Cultura
Edição 113 > A cultura digital, os direitos autorais e sua ressignificação
A cultura digital, os direitos autorais e sua ressignificação
A reforma do direito autoral, de forma progressista, é a consolidação de um novo período de protagonismo brasileiro. É um caminho novo a seguir, em detrimento a outros países que estão escolhendo enrijecer suas leis e prender adolescentes por conta de downloads de uso doméstico. Uma nova legislação nesta área deve, portanto, dialogar com o presente, enxergar os avanços de uma nova geração que tem hábitos e valores diferentes e inovadores.

O desafio de pensar a cultura como política pública, hoje, é dar conta de um universo que envolve o incentivo à produção e à distribuição, superando o simples consumo. Em tempos de comunicação hiperconectada, cabe também pensarmos em uma cultura digital, em como este campo da produção e consumo cultural das redes digitais se relaciona com diversas outras formas de interação, em como respeitar direitos e potencializar possibilidades de criação. A cultura digital sugere, imediatamente, colaboração e recombinação. Porém, na maioria das vezes, há limites criados pelo próprio sistema que nos envolve.
Neste sentido, algumas questões tornam-se fundamentais: como pensar direitos de produtores e consumidores em uma indústria de intermediários consolidados, como editoras e gravadoras- Como pensar o desenvolvimento necessário para o país, através de uma reforma do direito autoral que contemple o máximo possível de envolvidos na cadeia produtiva-
No pós-Guerra, uma escola marxista se debruçou sobre o estudo da cultura no capitalismo e como ela estava sendo povoada e racionalizada pelo mercado. A escola de Frankfurt percebeu o deslocamento no capitalismo no campo da produção de cultura de massa, onde uma estética de baixa qualidade denotaria a perda -aura- em detrimento da reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 1936). A homogeneização do rádio e da TV estaria primando pelo aplainamento das virtudes estéticas, pela distribuição de conteúdo de fácil assimilação. Em resumo, a indústria cultural seria o novo espaço de reprodução do modo de produção corrente (ADORNO, 2010).
Uma das grandes respostas à Escola de Frankfurt é que, para além de ser povoada pelo capital, a produção cultural também institucionalizou um tipo de propriedade: a propriedade intelectual. Esta, conhecida por congregar direitos industriais e direitos autorais, dentro do escopo da Organização Mundial do Comércio (OMC), consolidou o deslocamento do campo da produção de ideias para a mesa de negociações internacional, onde remédios, suco de laranja e royalties de filmes de Hollywood são colocados sob o mesmo escopo.
Os alicerces desse deslocamento seguiram por duas concepções emprestadas do liberalismo clássico: a propriedade natural dos bens e o incentivo econômico a novas produções. Seria, assim, justificada a remuneração sobre bens de propriedade imaterial porque são originários da capacidade individual criativa ou porque este indivíduo deve se sentir motivado economicamente (JAGUARIBE & BRANDELLI, 2007).
A partir dos anos 1950, uma nova classe emergente baseada na produção de riqueza sobre áreas do conhecimento agregado jogou muito mais força na tomada de decisão das regras de acumulação de riqueza a partir da produção imaterial (SOLAGNA & MORAES, 2010), que resultaria na parceria do capital fi de risco com empresas de inovação baseadas em conhecimento agregado, se apoiando na capacidade de gerar produtos de utilização rápida em um mundo globalizado (CASTELL, 2001; GORZ, 2005).
Nesse contexto, se apoiam os grandes intermediários do copyright - a indústria de cinema, música, fármacos, sementes e software -, que visam a estender cada vez mais o controle de uso sobre os usuários finais. Do mesmo modo que as produtoras de sementes tentam controlar o processo de plantio e colheita, exigindo pagamento de royalties, as lojas virtuais de música pretendem controlar quantas vezes uma música é executada, cobrando individualmente a execução de cada fonograma (vide o caso recente do serviço Sonora, lançado pelo portal Terra).
Porém, na contramão dessa história, nascem os commons. Os espaços comuns em que as fronteiras entre consumidor e produtor são reduzidas são colocados em suspenso pela mesma capacidade interativa com que a internet tem de conectar as pessoas de forma imediata. Os commons denotam as áreas onde há direitos compartilhados e não meramente impostos pela ordem estabelecida. Os commons não possuem uma tradução para o português exata, pois é uma ideia para além do comum ou do público e denota, também, responsabilidade entre as partes envolvidas.
