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Edição 128 > Desenvolvimento, energia, petróleo, Libra
Desenvolvimento, energia, petróleo, Libra
A polêmica surgida sobre o leilão de Libra mostrou a necessidade de se aprofundar a compreensão do que o PCdoB tem chamado de Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento. O -novo- se contrapõe aos -velhos- e aponta na direção da nova sociedade socialista. Por isso, é um projeto de aproximação com o socialismo. Deve ampliar e aprofundar pleitos democráticos e postular alguns de sentido socialista

A ideia desenvolvimentista é antiga no Brasil. Já nos meados do século XIX houve uma fase de grande desenvolvimento econômico chamada Era Mauá, que foi torpedeada pelo imperialismo inglês, pelos escravocratas e pela tibieza do Império. Outros projetos desenvolvimentistas se seguiram, e alguns vitoriosos no que se propunham. Tanto que, do final da Segunda Guerra Mundial até os primeiros anos da década de 1970, por exemplo, o crescimento do Brasil foi dos maiores do mundo.
Esses projetos, contudo, visavam a um desenvolvimento capitalista dependente, por conta da subordinação das elites brasileiras ao capital estrangeiro. Todo um cortejo de consequências nefastas o acompanhava: a espoliação pelo capital estrangeiro; a ausência de soberania efetiva; o predomínio de tecnologias subordinadas; a exportação de produtos primários ou de tecnologia atrasada; a importação de mercadorias de alto valor agregado; a despreocupação com o meio ambiente; o crescimento de monopólios privados; o fosso crescente entre ricos e pobres e regiões centrais e periféricas. Ocasionalmente, medidas de sentido socialista apareciam - como a organização de estatais, a diversificação industrial, a criação de órgãos de planejamento - porque também serviam ao desenvolvimento capitalista dependente.
Quando agora se fala em Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento não se está defendendo mais um desses projetos. O -novo- se contrapõe aos -velhos-, que foram vários, por ser um desenvolvimento que sinaliza o socialismo.
Desenvolvimento no sentido do socialismo
Em 2003, com Lula, começamos a trilhar um tipo de desenvolvimento diferente, que prossegue com Dilma: o Estado passou a centralizar a política interna e externa e a tomar todas as suas decisões, o que resgata a soberania; o mercado interno ganhou prioridade; a inclusão social passou a ser meta fundamental; a pobreza diminuiu. Na esfera política, ampliou-se a democracia, com trabalhadores e até comunistas em postos de governo. É um Novo Projeto que vai tomando corpo e que pode ir acentuando seu sentido socialista.
No desenvolvimento desse Novo Projeto, aparecem debilidades e erros. Heranças do neoliberalismo na política econômica não foram inteiramente extirpadas, por exemplo.
Assim, a luta pelo Novo Projeto deve ser travada em três frentes:
1. Para corrigir erros que perduram.
2. Para radicalizar metas de desenvolvimento meramente capitalista (reforma agrária, democratização dos meios de comunicação, ampliação da educação e de saúde, reforma tributária, reforma política, defesa do meio ambiente).
3. Para implantar medidas de sentido socialista, como as que põem em atividade produtiva grandes patrimônios, preservando-os como propriedades públicas. É aí que surgem os diferentes contratos para potencializar o uso de estradas, portos, aeroportos, blocos petrolíferos, linhas de transmissão etc.
A propósito, os comunistas chineses tiraram importantes lições de experiências do passado, da China e de países que já estavam construindo o socialismo. Uma delas considera inadequada a linha soviética da socialização completa de todos os meios de produção, defende a socialização específica de meios estratégicos e descortina o horizonte dos -contratos de gestão-.
Os -contratos de gestão- foram discutidos a partir do XIII Congresso do PC da China, em 1987. O Congresso salientou o -princípio da separação entre o direito de propriedade e o direito de gestão-; sustentou que -as empresas de propriedade de todo o povo não poderiam ser operadas por todo o povo e em geral não conviria que o fossem diretamente pelo Estado; toda tentativa de impor semelhante prática no passado, asfixiou o vigor e a vitalidade das empresas-; declarou que na China socialista prevalecem duas regulações: a do Estado, através da -assinatura de contratos-, e a do mercado; e concluiu: -o Estado regula o mercado e este orienta as empresas- (-Décimo Terceiro Congresso Nacional do Partido Comunista da China-, Pequim, 1987).
