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Edição 138 > Juristas defendem Estado Democrático e condenam a politização do Judiciário
Juristas defendem Estado Democrático e condenam a politização do Judiciário
À luz de casos flagrantes de judicialização da política e politização do judiciário, juristas renomados debatem os ataques ao Estado Democrático de Direito e seus valores basilares, assim como a tentativa de impeachment sem bases legais contra a presidenta Dilma Rousseff

Desde o acirramento da disputa eleitoral de 2014, que culminou com a reeleição da presidente Dilma Rousseff, o Brasil vem enfrentando uma aguda crise política, fruto também do inconformismo de setores da oposição de direita e da mídia que se recusam a aceitar o resultado soberano das urnas e vêm insuflando movimentos de rua a pedirem o impeachment da presidente. Ao mesmo tempo, os desdobramentos da Operação Lava Jato, conduzida pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, sob a liderança do juiz de primeira instância do Paraná, Sérgio Moro, agravam a crise e adicionam um elemento preocupante: o atropelo de direitos e garantias constitucionais, manifestado através de uma verdadeira “caça às bruxas”, com dezenas e dezenas de prisões preventivas, acusações baseadas apenas em delações sem provas, vazamentos seletivos destas delações com claros objetivos políticos e restrição do direito de defesa dos acusados. Somado a isso, assiste-se ao crescimento galopante das manifestações de intolerância e do discurso de ódio, e a uma incessante campanha difamatória e denuncista – promovida pela grande mídia com o auxílio de setores do próprio Judiciário – visando criminalizar a atividade política.
Diante desde cenário, um contingente cada vez maior e mais representativo de juristas tem se levantado para manifestar sua preocupação com a escalada do autoritarismo e do golpismo que ameaça a estabilidade democrática do país e traz riscos para o Estado Democrático de Direito.
Alguns destes juristas, junto com parlamentares e acadêmicos, estiveram reunidos no último dia 19 de agosto, em Brasília, no seminário Estado Democrático e a Judicialização da Política. O evento foi promovido pelas fundações Perseu Abramo, Maurício Grabois, Ulysses Guimarães e Leonel Brizola/Alberto Pasqualini, na Câmara dos Deputados. Na pauta, os ataques ao Estado Democrático de Direito e a tentativa de impeachment sem bases legais contra o mandato da presidenta Dilma Rousseff.
Conduzida pelo presidente da Fundação Maurício Grabois, Adalberto Monteiro, a mesa de debates foi composta pelo secretário-geral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cláudio Pereira Souza Neto; o ex-presidente do Conselho Federal da OAB, Marcello Lavenère Machado; e pelos juristas Professor Benício Viero Barbosa Schmidt e Menelick de Carvalho Netto, da Universidade de Brasília (UnB).
Indicadas pelas fundações, as participações dos parlamentares Ronaldo Lessa (PDT/AL), Lelo Coimbra (PMDB/ES), Wadih Damous (PT/RJ) e Chico Lopes (PCdoB/CE) enriqueceram o debate.
Enfrentar a crise fortalecendo a democracia
O mediador do debate, Adalberto Monteiro, apontou dois pontos convergentes entre os participantes do seminário: a convicção de que há uma tensão e uma crise no país, uma crise política perpassada por uma crise econômica, mas que a sociedade brasileira deve resolver suas crises no âmbito da democracia, fortalecendo-a. “Ficou muito nítido no debate que o respeito à soberania popular do voto é um valor inegociável. A presidenta Dilma Rousseff foi eleita por 54 milhões de brasileiros e brasileiras, não há nada que a incrimine. Portanto, é preciso repelir as ameaças golpistas, manifestadas em propostas como o impeachment ou coisa que o valha, e respeitar a decisão do povo manifestada através do voto popular.”