O primeiro grande movimento nasce propriamente da ideia de copyleft, inaugurada com o movimento de software livre por Richard Stallman na década de 1980. Em oposição a uma indústria de softwares, o hacker norte-americano utilizou a própria lei de direitos autorais para assegurar direitos de reprodução para os softwares que escrevia. A grande diferença entre software livre e outros softwares é que o primeiro assegura que os bens gerados a partir deste serão compartilhados e jamais apropriados por qualquer outro, seja um indivíduo ou corporação. O modelo do software livre inaugura a capacidade exponencial de se gerar riqueza coletiva digital, no sentido de que a cooperação se torna mais eficiente que a competição, invertendo a lógica do liberalismo.
O projeto Creative Commons estendeu o entendimento do movimento de software livre para o licenciamento de outros conteúdos digitais. Qualquer criação - um documento, música, livro - também pode adotar outro modelo de licenciamento em que autores são respeitados e os direitos patrimoniais são compartilhados entre os usuários, bastando indicar a licença na distribuição do conteúdo. Nos círculos ativistas da rede se diz que são licenças alternativas, pois justamente constituem uma alternativa ao modelo monolítico do direito autoral tradicional.
Não por menos, tem sido utilizado por diversas organizações e governos. Tanto a Casa Branca norte-americana, como o Parlamento australiano, o blog da presidência no Brasil, bem como o Gabinete Digital no Rio Grande do Sul utilizam essas licenças para distribuir seu conteúdo. É uma prática mais transparente de se trabalhar com dados públicos.
Tratar o direito autoral como propriedade é, antes de mais nada, um oximoro. Afinal, tratar de marcas, patentes, desenhos industriais, música e arte, sob o mesmo registro, somente serve a quem precisa transformar tudo isso em unidades de valor. O que trouxe o debate dos direitos autorais para o campo do mercado, como produto que necessita ser vendido como laranjas, foi o próprio movimento da indústria fonográfica que conseguiu colocar a agenda digital dentro dos debates da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e da OMC.
O estado da arte
Imagine por um momento que você escreveu um livro e agora precisa distribuí-lo. O caminho natural seria procurar uma editora, arcar com altos custos de impressão, negociar espaços de prateleira nas principais livrarias do país e, para um iniciante, ter entre mil e dois mil exemplares distribuídos. Dentro dos padrões de mercado, você teria entre 0% e 30% do valor de capa a receber, dependendo, lógico, da sua influência.
Imagine que um leitor e fã seu - talvez um produtor de teatro ou TV - estivesse interessado em adaptar a sua obra. Neste caso, além de ficar muito feliz por mais pessoas poderem desfrutar da sua obra, você não ganharia nada a mais. Os direitos patrimoniais ficaram com a editora e agora ela vai lucrar com seu sucesso.
Seguindo no exemplo, você resolve trocar os livros pela música, já que os shows noturnos lhe fornecem renda mais imediata. Depois de um tempo, algumas composições são colocadas em um disco e você resolve sair vendendo nos shows que faz pela cidade. Sem uma gravadora e sem ninguém para ajudá-lo a distribuir seu disco num país continental, como é o caso do Brasil, você resolve colocar as músicas na Internet gratuitamente. Neste momento você só está interessado em que as pessoas o conheçam melhor. Para sua surpresa, depois de um pequeno sucesso, quem bate à porta do boteco que você costuma tocar é o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), cobrando pela execução pública das suas próprias músicas. Argumento: como entidade arrecadadora, tem responsabilidade de coletar os dividendos de qualquer execução sonora e, se as composições são suas, deveria ter se associado e avisado o escritório com duas semanas de antecedência, para que um fi de outra categoria conferisse o caso.
Os commons, neste caso, seriam uma ótima solução. Você poderia registrar seu livro e suas músicas em uma licença alternativa, indicando que você gostaria de comercializar essa produção, sem ter de vender seus direitos para uma editora ou empresa. Mesmo no Brasil, você contaria com uma tradução juridicamente aceita desta licença, através do esforço da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e do Ministério da Cultura (MinC). Não seria necessário renegar seus direitos de autor, nem colocar seu trabalho em domínio público. O que é melhor: poderia, ainda assim, obter lucro com suas obras indicando somente o compartilhamento de alguns direitos como, por exemplo, a possibilidade de execução gratuita para fi não lucrativos (como para fins educacionais, beneficentes etc.).
Porém, a realidade é que no Brasil, assim como em boa parte do mundo, o Estado é um dos maiores subvencionistas da arte. Para livros, a subvenção, em forma de renúncia fiscal chega a alcançar quase três vezes o orçamento do MinC. Na música, as entidades arrecadadoras detêm poder conferido em lei para ter direitos acima de qualquer fiscalização dando margem para distorções como vimos ultimamente, quando o ECAD repassou quase R$ 130 mil para um falsário por suposta autoria de trilhas sonoras.