A -assinatura de contratos- é, assim, um dos modernos meios pelos quais, mesmo nas sociedades que já estão construindo o socialismo, como China e Vietnã, os Estados põem em ação grandes meios de produção sem abrirem mão da propriedade deles. A citada Resolução do PC da China assevera: -as propriedades das empresas são de todo o povo, e o Estado outorga os direitos de administrá-las, de acordo com o princípio da separação do direito de propriedade do direito de gestão-.
No Brasil, setores neoliberais, com Collor e Fernando Henrique, privatizaram grandes meios de produção, no sentido preciso do termo, ou seja, venderam grandes estatais, que deixaram de ser propriedades públicas e passaram a ser propriedades privadas.
Agora, esses setores procuram empulhar a opinião pública espalhando que os contratos de gestão com que os governos Lula e Dilma procuram dinamizar a economia, preservando o patrimônio público, são iguais às tramoias desses setores, quando transformaram propriedades públicas em propriedades privadas. Lamentavelmente, setores sindicais, estudantis e intelectuais, até de esquerda, deixaram-se envolver por essa cantilena falsa e reacionária.
Energia, fator decisivo para o desenvolvimento
Qualquer projeto desenvolvimentista requer financiamento e energia. Por coincidência, nas condições atuais do Brasil, um e outra estão imbricados.
Uma das formas para se aquilatar o desenvolvimento de um país é a medição de seu consumo de energia. A unidade dessa medição é a -TEP per capita- (tonelada equivalente de petróleo, por pessoa e por ano). Segundo a Agência Internacional de Energia (IEA), o consumo médio energético mundial é de 1,86 TEP/capita (IEA, 2012). Os países da União Europeia têm 3,22 TEP/capita, enquanto o Canadá e os EUA, respectivamente, 9,7 TEP/capita e 7,1 TEP/capita, recordes.
Os países chamados BRICS apresentam situação peculiar. A China, maior consumidora de energia do planeta (19% da energia total), tem 1,81 TEP/capita, um pouco abaixo da média mundial, por causa de sua enorme população. A Rússia, com população bem menor, tem 4,95 TEP/capita. A Índia, 0,59 TEP/capita, e a África do Sul, 2,74 TEP/capita, com nível de país desenvolvido. O Brasil, com 2% do consumo energético mundial, tem um índice de consumo energético de 1,36 TEP/capita (IEA), abaixo da média mundial.
Vê-se que uma arrancada desenvolvimentista no Brasil requer aumento significativo de sua disponibilidade energética. Para se chegar ao nível de país desenvolvido se deveria evoluir do atual 1,36 TEP/capita para algo próximo aos 3 TEP/capita. Meta audaciosa, mas não irreal, pois o consumo de energia no Brasil, entre 1970 e 1996, triplicou.
Ao expandir sua oferta de energia, o Estado deve considerar a sustentabilidade energética, definida como o uso simultâneo de diversas fontes, de fontes disponíveis e de fontes limpas. Hoje, a matriz energética brasileira já ostenta esses três requisitos, e é das mais limpas do mundo.
A oportunidade do petróleo
Com o pré-sal, o setor petrolífero passou a ter um potencial espantosamente grande, capaz de alavancar o financiamento do Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento e de aumentar nossa disponibilidade energética. Após sua descoberta, mudanças foram necessárias.
Já em 2007, o governo federal começou a tratar, de forma centralizada, o tema do pré-sal. Sob a direção do presidente Lula, na reunião do Conselho Nacional de Política Energética, em 27 de novembro de 2007, duas importantes medidas foram tomadas: 1) retiraram-se da relação dos blocos que iriam à IX Rodada de Licitações, 41 que estavam na área do pré-sal, por proposta do então diretor-geral da ANP. Posteriormente, nessa área, foram descobertos os campos gigantes de Franco e Libra; e 2) constituiu-se uma comissão interdisciplinar de oito membros para elaborar uma proposta global sobre a melhor forma de se explorar o pré-sal. A comissão, durante meses, examinou o assunto sob diversos ângulos.
