Resenhas
Edição 140 > CRÔNICAS SEPEENSES: DAS VIVÊNCIAS LOCAIS ÀS INQUIETAÇÕES UNIVERSAIS
CRÔNICAS SEPEENSES: DAS VIVÊNCIAS LOCAIS ÀS INQUIETAÇÕES UNIVERSAIS
Tempo e conhecimento nas memórias de São Sepé: das vivências locais às inquietações universais

Autora: Maria Aparecida Dellinghausen Motta
Ano: 2014
Pags.: 176
Formato: 15,5x22,5 cm
Editora: Autores Associados
ISBN: 978-85-62018-17-6
Preço: R$ 46,00
Disponível em: www.autoresassociados.com.br
Muitos tempos vivem no tempo de Maria Aparecida Dellinghausen Motta, o tempo brasileiro é um deles, principalmente aquele tempo das vivências locais da tradição produzidas pela colonização alemã no sul do país e que conduzem a autora às inquietações universais. Tradição e modernidade se entrelaçam na composição da belíssima coletânea Crônicas Sepeenses: das vivências locais às inquietações universais (2014).
O título traduz o tom adequado das memórias de uma menina feliz que compartilha com os leitores uma infância sem medo. O ponto de partida é a memória de vivências e laços familiares que lhe asseguram tranquilidade para fazer aflorar das reminiscências infantis, reflexões filosóficas sobre a precariedade da nossa existência no presente, e simultaneamente vislumbrar as nebulosas nuvens que pairam sobre o futuro incerto. Alienação e consciência se mesclam e tensionam a produção de um peculiar conhecimento que nos remete ao núcleo de bom senso aprendido com Gramsci. É então aqui que a arte literária de Maria Aparecida converge com o ponto de vista de autores que se inscrevem como produtores da estética materialista, pois para eles a tarefa exclusiva da arte literária é tomar posição nas lutas de seu tempo. Retornando para a realidade brasileira esquecida, ela demonstra que a categoria da totalidade pode assumir formas distintas, até nas brincadeiras infantis de catar caquinhos ou na memória da truculência da ditadura militar sobre um jovem militante desaparecido.
A alienação desvelada na inconsequente produção de um mundo globalizado expõe com clareza o processo de múltiplas rupturas que culminam com a inserção negativa do Brasil no concerto das nações desenvolvidas. A ruptura da dinâmica relação do homem com a natureza conduz a autora pelos meandros dessa estética.
Para além da contextualização histórica e geográfica da pequena cidade São Sepé no Rio Grande do Sul, a autora promove com simplicidade e sabedoria, uma reflexão sobre a parte Brasil e sua inserção no todo universal. As crônicas se encadeiam num competente e delicado trato literário de tal forma a nos fazer ver múltiplos tempos imbricados no seu tempo criança.
Editada pela Autores Associados, a coletânea se inscreve na proposta Ciranda das Letras, que busca alcançar com muita sensibilidade e poesia o público infantil e juvenil. Todavia o título e subtítulo reverberam um tema muito mais complexo, qual seja, a dialética da identidade que se realiza em múltiplas relações da autora; num primeiro momento com as crianças da sua família, com seus parentes e outras crianças do mundo rural em que viveu sua infância e adolescência. Num segundo momento, compartilha suas inquietações universais. De fato, é a contraposição entre o devir criança e a construção caótica e fraturada da realidade global. São passagens ricas de construção existencial que ela partilha dadivosamente com os leitores de suas crônicas. Trata-se de discutir a essência humana e defini-la pela oposição entre a essência do homem, mulher ou criança como ser consciente e livre e a sua situação histórica real que se apresenta como a perda da qualidade de vida, seja na poluição dos rios ou no apelo que finaliza o livro: Para onde foram as flores-
A capa do livro, por si só é uma obra de arte produzida por Benjamim, filho da autora Maria Aparecida e de Dermeval Saviani. O desenho de Benjamim é uma alegoria que faz emergir as mais doces lembranças de uma noite de Natal. Peculiar memória reprimida pela expansão da indústria cultural escondendo valores existenciais, que teimam em permanecer impregnados no cotidiano das relações tradicionais. Aí o velho e o novo se mesclam trazendo à tona as questões da espiritualidade que necessitam da mediação artística para aflorar das profundezas da subjetividade reprimida e objetivar-se na poesia das relações e brincadeiras peculiares da temporalidade e vida infantil.
Eis que na contraposição da produção da existência e seu reflexo na consciência do tempo peculiar e modos de existir de Maria Aparecida, recuperamos, com ela e seu filho Benjamim, a memória de nossa própria produção da consciência.