A relação entre os poderes da República (Judiciário, Executivo e Legislativo) foi, segundo Monteiro, outro tema importante do debate. Ele avalia que ficou claro que, apesar do reconhecimento e respeito ao Judiciário, constata-se que há abusos, excessos, não de todo o Judiciário, mas de setores dele. “Aqui surge uma mensagem forte de que numa temática muito cara ao povo, que é o combate à corrupção, o Estado Democrático de Direito já tem os instrumentos necessários para este combate e não podemos aceitar que direitos sejam pisoteados em nome desta bandeira”, afirmou.
Falando em nome das quatro fundações promotoras do debate, Adalberto Monteiro leu no início do evento um manifesto que denuncia as tentativas de golpe e aponta que “sem nenhum fato, sem nenhuma base legal, jurídica, a direita neoliberal, com o apoio da grande mídia, na sua ambição de reaver o governo a qualquer preço, passou a pisotear em linha crescente a institucionalidade democrática”.
O manifesto conclui afirmando que a defesa do Estado Democrático de Direito “neste momento, se materializa na defesa do mandato constitucional da presidenta Dilma Rousseff”.
Para o presidente da Fundação Perseu Abramo, Marcio Pochmann, a iniciativa do seminário é muito importante e histórica. E não poderia ser feita em outra casa, se não no Congresso. Pochmann alertou: “A democracia brasileira tem seus defeitos, mas é o melhor regime de governo e de participação. Apesar de ter um período não tão longo, ela está sendo questionada. Isso é grave! Precisamos respeitar a democracia!”.
Judicialização da política e politização da justiça
Primeiro a falar, Cláudio Pereira Souza Neto, da OAB, levantou três aspectos que, para ele, são fundamentais no atual contexto do Brasil: a relação entre democracia e poder judiciário, a diferença entre judicialização da política e politização da justiça e a importância de se proteger o desenvolvimento de um patriotismo contemporâneo e constitucional, que, para ele “se traduz no amor à Constituição e na luta pela preservação da estabilidade constitucional”.
Sobre o último conceito, Souza Neto afirma que no Brasil tem sido cultivado um sentimento de patriotismo constitucional sensível e importante no ambiente pós-1988, e é importante seguir esse caminho. “Qualquer saída para qualquer processo político, para qualquer crise constitucional que não respeite a Constituição, que não respeite o voto popular, que não respeite o devido processo legal é um elemento de atraso e de retrocesso para o nosso país”, afirmou.
O secretário-geral da OAB ressalta que hoje o Brasil é respeitado no mundo porque é um país democrático, que respeita as eleições, que faz eleições sérias e onde os três poderes atuam de forma independente. “Abrirmos mão do constitucionalismo para dar vazão a ambições menores de determinadas forças políticas é dar passos para trás. É abrir mão do status de país respeitado, de país decente que hoje o Brasil ostenta para orgulho de todos nós”, destacou.
Ao abordar os conceitos de judicialização da política e politização da justiça, Souza Neto argumenta que é preciso diferenciar os dois conceitos. “É certo que haja judicialização quando o Legislativo deixa de cumprir determinadas tarefas ou quando, por exemplo, o Parlamento decide contra a Constituição”, afirmou. Ele citou o caso do financiamento empresarial de campanha, no qual o Supremo Tribunal Federal (STF) já se posicionou majoritariamente contra, mas a Câmara foi na contramão e aprovou este tipo de financiamento eleitoral. Souza Neto considerou que o poder judiciário atua corretamente na esfera que lhe é própria quando, por exemplo, trata do reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas ou quando o Legislativo “extrapola” e “fere” a Constituição votando na mesma legislatura o tema mais de uma vez como foi o caso da redução da maioridade penal.
“Então, o poder judiciário, quando atua no sentido da proteção destas regras procedimentais, ele está atuando de modo circunscrito à esfera que lhe é própria, a da garantia das regras do jogo democrático. Ele não está interferindo no resultado do processo político, ele está garantindo respeito às regras que devem balizar este processo. Portanto, a judicialização da política legítima é aquela que se restringe a este plano, ao plano da preservação da Constituição, da preservação do Estado Democrático de Direito, da preservação dos direitos fundamentais, das regras do jogo democrático que se traduzem no devido processo legal, no devido processo legislativo”, afirmou Souza Neto.