Observou que, no mundo, em geral, usa-se contrato de partilha em áreas de baixo risco exploratório e alto potencial. A propriedade do óleo extraído é da União e a empresa contratada computa seus lucros após ressarcir os custos, pagar os royalties, os tributos e a parcela do excedente em óleo acertada no contrato.
A partilha permite ao governo o controle da produção, e ele fica em posição favorável para enfrentar o risco da -doença holandesa-(1), que ocorre quando muito petróleo é produzido e exportado. Dólares em profusão entram no país, a moeda nacional se valoriza, as importações ficam baratas, a produção nativa encarece, perde-se competitividade e o país pode sofrer desindustrialização.
A -comissão de oito-, ao final, encaminhou ao presidente uma proposta segundo a qual, na área do pré-sal e congêneres, dever-se-ia adotar a partilha; a Petrobras seria a operadora única nessa região; uma nova empresa, 100% estatal, deveria ser criada para gerir os contratos ali firmados; com recursos do pré-sal, um Fundo Social soberano também deveria ser criado, para defender a economia dos riscos da -doença holandesa- e para financiar políticas sociais; e uma capitalização da Petrobras deveria ser feita. O presidente Lula encaminhou ao Congresso projetos de lei com essas propostas que, em 2010, viraram leis.
Na continuidade, no governo Dilma, outra importante lei foi aprovada: 75% dos royalties do petróleo foram destinados à educação e 25% à saúde, nos contratos de comercialidade declarada desde 3 de dezembro de 2012, bem como 50% do Fundo Social do pré-sal, até que se cumpram metas determinadas. É o petróleo contribuindo para financiar o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento.
Leilão de Libra, teste vitorioso do contrato de partilha
No mundo, avolumam-se indicações de uma possível mudança de paradigma energético. O predomínio do petróleo pode estar chegando ao fim, não por falta de petróleo, mas porque novas tecnologias estão viabilizando energias alternativas. O petróleo não está se esgotando. O que está se esgotando é o -petróleo fácil-, em terra, em águas rasas. Os novos mananciais que se vislumbram estão no Ártico, nas -areias betuminosas- do Canadá, no xisto da Venezuela. São -reservas não-convencionais-, grandiosas, mas de custos altíssimos, financeiros, tecnológicos e ambientais.
De certa maneira, estamos chegando atrasados na seara da grande produção petrolífera. E o petróleo do pré-sal, embora não seja do tipo referido acima, é, contudo, um petróleo caro, em águas ultraprofundas, afastado do litoral, debaixo de dois quilômetros de água e mais quatro a cinco de areia, rocha e sal.
A descoberta do pré-sal foi anunciada em 2007. Seis anos se passaram até que fossem programados os primeiros movimentos para explorá-lo. Um leilão seria feito. Aí surgiu a ideia de se adiar o leilão. Não tinha razão de ser.
Com o leilão de Libra anunciado, outra questão foi posta. Por que não entregar Libra à estatal- Esse assunto foi tratado.
A Petrobras arrematou, com a BritshGas e a Petrogal, na II Rodada de Licitações da ANP, no ano de 2000, o bloco BM-S-11. E então descobriu o pré-sal, nos prospectos de Tupi e Iracema, depois campo unificado de Lula e Cernambi. Era uma acumulação enorme, de 6 a 8 bilhões de barris de petróleo. Em seguida, descobriu Iara (3 a 4 bi), Guará (1 a 2 bi) e outros. Ficou assim com 10 a 14 bilhões de barris de petróleo no pré-sal, sob regime de concessão.
Quando se estava mudando o marco regulatório da nova área, decidiu-se por fortalecer a Petrobras, definindo-a como operadora única na região e lhe cedendo cinco bilhões de barris de petróleo do pré-sal.
