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Edição 128 > O pensamento do artista Álvaro Cunhal
O pensamento do artista Álvaro Cunhal

"A arte é uma expressão do Belo e o artista um seu criador". Assim Álvaro Cunhal começa o seu ensaio A Arte, o Artista e a Sociedade, publicado em junho de 1996, pela Editorial Caminho, de Lisboa, Portugal. Líder revolucionário do povo português, membro do Partido Comunista, Álvaro Cunhal foi também um pensador da arte e um artista. No ensaio em questão, ele aborda uma série de temas muito relevantes não só dentro do campo artístico, mas também no âmbito da filosofia, da cultura, da sociedade
Alvaro Barreirinhas Cunhal nasceu em Coimbra, Portugal, em 10 de novembro de 1913 e faleceu no dia 13 de junho de 2005. O centenário de seu nascimento teve muitas comemorações em Portugal neste ano. Filiado ao Partido Comunista Português, ele teve uma longa trajetória política, mas também foi um artista e pensador das artes. Foi escrevendo e desenhando que ele suportou 15 anos de prisão por suas posições políticas contra o Estado Novo e a ditadura de Salazar.
A Arte, o Artista e a Sociedade foi escrito durante anos de aprofundamento de seus estudos e reflexões sobre o tema. A riqueza de assuntos abordados por ele faz deste um ensaio bastante denso, mas ao mesmo tempo bastante didático. Desde o tema da beleza e do valor estético da obra de arte, passando por críticas aos dogmatismos e intolerâncias dos críticos e estudiosos dos tempos modernos, até reflexões sobre a realidade social e o papel do artista, esta edição do ensaio de Álvaro Cunhal vem ricamente ilustrada com pinturas e desenhos de mestres como Velázquez, Delacroix, Picasso, Goya e até mesmo com o quadro A colheita do café do pintor brasileiro Cândido Portinari.
Logo no começo do ensaio, Cunhal dedica todo um capítulo ao tema do belo na arte, um conceito que tem sido estudado longa e profundamente no decurso da história, desde os filósofos gregos, passando pelos pensadores da Idade Média, os do Renascimento, do Iluminismo, da filosofia alemã, entre os quais se destacam Hegel e Schelling (2). Álvaro Cunhal diz que a respeito do belo há muito mais perguntas do que respostas. Desde sempre se busca estabelecer que critérios podemos utilizar para considerar bela alguma coisa, inclusive critérios dentro do -conhecimento científico- que também tem tentado estabelecer uma origem -objetiva, fixa e imutável do belo-.
Mas Cunhal também diz que alguns outros filósofos -pretenderam conformar o conceito às coisas-, procurando saber como surge essa qualidade da beleza no mundo. Questiona ele: -Coisas -belas- onde, para quem, para que classe, em que época, em que país-- Por trás desse questionamento, sua visão de que conceitos como estes não são absolutos no tempo, espaço e lugar. Como queria, por exemplo, Diderot, o pensador francês da Enciclopédia, que mais tarde foi forçado a rever suas opiniões em suas -ulteriores críticas de arte-. E como pensava também Charles Darwin que, segundo Cunhal, em uma obra anterior à sua Origem das Espécies, considerava a beleza como uma -qualidade objetiva inalterável, fixa, universal e eterna das coisas-. Todavia, em seu livro mais conhecido, e posterior, Darwin admitiu que -a ideia do belo não é inata e nem inalterável-.
Entretanto, diz Cunhal, mesmo assim essas teorias - por vezes tomadas como verdades absolutas - trazem -elementos válidos de reflexão-. Há obras de arte de valor estético universal e incontestável, que ultrapassam séculos, milênios. Ultrapassam inclusive as mais -profundas transformações sociais-, pois continuam sendo reconhecidas em seu valor. Pois há valores comuns nas coisas belas - enfatizou ele. O ser humano reage com agrado a determinados eventos e acontecimentos, com traços da reação -dos seus sentidos e das suas emoções que perduram e ultrapassam as épocas históricas-. Por isso, a beleza das coisas existe em íntima interação com a alma humana, que as aprecia. Diz Cunhal: -Beleza é um critério e um juízo humano-. Pois o mundo é belo PARA quem o observa.
