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Edição 113 > Os crimes do latifúndio
Os crimes do latifúndio
As medidas policiais contra os assassinos e mandantes são necessárias, mas não bastam. O Brasil não pode conviver mais nem com os crimes do latifúndio nem com a anacrônica estrutura da posse da terra, que é a fonte da violência no campo

Uma faceta do conflito pela terra que ganha realce no Brasil é a violência dos madeireiros contra lutadores pela reforma agrária e pelo cumprimento da legislação de proteção das florestas e do meio ambiente.
É o que se pode concluir da avaliação feita pelo ouvidor agrário nacional, Gercino José da Silva Filho, em relação à recente onda de mortes de trabalhadores rurais nos estados do Pará, Rondônia e Mato Grosso, onde, em menos de três semanas desde o final de maio, seis trabalhadores rurais foram assassinados por pistoleiros ligados a latifundiários e a exploradores ilegais das madeiras da floresta.
O mais recente acontecimento dessa série macabra foi o assassinato do trabalhador rural Obede Loyla Souza, em 9 de junho, no Acampamento Esperança, em Pacajá (PA). As vítimas anteriores tombaram em Nova Ipixuna (PA), o casal de castanheiros José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, em 24 de junho; e Eremilton Pereira dos Santos, no dia 29 - mortos por denunciar a ação ilegal de madeireiros e lutar pela reforma agrária. Em Vista Alegre, distrito de Porto Velho (RO), no dia 27, tombou o líder camponês e dirigente comunista, Adelino Ramos (o Dinho), que dirigia o Movimento Camponês Corumbiara (MCC) - um sobrevivente do massacre de Corumbiara no qual, em 1995, pelo menos 12 pessoas foram mortas a tiros por pistoleiros e PMs. Dinho, que fazia parte da direção estadual do PCdoB, era um lutador pela reforma agrária e também denunciava a atuação ilegal dos madeireiros na região.
Segundo a ouvidoria agrária nacional, há cerca de 290 inquéritos de assassinatos de trabalhadores rurais apenas naqueles três estados: 170 no Pará, 70 em Rondônia, e 50 no Mato Grosso. A principal causa das mortes salta à vista. -É a disputa pela terra-, diz o ouvidor Gercino e, como sempre, decorrem da resistência dos trabalhadores rurais contra a forma tradicional pela qual o latifúndio se apropria das terras, como ele explica: -Em geral, os latifundiários se apropriam de grandes áreas públicas, os sem-terra descobrem e fazem ocupações nesses locais-, pleiteando a reforma agrária naquelas terras públicas cobiçadas pelo latifúndio. Com o diferencial de que, além dos grileiros tradicionais, hoje há também madeireiros ilegais entre os criminosos. "Os madeireiros e grileiros pegam empregados e jagunços para expulsar os trabalhadores das áreas. Também pressionam a polícia para retirar os acampados sem ordem judicial. É comum eles destruírem os barracos e os bens dos trabalhadores. Nos casos mais extremados, mandam até matar. Uns 98% dos mortos são sem-terra", assegura.
Edson Luiz Bonete, superintendente do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Marabá (PA), concorda com essa avaliação e diz que os madeireiros são hoje os principais responsáveis pelas mortes no campo. O grande problema, diz,"é a disputa pela madeira. No passado era entre o fazendeiro e o sem-terra, que antes faziam a disputa no corpo a corpo e hoje fazem na Justiça. Hoje a briga é entre o madeireiro e os pequenos produtores, os assentados".
Mudanças na história
O sangue de trabalhadores rurais encharca o campo brasileiro desde tempos imemoriais. No passado colonial, senhores de terras e escravos empregavam a violência para manter sob seu controle estes dois (as terras e os escravos) que eram os principais fatores da produção da época. A violência contra os posseiros, que ocupavam áreas da fronteira agrícola, e depois, pela fome latifundiária por terras, enche os livros de história agrária e social de nosso país (ver, por exemplo, MARTINS e ANDRADE).
Com a República surge também a luta pela reforma agrária, reivindicação antiga de José Bonifácio de Andrada e Silva já no período da Independência, e que será retomada por personalidades como Silva Jardim, Lopes Trovão, André Rebouças, Silvio Romero, entre outros. A presença desta reivindicação na agenda democrática brasileira foi reforçada depois da fundação em 1922 do Partido Comunista do Brasil que, desde então, incorporou esta bandeira em seu programa para o progresso social e democrático em nosso país. Dinho, em Rondônia, é um dos heróis que pagaram com a vida pela fidelidade a esta herança.