A ANP localizou dois pontos no pré-sal, em área da União, que, perfurados, levaram a Franco e Libra, cada um com 5 a 8 bilhões de barris - valorizações depois aumentadas. O governo deliberou ceder cinco bilhões de barris do petróleo de Franco à Petrobras, sem licitação, sem cobrança de bônus de assinatura, sem pagamento de Participação Especial, apenas pagando royalties de 10%. Nessa base, a Petrobras procedeu à maior capitalização já feita no mundo - levantando US$70 bilhões.
O Estado brasileiro também ganhou nessa capitalização. Sua participação no capital social da empresa saiu de 39% e foi para 48%. (Os 52% restantes são de capital privado, a maior parte estrangeiro).
Com cinco bilhões de barris de petróleo de Franco cedido à Petrobras, que já detinha no pré-sal concessões de 10 a 14 bilhões de barris, os órgãos governamentais deliberaram que a próxima acumulação - Libra - deveria ir a leilão, para promover vantagem financeira para a União, com bônus elevado (R$15 bilhões), royalties de 15% e um mínimo de 41,65% de participação no excedente em óleo. Isto resultaria em grande impulso.
Após o leilão de Libra, houve incompreensão sobre o quanto do óleo extraído iria para a União. Como do Consórcio vencedor participaram a Petrobras com 40% e quatro empresas estrangeiras com 60%, houve quem achasse, espantosamente, que -as estrangeiras ficaram com 60% de Libra-, e que -Libra foi privatizada-. Na verdade, a Petrobras tem 40% e as quatro estrangeiras têm 60% não de Libra, mas do Consórcio vitorioso. O Consórcio não ficou dono de Libra, nem do petróleo lá existente, nem do petróleo extraído de Libra, nem de nada, porque não houve privatização, como houve com a Vale do Rio Doce, com Volta Redonda, Usiminas e tantas outras que deixaram de ser patrimônios públicos e passaram a ser propriedades privadas, nos governos de Collor e FHC.
O Consórcio que ganhou o leilão procederá da seguinte forma: pagará à União R$15 bilhões a título de Bônus de Assinatura; assinará um contrato de partilha da produção pelo qual, em Libra, fará investimentos por conta própria, na fase de exploração, durante 5/6 anos; alcançado o petróleo, poderá extraí-lo por mais 30/29 anos, desde que: a Petrobras seja a empresa operadora; a Pré-sal Petróleo SA (PPSA) - empresa 100% estatal - esteja na gestão do projeto, com voto de Minerva e poder de veto; desconte, do petróleo extraído, o montante investido e pague à União 15% de royalties; do excedente, pague ainda à União 41,65% em óleo, mais Imposto de Renda (25% do ganho do consórcio), mais Contribuição Social sobre Lucro Líquido (9%) e mais dividendos do governo na Petrobras.
Todas as parcelas referidas, somadas, chegam a 75%, ou mais, que é a parte da União no petróleo extraído de Libra, afora os custos. O lucro do Consórcio é o restante, e é deste restante que a Petrobras tem 40%, a Shell 20%, a Total 20%, a CNPC 10% e a CNOOC 10%. A escala muito elevada da produção de Libra torna, ainda assim, o negócio vantajoso para o Consórcio. Mas o grande vencedor do leilão de Libra foi o Brasil.
* Haroldo Lima é membro do Comitê Central do PCdoB e foi diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
Nota da redação:
(1) Em economia, o termo -doença holandesa- (do inglês Dutch disease) refere-se à relação entre a exportação de recursos naturais abundantes e o declínio do setor manufatureiro, com risco de desindustrialização.
LEGENDAS
Localização de Libra no pré-sal brasileiro
Final do leilão de Libra -
1ª Rodada de Licitação do Pré-Sal. No centro da foto, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo; à sua esq. a diretora-geral da ANP, Magda Chambriand; a sua dir. o ex-diretor-geral da ANP, Haroldo Lima. A dir., em pé, o ministro de Minas e Energia, Edson Lobão