Mesmo na filosofia idealista, continua o artista português, quando se fala do belo se fala em relação à realidade. A invocação do sobrenatural por trás do belo é feita em geral pelas religiões, procurando encontrar uma origem sobrenatural do belo absoluto. Da filosofia escolástica, sabemos que a beleza estava diretamente relacionada com a divindade e os filósofos cristãos deram até uma definição do belo como ligado ao bem e à verdade, acrescentando uma conotação moral ao conceito.
Mas voltando ao ensaio de Álvaro Cunhal, numa linha de investigação oposta à idealista, o pensamento materialista -investiga a ligação do belo com a sociedade e a sua evolução. Aponta a experiência histórica da relatividade da definição- do belo. Essa visão materialista busca localizar a apreciação do belo nas várias épocas históricas, nas diversas sociedades e culturas, nas circunstâncias objetivas do mundo. Diversas coisas, por serem úteis, tornaram-se belas, acrescenta. O ser humano, ao fabricar seus instrumentos de trabalho, suas moradias, seus meios de locomoção, seus ambientes, vem buscando não só aperfeiçoá-los, do ponto de vista técnico, mas também torná-los belos. Por outro lado, a arte surge como uma criação humana que dá prazer à alma:
-Seja qual for a origem que se lhe atribua, a noção do belo é um elemento essencial do valor estético. A outra, é a beleza criada pelo homem. O artista é um criador de beleza.-
Álvaro Cunhal diz ainda que complexidade, contradição e controvérsia também estão presentes quando se definem os elementos do valor estético. Ao longo do tempo, filósofos, críticos e artistas também mudam os valores estéticos de obras de arte, mesmo que haja aquelas que atravessam os séculos sendo admiradas por todos. E muitas vezes eles entram em confronto de ideias sobre valores estéticos de determinados períodos.
Uma dessas grandes controvérsias tem acontecido em volta da questão -forma x conteúdo-. Muitos artistas levam mais em conta os processos formais de uma obra de arte. Outros, além da forma, também se preocupam com o -conteúdo- de seu trabalho, ou seja, que ele expresse a mensagem que ele quer transmitir, que provoque reação e sentimentos nos outros e na sociedade da qual faz parte. Muitas vezes, destaca Cunhal, os primeiros radicalizaram sua posição em defesa da forma, diminuindo o sentido e o significado do que faziam; e os segundos, por seu lado, menosprezando a forma, consideraram o conteúdo - a -mensagem- - como único valor a ser levado em conta.
Mas considerar a -forma- como valor estético é uma tautologia, diz ele, pois a forma em si já é beleza criada pelo artista. Só que o valor estético não para aí: ele também se acha presente -naquilo que a obra de arte transmite, na mensagem que conduz, nos sentimentos que provoca-. Ambos - forma e conteúdo - são, juntos, elementos integrantes do valor artístico. E dá um exemplo:
-Só um dogmatismo ideológico primário pode pretender que a mensagem de liberdade não é um elemento integrante do valor estético da 5ª Sinfonia ou da 9ª Sinfonia de Beethoven, a mensagem humanista no valor estético da Ressurreição de Tolstoi, a mensagem da história de libertação de um povo nos murais de Rivera e de Siqueiros.-
Nesse longo ensaio de 203 páginas, Álvaro Cunhal, em seu pródigo conhecimento sobre arte, retirou da pintura, da escultura, mas também da literatura, do teatro e da música, exemplos para ilustrar seu longo raciocínio sobre o papel da arte e do artista no mundo. Ao mesmo tempo, ele fala de seus próprios processos de criação artística, dizendo, entre outras coisas, que o que faz o entusiasmo e a entrega plena à criação por parte do artista vem de um -apelo interior-, pois isso tudo, mais do que uma opção de vida, é uma -vontade natural irreprimível- de criar, -um gosto, uma alegria-. Quem é artista sabe do que Álvaro Cunhal está falando-
Abaixo, um trecho do último capítulo do livro de Álvaro Cunhal, intitulado -A liberdade, o artista, a arte e a sociedade-, onde ele fala mais especificamente sobre processos de criação:
-Arte é liberdade. É imaginação, é fantasia, é descoberta e é sonho. É criação e recriação da beleza pelo ser humano e não apenas imitação da beleza que o ser humano considera descobrir na realidade que o cerca.