Já em relação à politização do Judiciário, o representante da OAB é enfático na crítica. “Isso é gravíssimo, é reprovável, é um atentado ao Estado Democrático de Direito. Um magistrado, um juiz não pode agir como justiceiro. Fazer justiça é cumprir a lei. Não é concebível um magistrado agir de forma midiática para obtenção de resultados e não agir para garantir a aplicação da lei”, afirmou.
Juízes celebridades
Em suas falas, os professores e cientistas políticos Menelick de Carvalho Netto e Benício Viero Schmidt também reforçaram a necessidade de se respeitar os resultados das urnas e criticaram o protagonismo midiático de alguns magistrados.
Viero Schmidt destacou que, dificilmente, em outro país semelhante ao Brasil, tem-se uma popularização de magistrados, como atualmente se vê no país. “Hoje os magistrados, em geral, quanto mais superior a corte mais expostos são. São praticamente celebridades, no conceito Rede Globo de celebridade. E isso prejudica, obviamente, as funções dos magistrados e o papel das cortes; não só porque eles aparecem como estrelas, mas porque eles criam uma opinião pública, antes que a opinião pública possa ser consultada”, reflete.
Segundo ele, a judicialização da política é um fenômeno internacional, não acontece apenas no Brasil, e é crescente. Viero acredita que isso acontece porque os parlamentos, por mais qualificados e preparados que sejam, “não conseguem dar conta das áreas de abrangência do processo decisório”.
Menos otimista que o representante da OAB quanto à existência de um patriotismo constitucional, para Viero Schmidt a questão da judicialização da política “ou politização da justiça”, se iguala, “aparece dialeticamente; não porque ela é um problema em si, mas porque ela é causa de um processo complexo, que envolve o poder legislativo, o executivo e o sistema judiciário”, problematizou.
“Estamos numa época muito mais difícil do que a gente imagina. Alguns administradores da justiça acham que estão empoderados de poderes divinos. Não é de graça que os membros das câmaras superiores do Judiciário usam um manto, como se fosse um manto sagrado”, compara.
Ao parabenizar as fundações pela iniciativa, Menelick Netto afirmou que a inquietação do momento é a necessidade de enfrentamento ao risco fundamentalista, que anula qualquer possibilidade de liberdade constitucional. “O debate hoje foi importante. A imprensa cobra o Judiciário, as expectativas recaem sobre o Judiciário. É importante um Judiciário atuante, mas o risco é que ele atue demais, o risco é que ele substitua a democracia, e esse é um risco concreto”, avaliou.
“Por mais pesada que seja a história institucional de um povo, nela há sempre fragmentos de racionalidade democrática e momentos de pura facticidade. Aliás, o desafio que podemos e devemos colocar, em qualquer lugar do mundo, é o de como podemos incrementar os momentos democráticos e de respeito aos direitos básicos de todos. Nossa história institucional é tão disruptiva e conturbada que, sem dúvida, tivemos, e ainda temos, muito que reaprender na prática do jogo institucional democrático. No entanto, é também nessa história, lida à sua melhor luz, que encontraremos as sementes dos hábitos a serem cultivados. Ao meu ver, a Constituinte de 1988 é um momento fundacional a ser mantido vivo e reinaugurado a cada passo desse processo de aprendizado”, diz Menelick.
Sem motivos para o impeachment
O jurista Marcello Lavenère Machado, ex-secretário nacional do Conselho Federal da OAB e ex-presidente da Comissão de Anistia, também defendeu a manutenção dos resultados das urnas. Mas reforçou a necessidade de o país repensar o modelo de escolha dos seus representantes nos poderes Executivo e Legislativo. Segundo ele, atualmente o pleito eleitoral está dominado pela influência do poder econômico, o que prejudica o interesse popular. “Com várias exceções, os eleitos ficam subordinados a quem pagou a sua campanha”, criticou.
Machado afirmou que o melhor para a democracia é o respeito pela vontade popular e que, por isso, a mídia, que tanto tem influenciado diretamente a opinião pública, deve ser controlada. “A mídia está fora de controle. Não podemos viver com uma mídia que, antes de julgar, condena. A opinião midiática faz com que a opinião pública seja montada”, opinou.
