vista da geração de artistas do realismo clássico, sobretudo, daquela pertencente à era da burguesia decadente e apologética.
Temos agora, como ponto de partida, o olhar de um novo ser social, o proletário.
O personagem Oblomov, de Goncharov, é a última encarnação do homem supérfluo, que a revolução precisa destituir, e é essa mesma classe supérflua que Gorki representa na figura de Foma Gordeiev.
A partir da consciência de que o proletariado significa a dissolução revolucionária da sociedade burguesa, apresenta-se uma nova possibilidade de figuração, a figuração do operário consciente do seu papel histórico.
Logo, esse operário consciente, agora, converte-se em verdadeiro herói -positivo-.
Diferentemente dos protagonistas da sociedade burguesa, heróis -problemáticos- (situados, na verdade, diante de contradições antagônicas e insolúveis), mas que se apresentam como positivos, (pois querem acreditar na possibilidade do seu mundo, do mundo burguês), trata-se aqui de heróis radicalmente diferentes, potencialmente opostos.
No mundo que se anuncia, a maioria dos protagonistas se apresenta como homens que percebem a possibilidade de emancipação de sua própria classe, do proletariado.
Como são operários, pertencem à classe que luta contra as contradições da antiga forma social, a última ordem de contradições antagônicas.
Os elementos passíveis de críticas não pertencem a contradições do próprio proletariado, a contradições essenciais; são agora apenas elementos superáveis ligados à -ideologia herdada da classe inimiga-, como afirma Lukács; por isso, -a mais severa autocrítica não eliminará aqui o caráter positivo do herói-4.
O destino de um Julien de Rubemprè ou mesmo de um Werther é o destino de homens que vivem num momento da história da humanidade em que o valor máximo é o do indivíduo, do sujeito -livre- em sua vida privada.
Balzac foi esse historiador da vida privada, do homem que busca a felicidade nos limites do seu pequeno cárcere privado (o cárcere privado da solidão).
Se Balzac é esse historiador da vida privada, Gorki, pelo contrário, vive um momento histórico que o torna, objetivamente, capaz de plasmar artisticamente uma nova tendência social, o momento em que as classes dominantes russas não mais podiam manter a ordem feudal nem eram capazes de introduzir, de modo dinâmico e consequente, as relações sociais de produção burguesas, que apresentavam, já na era do imperialismo europeu, contradições insolúveis.
No romance A mãe, Pavel, assim como a sua mãe, faz a opção do operário, daquele que nada tem a perder, só a ganhar.
Se encontra às vésperas de uma revolução proletária, a de 1905.
São personagens que, portanto, encarnam uma nova tendência social, uma nova e particular situação histórica; semelhante à das jornadas de 1848 na França e na Alemanha, mas nova e particular, porque acrescida da experiência do proletariado ocidental derrotado.
Portanto, não se trata aqui de opções realizadas idealisticamente; as opções de Pavel e de sua mãe são, do ponto de vista da perspectiva, concreta e historicamente possíveis.
Gorki capta essa história em movimento, pressente a tendência social em curso, como um devir.
Assim, os vagabundos que povoam as obras de Gorki são um fenômeno social e histórico claramente definido.
Após compartilhar, pessoalmente, as misérias e alegrias destes vagabundos, o escritor procura captar artisticamente as situações e atitudes de homens que, no final do século XIX, fustigados pela fome, fugindo das regiões geladas da Rússia, percorrem milhares de verstas a pé.
Homens que buscam, em regiões desconhecidas, trabalho e outros meios de sobrevivência, e que não hesitam em atentar contra o -direito à propriedade-.
A tendência social mais típica daquele momento era a de uma inusitada predisposição para a violência, para a luta corporal, para um enfrentamento radical das instituições burguesas e semi-feudais.
E é Gorki o construtor pioneiro desse realismo de novo tipo, que brota da verdadeira popularidade, que conecta os fenômenos da vida popular aos seus problemas essenciais.
Mas no período de Gorki, essa fidelidade às aspirações verdadeiramente populares compreende que, como dizia Lênin, havia um conteúdo histórico a ser desenvolvido, um conteúdo inegável, o conteúdo da herança cultural burguesa.
Nesse sentido, havia um programa a ser levado adiante, o programa da revolução burguesa, mas que agora seria levado adiante contra os interesses da burguesia.
Portanto, as promessas da revolução burguesa deveriam ser levadas a cabo, agora, contra a burguesia, permitindo a passagem da revolução burguesa à revolução proletária.
* Bernard Herman Hess é doutorado em Literatura pela Universidade de Brasília (2006).
Foi consultor do Ministério da Educação.
É professor adjunto do Curso de Licenciatura em Educação do Campo da Universidade de Brasília.
É pesquisador do Grupo de pesquisa -Literatura e Modernidade Periférica-.
Notas(1) LUKÁCS, Georg.
-Die menschliche Komödie des vorrevolutionären Russland- in Probleme dês Realismus II Neuwied und Berlin: Luchterhand, 1964.
(2) Poeta e romancista húngaro.
(3) Gyulla Illyés apud Benseler, Frank et alii (orgs.
) Goethepreis 70 - Georg Lukács.
Luchterhand Verlag: Neuwied und Berlin, 1970.
[tradução nossa](4) LUKÁCS, Georg.
-Nota sobre o romance- in NETTO, José Paulo (org.
).
Lukács.
São Paulo: Ática, 1992, p.
186.