O livro não se destina apenas às crianças e jovens; todos podem mergulhar nas águas límpidas do Lageado, voltar para a escola de D. Francisca, ou ainda, aprender as lições de vida com o seu pai em Aroeira dá Coceira-. Podemos também brincar de arqueólogos juntando os caquinhos das nossas vidas implodidas pela ruptura com a vida natural do campo em trânsito para a cidade. O capítulo intitulado Primeira arqueologia, não é senão o rememorar da pergunta sobre qual é a diferença específica da atividade produtora do homem- Ao desenterrar os caquinhos dos objetos descartados, a sabedoria infantil responde: é que ao serem produzidos pela atividade humana foi-lhes atribuído valor, pois então, a brincadeira estava justamente em desvelar ou imaginar que valores estavam ali impregnados!
Na mais bela crônica que compõe o livro, qual seja, O escolar, novamente Benjamim nos emociona como personagem principal. Como não nos emocionarmos com a mãozinha do escolar buscando segurança na mão da mãe que o conduz- Mãe que oscila na condição maternante e desejo de reter consigo o filho amado, ao mesmo tempo que mergulha no turbilhão de sentimentos contraditórios frente à necessidade de libertá-lo para a vida, levando-o para o seu primeiro dia na escola!
Outra emoção vem no bojo das primeiras letras aprendidas no regaço de mãe admirável com o primeiro livro Queres ler- Livro que sendo seu, pela magia do tempo familiar, promoveu a alfabetização de todos os seus irmãos e demais crianças da família.
Com a coletânea Crônicas Sepeenses, Maria Aparecida tem o mérito de esclarecer a dinâmica da produção da consciência no campo de uma estética literária que poucos autores sabem produzir. Nesse âmbito, com o auxílio da memória das suas experiências cotidianas no devir criança, ela aponta para uma possível totalidade épica, contraposta analogamente à consciência crítica que aflora das relações de trabalho, mesmo que familiares, objetivando a totalidade de relações que constroem a vida de uma pequena Cidade no Rio Grande do Sul. De uma forma ou de outra, os adultos da atualidade vivenciaram na infância as mil peripécias e diabruras infantis descritas neste pequeno/grande livro.
O desenho da pracinha da cidade de São Sepé nos leva por um belo rememorar o verdadeiro sentido do Natal. Conduzidos pela sensibilidade de Maria Aparecida e pela arte de Benjamim, transitamos do momento presente para o passado e simultaneamente vislumbramos o futuro que, antecipando-se, promove o caos explícito no desrespeito às águas de março. Futuro sombrio que cerceia e rouba a nossa emoção.
Nessa dialética criada pela cumplicidade entre mãe e filho, reafirmamos no pinheirinho de Natal e nas peraltices infantis a consciência do nosso existir. Para muito além do desenho, vivificamos o burburinho alegre daqueles que por ali transitavam expressando cordialmente reconhecimento, cooperação, reciprocidade e identidade sociocultural. Não há como não ver no pinheirinho e na Igrejinha da Praça das Mercês de São Sepé, os seus personagens. O padre Otávio e os pecadilhos infantis não confessados; os primos que nas travessuras e ousadias do esconde/esconde, resgataram sem intervenção de adultos valores éticos da religiosidade familiar. E quem na infância não conheceu um Tio Colosso- Ou um médico para além da medicina-
Do preparo da comida com a participação das mulheres, no prazer dos banhos de riacho e na simultaneidade da roupa sendo colocada nos arbustos para alvejar, mãe e filho se encontram com o firme propósito de compartilhar com os leitores muitas histórias para o despertar de emoções esquecidas. O campo e a cidade são lugares da memória e palco das aventuras de uma menina gaúcha que podemos acompanhar na Viagens, me dera Deus! As emoções do malogro com a carroça quebrada! A frustação de uma tão esperada viagem para visita a familiares, ensina as crianças a lidar com frustrações fome e frio. Mais que isso, eles descobrem no encontro com diferenças radicais a revelação da rusticidade da vida e a beleza da reciprocidade. A solidariedade de uma dona de casa submissa, mas firme na decisão de acolher os viajantes, coloca em cena o verdadeiro sentido do estranhamento e do medo que chega com o estranho marido. O reconhecimento da humanidade dos estranhos que chegam abatidos pelo frio e fome, revela o humanismo que se escondia por detrás das atitudes rudes de um camponês.
As vivências de Maria Aparecida, com as quais nos identificamos, faz-nos voltar à nossa infância e pela mediação da memória adentramos ao mundo mágico de suas muito bem construídas narrativas. Nos rituais familiares de iniciação da criança à vida produtiva, na tradição cultural gaúcha, encontramos um cadinho de Brasil que tem o poder de nos fazer voltar ao tempo de outras infâncias, sejam mineiras, bahianas, cariocas, paulistas. Nas marcações temporais que se revelam pelos sentidos, cheiros, gostos e nos quais vislumbramos não apenas as passagens emocionais e subjetivas ligadas às tradições que enraízam os gaúchos, descobrimos tratar-se das nossas próprias raízes.