Lavernére disse que o Judiciário tem um papel fundamental como guardião da Constituição, na defesa dos direitos fundamentais e na garantia dos direitos das minorias. “É um poder que não pode ser politizado, que não pode servir a interesses menores de partidos políticos, que não pode ser sensível aos apelos midiáticos”, afirmou. Ainda sobre este tema, Lavernére disse que atualmente há um protagonismo exacerbado do Poder Judiciário. “Estamos vivendo uma inversão de poderes, quem vai decidir sobre o mandato da presidenta Dilma Rousseff é o Tribunal de Contas da União ou o Tribunal Superior Eleitoral”, enfatizou.
Lavenère foi o advogado que assinou, junto com Barbosa Lima Sobrinho, a peça jurídica de denúncia que levou ao impeachment do presidente Fernando Collor, em 1992. Semanas após o seminário em Brasília, ele voltou a falar do papel político da imprensa, desta vez para registrar que tem sido procurado por jornalistas para opinar sobre a atual crise política e sobre sua posição em relação ao movimento que pede o impeachment da presidenta Dilma. “Vários jornalistas que cobrem as denúncias contra Dilma já me ligaram para pedir que eu fale sobre o impeachment do Collor. Mas quando eu digo que são situações muito diferentes e que eu acho que não há a menor razão para se falar em impeachment da Dilma, eles perdem o interesse e desistem da entrevista”, revela.
Lavernère explica que “contra Collor, havia fatos. Contra a Dilma, não há nada. Há um movimento político, que vinha desde a campanha. É aquela velha visão autoritária, que dizia: ela não pode se eleger; se for eleita, não tomará posse; se tomar posse, não poderá governar. Depois que Dilma passou pelas etapas anteriores, nós chegamos a este estágio. Sem prova nenhuma, sem fato algum, em que se tenta impedir de qualquer maneira uma presidente eleita de governar. Os fatos não importam aqui. A prioridade é política: precisam encontram fatos capazes de impedir seu governo. É uma decisão política, que querem cumprir de qualquer maneira”.
Dallari: TSE não pode cassar mandato presidencial
A opinião de Levernère é compartilhada por um dos mais importantes juristas do Brasil: o professor emérito da USP, Dalmo de Abreu Dallari.
Após o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovar a abertura, a pedido do PSDB, de uma investigação sobre as contas de campanha da presidenta Dilma Rousseff, Dallari emitiu parecer técnico demonstrando que aquela Corte não pode anular a eleição da presidente da República e seu vice.
No caso do TSE, há um agravante: um de seus integrantes, o ministro Gilmar Mendes, do STF, tem feito declarações públicas à imprensa com alto teor oposicionista, alinhando suas opiniões à dos que defendem a cassação do mandato da presidenta Dilma.
Em seu parecer, Dallari resgata o conteúdo do artigo 14, parágrafo 10º da Constituição, que diz expressamente: “O mandato eletivo poderá ser impugnado ante a justiça eleitoral no prazo de 15 dias contados da diplomação, instruída a ação com provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude”.
“Está expresso na Constituição. A competência da Justiça eleitoral, depois de feita a diplomação, termina 15 dias depois da diplomação. Depois disso, o cidadão que foi diplomado, está no exercício do mandato, ele pode ser acionado em outras instâncias, por outros tribunais, mas não pela Justiça Eleitoral. De maneira que é completamente infundada essa pretensão de cassar o mandato [de Dilma] por meio da Justiça Eleitoral”, afirmou o jurista em entrevista ao Blog da Cidadania.
Na mesma entrevista, o jurista opinou sobre a recente decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) que reprovou as contas do governo Dilma relativas ao último ano de seu primeiro mandato. Esta decisão do TCU tem sido usada pela oposição como argumento para pedir o impeachment da presidenta. E a Advocacia Geral da União (AGU) pediu o afastamento do relator do processo no TCU, Augusto Nardes, argumentando que ele antecipou seu voto (pela rejeição das contas) e emitiu opiniões sobre o processo eivadas de posicionamentos políticos, o que é vetado pela lei orgânica da magistratura.