O uso da violência armada pelos latifundiários foi constante, com a conivência aberta da polícia e do aparato repressivo e institucional do Estado brasileiro, como ocorreu, em tempos recentes, durante a ditadura militar de 1964. Esse conluio das autoridades policiais com a violência latifundiária ainda continua em muitos lugares, sendo frequentemente denunciada por lideranças da luta pela reforma agrária. Sendo também visível na ação sanguinária da repressão em episódios como os massacres de Corumbiara e Eldorado de Carajás (em 1996, sintomaticamente no sul do Pará), mas também pela ação inquestionada e quase sempre violenta exercida por tropas acionadas para desalojar trabalhadores em ocupações pelo país afora.
Ocorreram grandes mudanças na história desse conflito desde meados do século passado. Estudiosos mostram que, nas décadas de 1940 e 1950, a principal característica das lutas camponesas era serem locais, sendo exemplos disto a Guerrilha de Porecatu (década de 1950, no Paraná), e de Trombas e Formoso (mesma época, em Goiás). As lutas começaram a se generalizar e tomar o caráter de movimentos políticos de massa com as Ligas Camponesas (anos 1950 e 1960) e com a implantação dos sindicatos de trabalhadores rurais, que emergiram com força na primeira metade da década de 1960 - movimentos ligados ao Partido Comunista do Brasil e também a setores progressistas da Igreja Católica.
A ditadura militar calou esses movimentos à base de prisão, perseguição e assassinatos. E a novidade da política de modernização conservadora do campo introduzida pelos militares se manifestou também nos conflitos agrários. Ao criar subsídios e formas diversas de incentivos financeiros para a transformação dos velhos latifúndios em -empresas capitalistas rurais- (os atuais agronegócios), os governos militares abriram as portas para o fortalecimento de empresas monopolistas no campo, que passaram a adquirir terras para especular e se beneficiar daqueles programas de modernização, acentuando sua presença entre os proprietários rurais. Na esteira dessa modernização conservadora proliferaram os conflitos entre o grande capital e seus representantes contra populações de posseiros que, há gerações, ocupavam terras na fronteira agrária, principalmente na Amazônia, mas foram sendo sucessivamente expropriadas e expulsas de suas terras, conflagrando principalmente a região que vai do norte do Mato Grosso ao sul do Pará, e inclui parte do Maranhão (ver a respeito IANNI, CASALDÁLIGA e MENDONÇA).
Domínio do capital
O recurso a pistoleiros, jagunços e à repressão policial desenfreada continuou sendo a norma no enfrentamento destes conflitos gerados fundamentalmente pela apropriação - sob o manto da ordem legal - de terras ocupadas há gerações por trabalhadores rurais, populações tradicionais, indígenas e quilombolas. Essa rotina de violências foi descrita, entre outros estudos, no livro Retrato da Repressão Política no Campo - Brasil 1962-1985, publicado pelo Ministério do Desenvolvimento agrário em 2010. Um estudo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) já indica que, de 1964 a 1989, ocorreram 1.566 assassinatos de trabalhadores rurais, com registro de apenas 17 julgamentos e de oito condenações, numa clara caracterização da impunidade.
Foi dessa maneira que se criou o cenário onde floresceria a forma contemporânea de conflito agrário. A extensão do domínio do capital sobre o campo, o desajuste financeiro e econômico que provocou a inadimplência de multidões de pequenos proprietários e os expulsou do campo, confluíram - na altura da Nova República, em 1995 - numa nova dimensão dos conflitos. Com o tempo, a resistência dos posseiros, que marcou as décadas de 1970 a 1980, foi sendo substituída pela pressão dos trabalhadores rurais sem terra. No ambiente da Nova República e, principalmente, da Constituinte de 1987-1988, a reação latifundiária passou a ser dirigida por uma nova entidade, a União Democrática Ruralista (UDR), que fomentou a formação de milícias privadas latifundiárias contra as ocupações promovidas pelos trabalhadores sem-terra, ações de resistência que os latifundiários atribuíam à distinção que se firmava então entre terras produtivas e terras improdutivas, tornando estas últimas prioritárias para a política de mudança na estrutura da propriedade da terra definida pelo Plano Nacional de Reforma Agrária, de 1985.
O objetivo dessas milícias era a defesa da sacrossanta propriedade privada contra o que os latifundiários chamam de -invasões- de terras que poderiam ser destinadas à reforma agrária. A disposição dos latifundiários de pegar em armas para isso voltou a ser reafirmada em 2003 quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu, no Palácio do Planalto, representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com os quais confraternizou indicando uma mudança simbólica das relações entre o governo federal e as lideranças da luta pela reforma agrária. A resposta latifundiária ficou registrada nos gráficos de agravamento da violência no campo e no aumento do número de assassinatos de trabalhadores rurais, que deu um salto naquele ano.
