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Edição 129 > O papel dos jornais estudantis na resistência à ditadura militar durante os anos de chumbo
O papel dos jornais estudantis na resistência à ditadura militar durante os anos de chumbo
De destacada importância, como forma de resistência à ditadura militar, os jornais estudantis foram apartados de parte da historiografia nacional, assim como ausentaram a organização e atuação do Movimento Estudantil (ME) naquele período. Essas atividades tiveram eco a ponto de o regime divulgar um documento sobre a ação de determinados grupos, destacando as ações subversivas exercidas pelos estudantes

A partir da assinatura do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, o ME passou por um processo de reorganização, uma vez que suas ações já não poderiam ser mais de massa. Assim, durante o período conhecido como -anos de chumbo-, o ME passou a realizar uma resistência dentro das universidades propondo atividades que, dentre outras, priorizaram um aspecto cultural. Neste artigo, abordaremos a produção de jornais universitários por considerá-los uma ação cultural, como aponta o historiador Olivier Wiewiorka: o jornal se constituiu como um vetor adequado a uma sensibilidade, uma cultura e uma ideologia (1).
Os jornais estudantis do início dos anos 1970 serviram de -tubos de ensaio- para novas experimentações em linguagens e formatos gráficos. Exemplo destas experimentações pode ser visto através do jornal A Ponte - quando o muro separa..., assinado por vários centros acadêmicos da USP. A Ponte se propunha ser um jornal mural, de circulação semanal que durante 1973, ano da sua fundação, chegou a atingir o número de 20.000 exemplares (2). Arriscaríamos dizer que ele se apresentou de maneira inovadora, pois, além de proposta gráfica fora do convencional, era confeccionado através da contribuição de vários centros (de cada edição, diferentes centros participavam, não necessariamente os mesmos). O nome do jornal pode ser considerado uma -ponte- diretamente ligada à cultura. Em 1972, o grupo MPB-4 gravou a música de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro chamada Pesadelo. Com mensagens nada subliminares, Pesadelo escapou da censura e pode ser vista como uma das grandes músicas de protesto do período:
Quando o muro separa uma ponte une
Se a vingança encara o remorso pune
Você vem me agarra, alguém vem me solta
Você vai na marra, ela um dia volta
E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós, olha aí
Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
De repente olha eu de novo
(...)
O próprio nome do jornal, então, embuiu seu caráter, seus objetivos, definindo seu lugar de representante de uma coletividade. Uma experiência mais aberta, dinâmica, mas que tinha por intuito analisar a situação vivida, denunciando o regime e propondo novas experiências.
No conteúdo, este jornal-mural, como a grande maioria dos jornais estudantis, dedicou algumas páginas à programação cultural da semana anunciando as atividades desenvolvidas em cada faculdade e, muitas vezes, às programações de outras universidades. Este ambiente de -livre criação- também serviu como -ponto- para convocar eleições estudantis, para discutir as -eleições- nacionais, espaço para relatar os encontros de área, discutir os problemas do cotidiano enfrentados na universidade - principalmente a questão do ensino pago -, como também para denunciar as prisões de colegas.
Devemos sublinhar que a criação de um jornal pode ser encarada como um evento fundamental e mesmo fundador de uma determinada coletividade. Seu papel dentro da emergência de um grupo pode tornar-se decisivo. O boletim dos estudantes do DCE da Bahia, Beba, atesta a questão: -Com tantos problemas, agravados pela dispersão nas Escolas, onde todos se encontram, mas ninguém se conhece, a imprensa é uma necessidade para a visão crítica da realidade- (3). O jornal aparece, então, como instrumento para um engajamento político, uma estratégia para organizar a luta contra a ditadura.
Através dos próprios jornais podemos verificar as dificuldades de engajamento de estudantes bem como o incentivo à atividade -jornalística- e às atividades em geral propostas pelos centros acadêmicos e/ou grupos. O editorial do Boletim do Centro de Estudos de Psicologia (CEP) da UFMG mostra-nos o exemplo:
-Início do ano letivo, nenhuma outra época seria mais adequada para a volta do nosso Boletim que há muito andava desaparecido. A verdade é que o antigo departamento de publicações trabalhava sozinho dentro do CEP. Hoje com a colaboração de toda diretoria do CEP e de outros muitos interessados volta nosso Boletim dependendo também de você para levá-lo adiante- (4).
Segundo Olivier Wieviorka, a imprensa clandestina funciona igualmente como modo de recrutamento (5). Mas, mais que um simples recrutamento, um jornal permite um congraçamento, uma possível -união- de indivíduos em prol de um determinado fim: denunciar e acabar com a ditadura era o desejo expresso de grupos de universitários. Se pensarmos por esse ângulo os poucos militantes organizados podiam, através dos jornais, atingir uma gama consideravelmente maior de estudantes pelo menos naquilo que concerne ao plano das ideias.