Dallari citou a pressão que o PSDB fez sobre o TCU e opinou “que o senhor Nardes não é confiável”. Para Dalmo Dallari, caberá ao STF corrigir as eventuais ilegalidades cometidas pelo TSE e pelo TCU. “As decisões do Supremo Tribunal Federal têm que ser por maioria e a maioria que há lá, hoje, não se deixará levar por conveniências políticas, de maneira que eu ainda acho que o tribunal vai se orientar juridicamente e tenho confiança especialmente no presidente do STF, ministro Lewandowski, a quem conheço muito bem [Dallari foi professor dele] e está conduzindo os trabalhos com muita firmeza e muito equilíbrio. Acho que o ministro Lewandowski exercerá grande influência no julgamento do que está acontecendo no TSE e no TCU para que a maioria dos ministros se oriente pelo Direito e não por outros fatores como convicções políticas”, argumentou Dallari.
Direito de defesa
Outra voz importante do meio jurídico que tem denunciado os excessos cometidos em investigações e julgamentos, particularmente na Operação Lava Jato, é a do advogado Augusto de Arruda Botelho, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Em sua coluna no portal JOTA (março 2015), Botelho afirma: “Defender direitos e garantias fundamentais nunca esteve tão fora de moda. Mas, justamente em momentos como esses é que o posicionamento firme e intransigente quanto ao respeito a esses preceitos é tão importante”.
“O IDDD entende que deva ser prioridade de qualquer Governo o necessário e urgente combate aos avanços da criminalidade, seja quando ela envolve os chamados “crimes clássicos” (homicídio, roubo, tráfico de drogas etc.), seja quando relacionada aos popularmente conhecidos como “crimes do colarinho branco”. Tal combate, entretanto, não pode, sob qualquer hipótese, por mais odioso e grave que seja o delito cometido, ainda que ocupe as primeiras páginas dos jornais, ultrapassar os claros limites previstos em nossa Carta Maior. Os fins não justificam os meios, nunca”, afirma Botelho.
No último dia 18 de agosto, o IDDD promoveu, junto com outras entidades, um ato público na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, em São Paulo. Sob o lema “Não ao Autoritarismo – Em Defesa do Estado Democrático de Direito”, o ato reuniu cerca de 200 pessoas, entre acadêmicos, advogados, juristas, defensores públicos, estudantes e representantes de entidades de classe. O tom geral dos discursos no evento foi de indignação contra o avanço do autoritarismo e o desrespeito a direitos e garantias fundamentais. “Os inimigos do Estado Democrático de Direito se escondiam e agora eles perderam a vergonha na cara e publicamente fazem diversas propostas e inovações legislativas que ferem de morte o direito de defesa”, disse o presidente do IDDD. Como exemplo dessas sugestões, ele citou o PLS 402/15 e a proposta do Ministério Público Federal de se flexibilizar o uso de provas ilícitas em processos. Botelho também disse que o aumento de penas e a criação de novos crimes não ajudam a construir um “país mais justo”.
Já o secretário do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) Fábio Tofic Simantob conclamou a comunidade jurídica a retomar a racionalidade “que deve permear no Estado Democrático de Direito e no Processo Penal”: “É preciso resgatar a lucidez que deve perseguir qualquer tipo de tratamento ao acusado no processo criminal. É preciso vencer o ódio. É preciso vencer o medo”.
Por sua vez, o professor de Direito Penal da USP David Teixeira de Azevedo afirmou que a ditadura hoje está instalada nas instituições, como o Poder Judiciário e o Ministério Público. Em entrevista à revista Consultor Jurídico, o criminalista e ex-presidente do Conselho Federal da OAB José Roberto Batochio emitiu opinião semelhante, apontando que hoje o autoritarismo se manifesta em funcionários públicos como juízes, delegados de polícia e chefes de repartição.