Cada personagem com suas peculiaridades espelha nossa infância. Pelas memórias da autora, desfilam sujeitos repletos de historicidade local pelos quais podemos reviver a nossa própria construção histórica. Com maestria de quem conhece e domina a estética materialista, Maria Aparecida trata em suas crônicas da especificidade filosófica do reflexo estético sob sua impregnação existencial marxista. Assim, esta forma peculiar de estática aplicada à construção dos textos literários faz brotar da memória momentos de carinho nas histórias infantis contadas pela avó, de respeito pelos valores da tradição religiosa nos momentos de traquinagens, da sabedoria paterna no belo texto Aroeira dá coceira- Novas descobertas! Ao final, a dialética da existência e consciência do existir da menina Maria Aparecida, em devir histórico vai da primeira infância à adolescência e maturidade.
Abrindo uma fresta por onde passa uma suave brisa, a autora nos leva à rememoração de nossa própria infância e reencontramos nossos pais, mães, irmãos, avós primos e vizinhos; De mansinho, os seus e os nossos amigos, vizinhos e muitos outros personagens se apresentam trazendo em sua bagagem muitas histórias que compartilham com todos os brasileiros, o seu e também o nosso processo de devir histórico.
Como não reconhecer na Mãe admirável a primeira e mais eficiente professora que insere a filha no mundo mágico da leitura e da escrita- Eficiência que um pouco mais tarde se manifesta também nos afazeres pedagógicos da frágil professora dona Francisca- E o que dizer da dedicada mediação promovida por dona Eponina, no manejo da arte da telefonia- Múltiplas experiências que se interpenetram na simplicidade do viver de uma época, fosse na São Sepé ou do campo, próximo a ela.
Vivências que na expressão despojada das crônicas reatualizam, no presente, as complexas relações sócioantropológicas de um viver coletivo que, naquele momento, prepara o Brasil para sua inserção na nova ordem mundial. O capítulo Personagens revela como sutilmente o traço e a arte arquitetônica de Um brasileiro chamado Oscar promovem magistralmente esta inserção.
Vitualhas é outro segmento que com polêmicas e exóticas práticas de preservação dos alimentos, relembra o núcleo de bom senso e sabedoria revelados por Gramsci com a sua comprovação de que todos os homens são filósofos. Com isso, ela torna possível um verdadeiro pensamento crítico e transformador da realidade. Com ternura, a autora define as três grandes formas de pensamento: a Arte, a Ciência (extraída do núcleo de bom senso do homem comum ligado à terra) e a Filosofia, que fecha o livro.
Assim, expondo o “quadro de desolação que obscurece a memória e turva as almas (antes puras) que ainda teimam em voltar-se para vivências tão ternas e longínquas” (p.7), ela encerra suas crônicas. Eis a grande contribuição desta coletânea, atualizar no presente relações, obscurecida por um processo de desenvolvimento nacional alienado e pouco identificado com a cultura de seu povo.
Não podemos deixar de ressaltar também as lembranças amargas de um período que não queremos e não podemos esquecer. Aqui encontramos a figura do jovem Cilon Cuha Brum, a quem Maria Aparecida presta sua homenagem ao recuperar a memória do jovem estudante revolucionário que partiu para a guerrilha. Militante do PCdoB, ele foi arrancado, pelas mãos de ferro da ditadura militar, do seio de sua família no dia do batizado de sua sobrinha e afilhada Liniane. Hoje, essa sobrinha jornalista é guardiã dessa memória que compartilha com todos os brasileiros em seu livro, Antes do passado. Com a fibra de seu tio, ela enfrenta o silêncio que ainda obscurece a memória da coragem e determinação do jovem Cilon. Esclarece a trajetória daquele que vivendo na clandestinidade embrenhou-se na guerrilha do Araguaia, escreveu a história de nosso país e desapareceu, sem que seu corpo pudesse descansar entre os seus, num túmulo da cidade de São Sepé.
Por tudo isso que consegui sintetizar, ainda que muito sucintamente, e por tantos outros valiosos registros, a leitura deste livro se enriquece ainda mais com a contextuação trazida pelo belo prefácio de autoria de Dermeval Saviani, que compartilha com a autora sentimentos e emoções, nascidos do conhecimento que também ele veio a ter de São Sepé.
* Francisca Eleodora Santos Severino é
professora de Políticas Públicas e Cultura Brasileira, no Programa de Mestrado em Educação- PROGEPE/ UNINOVE/SP
Referência
MOTTA, Maria Aparecida Dellinghausen, Crônicas Sepeenses: das vivências locais às inquietações universais. Campinas: Autores Associados, 2014