E, ainda, a realização de um jornal serviu como meio de ação, de organizar a luta clandestina. Samira Zaidan, então estudante de Matemática na UFMG, relembra o processo de realização e distribuição do jornal Gol a Gol: -O jornal era impresso numa sexta. Sábado à noite, ele era montado. Eram vinte mil jornais. No domingo ele era organizado para distribuição e na segunda-feira, das 6h30 da manhã até as 7h30, tava tudo distribuído. Era isso ou nada- (6).
Notamos, assim, que a circulação de jornais, mesmo durante o momento mais pesado do regime, onde comumente a historiografia do período costuma comentar a -inexistência- do movimento, nos mostra certa organização deste. As referências de um jornal no outro e também notícias de uma universidade no jornal de uma segunda, atestam a circulação das informações mostrando, ainda, um nível (mesmo que mínimo) de organização do movimento.
Jornais de determinados núcleos de estudantes, como os já citados, e como o jornal dos estudantes da FAFICH/UFMG, Navegar é preciso, podem ser entendidos como expressões de uma corrente política clandestina. Um editorial deste jornal apresentou: -O que é um jornal- Um amontoado de artigos desvinculados entre si e distantes das coisas- Um jornal deve mostrar o que nós somos. Não uma parte escolhida e superficial de nossa atividade, mas tudo o que pensamos o que fazemos, o que queremos- (7).
Expressar uma determinada ideologia através de um jornal evidenciou um grande meio para fazer atividade política na clandestinidade. O jornal expressa através da escrita as ideias de um conjunto. Muitas vezes os mesmos encontraram-se assinados por uma representação: uma maneira encontrada para que as pessoas não fossem identificadas. Prova maior é de que alguns jornais apareceram assinados por nomes (sem sobrenomes) ou, ainda, por apelidos tornando mais difícil o conhecimento da identidade de cada participante na -ação-.
A diversidade, a quantidade destes jornais nos apresenta, assim, o cenário dessas movimentações. Indica um ME sempre em funcionamento passando por diferentes fases, pautando o que podia ser expresso em cada momento. Mostrando, de certa maneira, como vão se transformando as -possibilidades de ação-, os pensamentos, as ideias: desde o apoio de algumas entidades à luta armada, entre 1969 e 1971, as reivindicações específicas pela educação até chegar à luta aberta pelo retorno à democracia, na segunda parte dos anos 1970. Mostra, enfim, um ME sempre ativo, resistindo da maneira que lhe era possível, na luta contra o regime militar.
Com a censura imposta, os jornais estudantis tornaram-se veículos - mecanismo do quotidiano de transmissão dos valores apregoados por diferentes grupos na tentativa de alcançar a massa estudantil -, informativos da realidade e impulsionaram a criação de uma consciência de resistência contra o regime. O jornal, assim, passou a ter mais que um valor simbólico, da própria ação da imprensa clandestina, como também este simbolismo pode ser identificado na própria estruturação dos textos, muitas vezes dos subtextos, da linguagem metafórica utilizada no lugar das expressões abertas. Em suma, a construção de um jornal visou, neste momento, a criar um polo para unir colegas (mesmo que fosse em torno -dos seus problemas comuns-, como disse um jornal universitário (8), propondo levar aos estudantes subsídios para gerar debates sobre a realidade nacional com o intuito de legitimar a batalha contra o regime militar. O que nos permite inferir que esses jornais foram utilizados como estratégia de luta dos estudantes ou, ainda, como aponta o jornalista Bernardo Kucinski, representaram a busca pela construção de espaços de resistência ao regime militar (9).
Reverberação das atividades do ME: a censura praticada pelo regime
As atividades propostas pelo movimento não escaparam da repressão realizada pelo regime. O auge desta questão eclodiu quando a Divisão de Segurança e Informação, do Ministério da Educação e Cultura, publicou o folheto intitulado Como eles agem no início do ano de 1974 (10). O folheto -denunciou- como as organizações esquerdistas visavam ao apoio popular com o intuito de enfraquecer o governo através das -letras e das artes-. O folheto foi dividido nas duas áreas: educação e cultura. Referente à área da cultura, os destaques foram dados para cinema, teatro, música, imprensa e religião. Em cada tópico reforçavam a ideia de que a arte era utilizada como uma poderosa arma ideológica e de dissolução dos bons costumes. Nomes como Glauber Rocha, no cinema, Grupo Oficina no teatro, e Chico Buarque na música, aparecem como expoentes representantes do -perigo vermelho-.