O presidente da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcos da Costa, elogiou a manifestação. “Precisa ser valorizada uma iniciativa como essa e chamar a atenção da população para que os efeitos de qualquer dano que se faça ao Direito de Defesa e qualquer que seja o motivo desse dano, inclusive a pretexto de combater a criminalidade, esse dano é perverso para a sociedade, para o cidadão e para a democracia”.
O presidente da OAB-SP ainda fez um desagravo à advogada Dora Cavalcanti, também presente no evento. A advogada foi impedida de acompanhar seu cliente, o empresário Marcelo Odebrecht, em depoimento no âmbito da operação Lava Jato. A alegação foi que ela estaria impedida de participar porque também seria ouvida em inquérito que apura suposta fraude processual.
Leonardo Sica, presidente da Associação dos Advogados de São Paulo, em sua fala, apontou que o próprio sucesso da repressão à corrupção dependerá dos meios utilizados. “Nós vemos uma ação verdadeiramente coordenada, cada vez maior, de intimidação da advocacia e de acuamento do Direito de Defesa. Advogado intimado para discutir os honorários em público, advogada impedida pela polícia de acompanhar o depoimento de seu cliente, interceptação de comunicação entre advogados e clientes, apreensão de documentos ligados ao exercício da advocacia, advogados intimados para se explicarem sobre opções que fizeram no Direito de Defesa”, exemplificou.
Sica deixou claro que não luta contra as investigações sobre corrupção no Brasil, mas pelo respeito ao processo. “A nossa mensagem é simples: corromper o devido processo legal é tão grave para a democracia como corromper contratos estatais e corromper funcionários públicos”, afirmou.
No final do ato, o criminalista Luiz Fernando Pacheco leu o manifesto subscrito pelas entidades participantes. O documento foi encaminhado aos chefes dos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo. (veja a íntegra na página ao lado)
O advogado José Luis de Oliveira Lima, que atuou no processo da AP 470 (conhecido como “mensalão”), também participou do ato. Ele compartilha com Sica a preocupação com os sucessivos casos de constrangimento ao trabalho dos advogados que defendem réus da Operação Lava Jato. Em artigo intitulado “Precisamos falar sobre o direito de defesa” (Folha de S. Paulo, 27/07/2015), ele faz uma advertência que continua atualíssima: “As investigações que nos últimos tempos dominam o noticiário, com destaque para os desdobramentos da Operação Lava Jato, têm violado de forma sistemática o direito de defesa, uma das bases de qualquer sociedade civilizada”. Oliveira cita vários casos de abusos cometidos no curso da referida operação e pondera que “O Estado brasileiro vem fortalecendo gradativamente seu aparato de investigação, em especial na Polícia Federal e no Ministério Público, o que é um sinal de amadurecimento de nosso país. Tais estruturas investigativas não são, porém, infalíveis e estão, como todos nós, sujeitas a críticas”. Ele registra ainda que “os abusos estão indo tão longe que, felizmente, já se verifica o crescimento de uma reação entre os mais sensatos”. Oliveira termina seu artigo lembrando que “todos podem precisar de advogados: jornalistas, delegados de polícia, promotores, juízes e presidentes das casas legislativas. Lutar por uma defesa ampla é demonstração de amadurecimento da democracia, não se confunde com impunidade”.
A Justiça na sociedade do espetáculo
No último dia 21 de setembro, o debate sobre Estado Democrático de Direito, judicialização da política, excessos do poder judiciário e a relação promíscua deste com a mídia ganhou uma contribuição valiosa com o lançamento do livro A Justiça na sociedade do espetáculo, uma coletânea de 130 artigos publicados na imprensa brasileira, sobretudo na revista Carta Capital, pelo jurista Pedro Estevam Serrano.
A obra é dividida em três grandes grupos: As maiorias discriminadas e excluídas, Acertos e contradições de um sistema em movimento e Judiciário e cidadania.