É quase uma tautologia dizer que a luta pela terra é o principal motivo da violência no campo. E ela se acentua paralelamente ao crescimento da exigência camponesa de regularização fundiária e de reconhecimento da propriedade de seus lotes, oscilando em níveis de grande gravidade ao longo dos anos. Nesse sentido, o relatório da CPT sobre conflito no campo divulgado em 2010 registrou um aumento no número de assassinatos de trabalhadores rurais em relação ao do ano anterior, denunciando a ocorrência de 34 mortes, 30% a mais do que em 2009. E sinaliza também o aumento de outras formas de violência, como os conflitos pela água, o crescimento da exploração do trabalho escravo e a reação armada do latifúndio contra a luta social no campo.
Providências inócuas
Em 2001 - registra aquele relatório - ocorreram 880 conflitos, passando para 925 em 2003 e chegando ao máximo de 1881 em 2006, estabilizando-se depois na faixa dos 1180 entre 2008 e 2009. Eles resultaram em 29 assassinatos em 2001, passando para 73 em 2003, caindo para 39 em 2004, depois para a faixa de 26 a 28 entre 2007 e 2009, e voltando a aumentar, vitimando 34 trabalhadores rurais em 2010.
É uma contabilidade trágica. Juntamente com a pobreza rural, a violência do latifúndio continua sendo uma praga endêmica. Entre 1986 e 2006, mais de 1,1 mil trabalhadores rurais foram assassinados; 3,2 mil foram ameaçados de morte; houve cerca de mil tentativas de assassinato; 1,8 mil famílias foram expulsas e 19,5 mil foram despejadas.
As listas de lideranças marcadas para morrer proliferaram nestes anos, sem que fossem tomadas providências eficientes para proteger os ameaçados. Segundo a CPT, entre 2000 e 2011, foram assassinados 42 camponeses cujos nomes estavam nessas listas. Na década passada, agricultores receberam 1855 ameaças de morte ao todo. Do total, 207 foram ameaçados duas ou mais vezes. José Cláudio Ribeiro da Silva, Maria do Espírito Santo da Silva e Adelino Ramos faziam parte de listas semelhantes há muitos anos!
Nos momentos em que a violência no campo se exacerba, com sua rotina medonha de assassinatos e destruições, desengavetam-se providências policiais e judiciais que, sendo necessárias, têm sido inócuas. Basta ver a outra rotina paralela a ela, a da impunidade. Entre os mais de 800 assassinatos de trabalhadores rurais ocorridos no Pará desde 1970, informa a CPT, apenas 18 (pouco mais de 2% do total) foram a julgamento; oito foram condenados e, destes, apenas um cumpre a pena - um em 800! É como um tratamento de câncer à base de aspirinas, que mal combate os sintomas, mas deixa a causa da doença corroendo o paciente.
O paciente, neste caso, é a sociedade brasileira e a vítima da praga representada pelos crimes do latifúndio é o povo brasileiro, que sofre de um mal que precisa ser combatido pela raiz. E este remédio é o combate ao latifúndio e a regularização das posses dos pequenos e médios trabalhadores rurais que ocupam áreas cobiçadas por grandes proprietários e madeireiros. O Ouvidor agrário nacional, Gercino José da Silva Filho, é mais uma voz que se junta a este coro quando aponta a regularização fundiária como o caminho para combater a violência no campo. O representante do Incra em Marabá, Edson Luiz Bofete, melhora o enfoque ao defender, além dela, a presença mais regular do Estado nas regiões de conflito e a regularização do corte de madeira e dos processos ambientais.
A sociedade brasileira caminha para uma modernidade efetiva, aquela que beneficia o conjunto da população, fortalece a democracia e rompe com práticas autoritárias e com privilégios ancestrais. Mas só poderá avançar de fato nesse rumo quando - indo além das necessárias medidas policiais e judiciais contra os crimes do latifúndio - deixar para trás a arcaica estrutura da propriedade da terra herdada do passado colonial e escravista. O Brasil não pode mais viver com essas excrescências.
José Carlos Ruy é jornalista, editor do jornal A Classe Operária.
BIBLIOGRAFIA
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CARNEIRO, Ana & CIOCCARI, Marta. Retrato da Repressão Política no Campo - Brasil 1962-1985 - Camponeses torturados, mortos e desaparecidos. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2010.
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