Pensar novos modelos de licenciamento, induzidos pelo Estado, é pensar outro tipo de desenvolvimento da cultura, um modo alternativo ao tradicional enrijecimento das leis de proteção autoral como conhecemos na França, EUA ou Espanha.
A quem interessa um livro estar protegido por 70 anos após a morte do autor- A quem interessa resguardar quase ao esquecimento toda a obra do Noel Rosa, somente disponível em domínio público há quatro anos- A quem interessa alijar um acervo de valor inestimável na Cinemateca Brasileira sem condições de manutenção por impedimento de cópia e de ser executada nas salas de cinema espalhados nas universidades federais ou nos cineclubes-
Há, porém, uma confusão muito grande quando se trata de modelos alternativos ao tradicional direito autoral. A capacidade de artistas, produtores e escritores estabelecerem seus canais de sustentabilidade transcende um simples contrato com uma editora ou gravadora. Muitos artistas já têm experimentado estas novas modalidades dentro e fora do Brasil. Desde a década de 1990, a banda americana Nine Inch Nails distribui suas músicas diretamente na internet porque considerou o preço cobrado pela gravadora abusivo. Bandas como Mombojó, BNegão, Móveis Coloniais de Acaju e o artista gaúcho Felipe Catto também usaram a internet como forma de distribuição. Não dispensam, no entanto, sua sustentabilidade através de shows e da venda de discos, alavancada pela divulgação do meio virtual. Serve como referência, ainda nesse sentido, o caso recente do Teatro Mágico, que lançou todo um disco licenciado em Creative Commons.
Um importante destaque nesse sentido diz respeito à diferença entre direito autoral e direito do autor. Frequentemente confundidos, há diferenças consideráveis e que interferem no entendimento do que debatemos. A propriedade intelectual é formada pela propriedade industrial e pelo direito autoral. O direito de propriedade industrial diz respeito à utilidade da produção, da criação, seja no âmbito empresarial ou comercial. Ou seja, trata da patente ou marca do produto. Já o direito autoral é a parte da propriedade intelectual que diz respeito à proteção da criação e da utilização de obras intelectuais estéticas (ex: literatura e artes). Ou seja, trata diretamente do criador.
Uma política cultural para uma cultura digital. Nos últimos anos, a própria ideia desenvolvida de cultura digital congregou uma acertada aposta na potencialidade da internet, software livre, creative commons e culturas locais. Um Brasil - antes invisível - tomou o centro da referência estética, mesclando a diversidade brasileira, o tradicional e o moderno, traduzidos em linguagens multimídia para os tempos de uma sociedade hiperconectada. Isso se deu, por exemplo, através dos Pontos de Cultura e de diversas outras ações.
O próprio termo -cultura digital- é genuíno, forjado no cotidiano de uma política pública pensada a partir da descentralização de recursos públicos de incentivo à produção cultural. Ela não seguiu padrões como, por exemplo, a indústria do copyright (no caso americano) ou as indústrias criativas (no caso inglês). Aliás, as indústrias criativas são muito afeitas à concentração de larga produção regionalizada que cria focos de produção de conteúdo centralizado (de alguma maneira experimentado no Brasil na cidade do Rio de Janeiro).
Trazendo a discussão para a nossa realidade, vimos, nos primeiros meses da nova gestão do Ministério da Cultura, uma mudança muito mais substancial do que alguns erros graves. Para além de retirar o selo do Creative Commons - pois seria uma marca estrangeira -, ou chamar uma nova rediscussão da reforma da Lei do Direito Autoral (LDA), o foco do MinC foi ajustado para a produção de indústrias criativas, agora com secretaria própria. Essa política, originária dos anos 1990 na Inglaterra, não terá espaços de mediação com uma política de cultura digital, por diferença de objetivo.
Uma política cultural baseada na cultura digital passa por pensar outra modalidade de subvenção pública para a cultura através de uma alternativa a Lei Rouanet, que priorize essas produções como bens públicos. Também passa por pensar a cultura como direito à cidadania, através de iniciativas como o Vale-Cultura. Além disso, passa por uma mudança estrutural na LDA, pensando uma lei adaptada ao século XXI, com as formas colaborativas de produção e distribuição.
Fundamentalmente, é preciso que os rumos para a cultura estejam alinhados com objetivos maiores do Estado, no sentido de criar seu próprio caminho de desenvolvimento.