O livro reúne textos que tratam de liberdades individuais, como a descriminalização das drogas e a questão do aborto, tendo como sua defesa a ideia de liberdade primária; a relação entre a mídia e o Judiciário, que para Serrano “é um dos grandes problemas da democracia contemporânea”. Também comparecem artigos que abordam questões inseridas em debates públicos, como linchamento de suspeitos do cometimento de crimes, violência contra a mulher, direito das minorias, anistia e tortura, reforma política, julgamento da Ação Penal 470 (mensalão), entre outros.
Serrano é pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e doutor e mestre em Direito de Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde é também professor de Direito Constitucional.
Mídia e Judiciário
Trazendo para a sociedade temas de natureza originalmente técnica do Direito, Serrano caminhou ao longo de 10 anos pelo que chama de “jornalismo jurídico de opinião”. “O Judiciário, para poder sofrer correções, precisa ser criticado. Decisão judicial não se descumpre, mas você pode e deve criticar”, disse Serrano em recente entrevista para o portal GGN1.
Na entrevista, ele busca alertar para as graves consequências de se fazer da relação entre a imprensa e o Judiciário uma interação não racional. “O que ocorre é que nessa relação, muitas vezes, a mídia, pelo fato de cobrir e de querer narrar aquela história, na narrativa folhetinesca que muitas vezes adota, acaba ingressando no tribunal a sua lógica. O tribunal deixa de agir segundo a lógica do lícito e do ilícito e passa a agir segundo a lógica da notícia e da não notícia, do poder e do não poder. Isso é próprio da política”, diz. Para ele, “a transformação, em especial do processo penal, em espetáculo é um imenso dano à vida democrática”, completa.
Ainda nessa relação intrínseca do Judiciário com a mídia, Serrano alertou que “o problema é que esses veículos estão comandando as decisões judiciais”.
Ele cita o exemplo do caso Nardoni, em que a imprensa tomou as rédeas de um julgamento de “maquiagem”, de um processo “que a defesa não foi uma realidade”. Serrano caracterizou esse como um fenômeno da “corrupção sistêmica, no sentido de funcionamento equivocado, irracional do sistema”, por conta de o tribunal ter funcionado na lógica da mídia.
O jurista lembrou também que a “pressão midiática” foi responsável pela falta de presunção de inocência no julgamento do mensalão. “Antes do mensalão eu já denunciava qual seria o resultado. Exatamente por compreender que há uma produção de corrupção sistêmica entre mídia e judiciário nessas questões”, afirmou.
Ele destaca a criação de uma narrativa social de acusação antes mesmo da existência real de um processo. “O processo funciona como uma narrativa criada a partir da mídia, da Polícia, do Ministério Público, através de vazamentos ilegais, seletivos. Isso se transforma em sentimento social e acaba se esvaindo como processo substantivo, como conteúdo mesmo. E acaba condicionando o julgamento”. Para Pedro Serrano, esta relação promíscua com a imprensa acaba deixando o Judiciário refém da opinião pública. O Judiciário passa a acreditar que “não precisa mais ter reconhecida a correção da sua decisão pelos órgãos superiores de Justiça, ou pela comunidade acadêmica, mas precisa ser reconhecido pelo povo”, afirma.
“O pior é o Judiciário abrir mão da racionalidade própria do Direito, que é do lícito e ilícito, que é o de cumprir a Constituição e as normas jurídicas, em favor de atender opiniões midiáticas com medo. Você não pode viver uma democracia que exija do juiz ser um herói. Isso não existe”, disse Serrano, concluindo que a “mídia ameaça a independência do Judiciário”.
Impeachment e garantias constitucionais
Circula pela imprensa a informação de que a presidente Dilma escalou Pedro Serrano e mais três renomados juristas brasileiros (Dalmo Dallari, Fábio Konder Comparato e Celso Antonio Bandeira de Mello) para emitirem pareceres rebatendo os que defendem o impeachment. O principal argumento da oposição para requerer o impedimento da presidente são as “pedaladas fiscais”, consideradas ilegais pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o que configuraria suposto crime de responsabilidade cometido pela presidência na vigência de seu primeiro mandato (2011-2014).
Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo (25/09/2015), Pedro Serrano questiona esta tese. Segundo ele, “por ser um agente político, não recai sobre o presidente da República o mesmo princípio da continuidade administrativa aplicado aos agentes administrativos. Aplica-se, sim, o princípio republicano que determina a periodicidade dos mandatos, ou seja, a renovação do poder pela vontade popular a cada quatro anos, iniciando-se assim um novo momento na estrutura política do Estado. Se houver cometido uma infração no mandato anterior, só poderá ser punido por crime comum ou outras formas de responsabilização. O impeachment, como modalidade de punição por crime de responsabilidade, só pode ser aplicado sobre ato praticado no interior do mandato vigente”, diz Serrano no artigo.
Ele ressalta ainda uma outra questão fundamental, que é a da justa causa. “Somente uma ilegalidade ou irregularidade tida como de relevante gravidade pode interromper o ciclo democrático, por conta da relevância da soberania popular em nosso regime político-constitucional. Isso, claro, após estabelecido o devido processo legal com amplo direito de defesa”, diz.
“Por essas razões, qualquer debate sobre impeachment que passe ao largo dos preceitos constitucionais não pode ser entendido como republicano, muito menos democrático. Defender o impeachment sem que existam as condições razoáveis para que ele aconteça, mais do que oportunismo, é flerte com golpismo e um atentado ao fortalecimento das nossas instituições”, conclui o jurista.
A questão do impeachment relaciona-se diretamente com um tema que Serrano estudou com profundidade em sua pesquisa de pós-doutorado: o Judiciário como fonte de exceção.
“Exceção deve se entender como atos imperiais absolutistas adotados pelo Estado Democrático no interior da democracia. E eu procuro tratar dessa questão, tanto na relação do Estado com a pobreza no Brasil, como se dá a criação e a natureza jurídica e teoria do Estado nessa exceção, e também a produção do Judiciário, na América Latina, como fonte de exceção e não fonte do Direito, que deveria ser. Ou seja, como fonte dos golpes autoritários, nesses tipos de interrupção pela democracia, e não da garantia da Constituição do Estado Democrático de Direito”, explica.
Em sua pesquisa, Serrano trouxe exemplos como a queda de Eduardo Lugo, no Paraguai, e a de Manoel Zelada, em Honduras, cujos mandatos presidenciais foram interrompidos por decisões do Judiciário. “A farda foi substituída pela toga”, afirmou. “Isto para mim ainda não ocorre no Brasil, mas é uma potencialidade. A fala do ministro Gilmar [Mendes], outro dia, assumiu uma postura ideológica durante um julgamento que deveria ser jurídico. Assumiu ali, claramente, durante quatro horas uma posição política. Eu já falava desse tipo de perigo há anos. Eu via o Judiciário se construindo como agente de Exceção”, afirmou o jurista.
“O Judiciário é aquele que tem a potencialidade de ser Exceção no sistema. Tem que se adotar muita cautela no Brasil para que dali não venha e não corrobore com qualquer tipo de medida interruptiva do processo democrático. Na palavra mais comum da imprensa, com qualquer golpe”, alertou.
*DA REDAÇÃO, COM INFORMAÇÕES DO PORTAL GGN
“Abrirmos mão do constitucionalismo para dar vazão a ambições menores de determinadas forças políticas é dar passos para trás. É abrir mão do status de país respeitado, de país decente que hoje o Brasil ostenta”
Cláudio P. Souza Neto
O Judiciário “é um poder que não pode ser politizado, que não pode servir a interesses menores de partidos políticos, que não pode ser sensível aos apelos midiáticos” Marcello Lavenère Machado
Hoje, muitos magistrados “são praticamente celebridades, no conceito ‘Rede
Globo’ de celebridade.
E isso prejudica, obviamente, as funções dos magistrados e o papel das cortes” Benício Viero Barbosa Schmidt
“Nossa história institucional é tão disruptiva e conturbada que, sem dúvida, tivemos, e ainda temos, muito que reaprender na prática do jogo institucional democrático” Menelick de Carvalho Netto