Cabe-nos aqui uma breve análise da primeira área. Não por acaso, inicialmente, o -conjunto de subversivos- analisado foi o corpo discente. Começando pelas publicações estudantis (jornais, panfletos) que constituíam, na visão apresentada, -um dos pontos vulneráveis à infiltração ideológica comunista- por tratarem de temas que provocavam polêmica e levavam a condutas negativas. A questão aqui levantada atesta a tese escrita acima de que os jornais, feitos por uma minoria militante, serviam de instrumento para circulação de ideias abrangendo, dessa maneira, um contingente maior de estudantes.
Os principais conteúdos debatidos pelo ME, como o ensino pago, a reforma universitária, os acordos MEC/USAID, foram descritos no documento. Também fizeram referência à maneira como os jornais e panfletos eram -astuciosamente- entregues aos estudantes nas ocasiões festivas e semana de estudos. Um ponto que merece destaque refere-se à participação discente nos diretórios. Segundo o relatório: -Ultimamente tem se verificado certo desinteresse e esvaziamento nas representações estudantis, por uma grande parte dos estudantes. Isto pode ser considerado uma atitude contestatória dos estudantes, face às disposições governamentais que procuram cercar as atitudes tendenciosas de certos elementos infiltrados nos diretórios- (11).
O -desinteresse- e o -esvaziamento- das entidades com os motivos atestados encobertaram e suavizaram todo um aparato de repressão que se instalou contra aqueles que ousavam estar contra regime. Nesse caso, principalmente nos -anos de chumbo-, militar em um -centrinho- (12), ou estar vinculado abertamente a alguma tendência de esquerda, significava colocar a própria vida em risco. Muitos se arriscaram e alguns chegaram a perdê-la.
Para finalizar, o ponto concernente aos estudantes, o relatório atestava o aumento do uso de entorpecentes entre os jovens. Não de uma simples constatação do caso, pois propunha que a -toxicomania- era uma das -armas mais sutis do variado arsenal do movimento comunista internacional-. Lembramos que em escala mundial os jovens estavam se beneficiando da revolução sexual, do uso da pílula e do uso de drogas como maneira de vivenciar novas experiências e práticas sociais libertárias. -Culpabilizar- o famigerado comunismo foi mais um dos subterfúgios utilizados pelos militares, que favoreciam o -choque de gerações- entre pais e filhos na década de 1970.
O ponto dedicado aos docentes, menor que o primeiro, enfatizava, entre outras questões, justamente aqueles professores que foram contra a política do governo e se -entendiam- com os -subversivos- na tentativa de reestruturar o ME. Para aqueles que elaboraram o documento, essa foi a explicação para o -fato de muitos professores preferirem o cargo de chefes de departamento ao de reitor ou de diretor-, pois, assim, os mesmos ficavam mais próximos dos alunos. Em momento algum foi colocado em questão que as orientações políticas do governo, no campo educacional, além da suprema vigilância e repressão, poderiam ser os fatores que afastariam os professores dos cargos dirigentes das universidades.
Podemos, assim, inferir que o -precário- movimento estudantil acabou por fazer -peso- quando se tratava de apontar os opositores do regime. A preocupação em relatar as maneiras de ação poderia também servir para restringir a participação de estudantes no movimento. Entretanto, atesta, principalmente, que estas manifestações realizadas por jovens militantes universitários foram consideradas um -perigo à nação-, uma -pedra- no caminho de um regime autoritário que viveu seu momento mais pesado no início dos anos de 1970.
Apesar de o relatório circular na mídia nacional, como a publicação do mesmo na revista Veja e da reportagem no jornal O Estado de S. Paulo, e o ministro da Educação, Jarbas Passarinho, se pronunciar contrário a boa parte dos argumentos expressos no documento, as organizações estudantis é que fizeram oposição frontal ao documento. O Conselho de Centros Acadêmicos (CCA) da USP escreveu um manifesto intitulado Caça às bruxas. Segundo o manifesto, os jornais foram obrigados a publicar o documento. Na visão daqueles estudantes, a publicação foi mais uma tentativa do regime de -preparar a opinião pública para uma nova investida contra a Universidade-, principalmente contra as entidades estudantis. Na Universidade Federal da Bahia circulou um manifesto assinado pelo DCE, por DAs e CUCA denunciando os atos da Assessoria Especial de Segurança e Informação da Universidade que, baseados no folheto, passaram a proibir shows, assembleias e efetuaram a prisão do vice-presidente do DCE (14).