Uma agenda mínima para a reforma
Entre reveses e vozes dissonantes no caso do MinC, temos dito que há, para além de rotulações, duas distintas agendas em torno da propriedade intelectual em disputa.
No que tange à propriedade intelectual, o Brasil sempre teve uma atitude de vanguarda. Propôs, junto com a Argentina e outros países, a agenda para o desenvolvimento na Organização Mundial da Propriedade Intelectual, que pautou outro rumo para os bens intelectuais. Contra as investidas das indústrias do norte, conseguimos garantir preços menos abusivos para o coquetel antirretroviral e uma punição aos subsídios agrícolas americanos que tanto prejudicam nossa produção de algodão. Soube-se distinguir que desenvolvimento não são receitas prontas de -modernização-.
A reforma do direito autoral, de forma progressista, é a consolidação de um novo período de protagonismo brasileiro. Como o advogado e ativista Lawrence Lessig afirmou em 2010, na Campus Party, em São Paulo, -o Brasil pode se tornar referência mundial- se conseguir adaptar suas leis de forma coerente com a realidade das mídias digitais. É um caminho novo a seguir, em detrimento a outros países que estão escolhendo enrijecer suas leis e prender adolescentes por conta de downloads de uso doméstico. A nova LDA deve, portanto, dialogar com o presente, deve representar e concretizar os avanços de uma nova geração que tem hábitos e valores diferentes e inovadores.
Dentro das discussões já efetivadas pela sociedade civil sobre a reforma, entendemos que é preciso uma pauta mínima para uma reforma eficaz e moderna. Essa pauta inclui, por exemplo, o estabelecimento de exceções para uso educacional e para usos sem fim lucrativo; o chamado -uso justo-, ou -fair use-, de obras em situações específicas a criação de um Conselho Nacional de Cultura que possa fiscalizar as entidades arrecadadoras; a possibilidade e incentivo de licenciamento alternativo, como o Creative Commons, para produções subvencionadas ou patrocinadas com dinheiro público; o direito de acesso aos meios digitais e descriminalização das cópias digitais, estabelecendo limites e exceções; a importância de barrar qualquer iniciativa de bloqueio de cópia por instrução digital, ou seja, extinguir a possibilidade de barreiras por software nos suportes de distribuição de conteúdo, seja na TV Digital, seja em discos ou músicas vendidas pela rede.
Em tempos em que a dimensão da propriedade intelectual é central para se pensar o desenvolvimento da cultura no país, nos ocorre que os termos que balizam a luta por uma agenda progressista estão na determinação de quem detém a -posse- dos bens imateriais. A propriedade intelectual cria barreiras artificiais que não permitem permeabilidades, políticas de acesso e distribuição de bens culturais de forma não comercial. Homogeneizada pelos intermediários da indústria cultural, a propriedade intelectual só está contribuindo para o rearranjo de forças de dominação sobre a cultura nacional.
Mais do que nunca, pensar local é ter a dimensão global de que a disputa se dá na capacidade de construirmos caminhos que dialoguem com experiências inovadoras, que auxiliem na constituição de uma agenda positiva.
Acreditamos que as indústrias criativas serão aquelas que poderão pensar em acesso e distribuição para além somente do mercado. Já não é possível reprimir ou contestar a disseminação generalizada de conhecimento e cultura. Afinal, a informação e a cultura ganham valor na medida em que são divulgadas e ressignificadas pelas pessoas.
Manuela D'Ávila é deputada federal (PCdoB-RS). Atualmente preside a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados @deputadamanuela www.manuela.org.br
Fabricio Solagna, do Gabinete Digital do governo do estado do Rio Grande do Sul @magicofuxu www. gabinetedigital.rs.gov.br
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. http://bit.ly/5WQegU
GORZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005. 107p.
JAGUARIBE, Roberto & BRANDELLI, Otávio. -Propriedade Intelectual: espaços para os países em desenvolvimento-, in VILLARES, Fabio (org.). Propriedade Intelectual: tensões entre o capital e a sociedade. Paz e Terra, 2007.
MARCUSE, Theodor. -Indústria Cultural - o Iluminismo como mitificação das massas-, in Indústria Cultural e Sociedade. Paz e Terra. 2010.
SOLAGNA, Fabricio & MORAES, Bruno. -Patentes de Software e Propriedade Intelectual como estratégias de monopólio-, in LEAL, Ondina Fachel & SOUZA, Rebeca Hennemann Vergara de (org.). Do Regime de Propriedade Intelectual: estudos antropológicos. Tomo. 2010.