Seja intenção na atitude do artista empenhar-se exclusivamente em encontrar, eventualmente descobrir, elementos de valor estético na cor, no jogo de volumes, nos sons, na palavra, na linguagem, no gesto: seja intenção ou atitude do artista, ao mesmo tempo que se empenha na criatividade formal, levar à sociedade uma comunicação, uma ideia, uma mensagem - na criação artística o fator atuante direto e o impulso próprio ao qual se dá correntemente o nome de inspiração.
O entusiasmo, a aplicação, a entrega à criação artística, não resultam de uma decisão tomada a frio, mas de um apelo interior. A atividade artística pode ou não tornar-se uma profissão. É, porém, a profissão que resulta da criatividade e não a criatividade que resulta de uma opção profissional. A criação artística como tal, mais que uma opção, é uma vontade natural e irreprimível, um gosto e uma alegria.
Corresponde a uma necessidade espontânea do ser humano. Individualmente é desigual na intensidade, na permanência, na amplitude e riqueza do sonho e também na resposta que na criação artística o próprio artista acaba por dar à sua imaginação e a seu sonho.
Inspiração que leva a criar é já um saber natural. Mas não chega. São de desejar e necessárias escolas de arte - como tal intituladas e organizadas ou apenas como situações de fato inteiramente desformalizadas - em que a experiência e o saber no domínio dos meios formais passem de uns para outros. Também a consciência, o gosto e o propósito de uma mensagem. De desejar que os artistas, em vez de uma fácil e imediata autossatisfação, tenham a medida do que lhes falta, do que necessitam para ir além do que são no momento dado. Ilusão seria, entretanto, supor que tudo se aprende. Mais que ilusão, soberba de academismos, pretender que tudo se ensina.
Em muitos casos a espontaneidade, a inspiração natural e o autodidatismo permitem altos voos. Noutros, os altos voos são atingidos quando, a par da espontaneidade natural, os artistas se entregaram com paixão ao trabalho artístico. Constitui justificado motivo de espanto tomar conhecimento da imensidão da totalidade da obra e do gigantesco trabalho realizado por artistas que se contam entre os que mais marcaram a história da arte. Para esses, se sabe que o trabalho foi a -lei da arte como da vida--.
*Mazé Leite é artista plástica, bacharel em Letras pela Universidade de São Paulo, e faz pesquisa em História da Arte. Pertence atualmente ao Atelier de Arte Realista de Maurício Takiguthi, em São Paulo.
Nota
(1) Desenhos da Prisão foram publicados pela primeira vez pela Edições -Avante!- em 1975 por iniciativa do Partido Comunista Português. Foram executados entre os anos de 1951 a 1959 nas cadeias da Penitenciária de Lisboa, onde Álvaro Cunhal passou 7 anos de rigoroso isolamento, e do Forte de Peniche, de onde se evadiu em 03 de janeiro de 1960.
(2) Leia o artigo sobre Friedrich Wilhelm von Schelling (1775-1854) no blog Arte Mazeh: http://artemazeh.blogspot.com.br/2013/10/a-alma-do-mundo.html
LEGENDAS
Líder revolucionário do povo português e membro do Partido Comunista, Álvaro Cunhal foi, além de artista, um pensador da arte. Ao lado Desenhos da Prisão (1)
Pintura em óleo sobre tela, Álvaro Cunhal
Pintura em óleo sobre tela, Álvaro Cunhal
Desenhos da Prisão, Álvaro Cunhal