A militância da UFMG, além de elaborar uma nota, fez uma edição especial do seu jornal Gol a gol intitulada Subversão, contendo um dossiê de dez páginas apresentando parte do documento do Ministério, além de várias reportagens veiculadas na imprensa, e ainda os manifestos estudantis nos diferentes estados.
Vemos, assim, que mesmo com a dificuldade de se fazer uma resistência -principalmente pelo número pequeno de militantes dispostos a enfrentar o regime, muitas vezes atuando de maneira isolada -, o sistema de comunicação adotado pelo movimento nos estados, universidades, frações políticas acabou por fortalecer seus laços. Enfim, o documento Como eles agem reforça a tese de que parte dos estudantes, dos intelectuais, imprensa e artistas fez uma frente de esquerda contra o regime através de uma resistência cultural. Neste cenário, o ME parece jogar um peso grande não apenas como um consumidor deste -mercado cultural engajado-, nem tampouco um mero reflexo deste cenário, mas atuando também como seu -produtor-, tendo em vista um uso político. Por fim, este diálogo entre o público estudantil e artistas acabou por fortalecer os laços da resistência cultural: uma das grandes marcas deste período.
*Angélica Müller é doutora em História pela Université de Paris 1 - Panthéon Sorbonne, e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Professora do Mestrado de História da Universo e pesquisadora-associada do CHS/Paris 1.
Nota
(1) WIEVIORKA, Oliver. Une certaine idée de la résistance: Défense de la France 1940-1949. Paris: Seuil, 1995, p. 53 (tradução livre do francês pela autora).
(2) PELLICCIOTTA, Mirza Maria Baffi. Uma aventura política: as movimentações estudantis dos anos 70. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas: Campinas, 1997, p. 186.
(3) BEBA, boletim dos estudantes da Bahia. DC UFBA, 25 de maio de 1973, nº 5. Arquivo dos DA-s da FFCH/UFBA.
(4) Boletim do CEP - UFMG, março de 1972, nº 3. Arquivo dos DA-s da FFCH/UFBA.
(5) WIEVIORKA, Oliver. Op. cit. 1995, p. 37.
(6) Depoimento de Samira Zaidan à autora. Belo Horizonte, 08 de junho de 2007.
(7) Editorial. In: Navegar é preciso. Jornal dos estudantes da FAFICH/UFMG, 30 de setembro de 1974, nº 3, p. 2. Arquivo dos DA-s da FFCH/UFBA.
(8) Mobral - Órgão de Divulgação do primeiro ciclo da UFRGS/patrocinado pelo DCE. Ano 2, nº 1, 1973. Arquivo dos DA-s da FFCH/UFBA.
(9) KUCINSKI, Bernardo. O fim da ditadura militar. Repensando a história. São Paulo: Contexto, 2001.
(10) -Como eles agem-. In: Gol a Gol se pegá com o pé é dibra. DCE, Ano II, 25 de maio de 1974, nº 12. Arquivo: BDIC F delta 1120 (6). Segundo o jornalista Marcelo Moraes do jornal O Estado de S. Paulo, o documento data de 1970, contendo 75 páginas e seu acesso está como reservado no Arquivo Nacional em Brasília. Esta informação foi retirada do site
http://www.mndh.org.br/index.php-Itemid=56&id=1033&option=com_content&task=view Acessado em 24 de abril de 2009.
(11) Idem.
(12) Nome usado informalmente designando os Centros Acadêmicos entre os estudantes da época.
(13) -Caça às bruxas-. In: Gol a Gol se pegá com o pé é dibra. DCE, Ano II, 25 de maio de 1974, nº 12. Arquivo: BDIC F delta 1120 (6).
(14) Idem.
Referências:
KUCINSKI, Bernardo. O fim da ditadura militar. Repensando a história. São Paulo: Contexto, 2001.
NAPOLITANO, Marcos. -A imprensa e a -questão democrática- nos anos 70 e 80-. In: ____________. Cultura e poder no Brasil Contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2005.
MÜLLER, -Angélica. Resistência do movimento estudantil e censura nos -anos de chumbo--. In: Ideias. Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Dossiê Um balanço crítico da redemocratização do país. Ano 1, nova série, 1º semestre de 2010, p. 9-23.
PELLICCIOTTA, Mirza Maria Baffi. Uma aventura política: as movimentações estudantis dos anos 70. 1997. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas: Campinas, 1997.
WIEVIORKA, Oliver. Une certaine idée de la résistance: Défense de la France 1940-1949. Paris: Seuil, 1995.
LEGENDAS
Expressar uma determinada ideologia através de um jornal evidenciou um grande meio para fazer atividade política na clandestinidade.