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Edição 113 > A luta para que a “mãe de todas as reformas” não seja um ataque à democracia
A luta para que a “mãe de todas as reformas” não seja um ataque à democracia
O PCdoB tem compromisso com a Reforma Política e está empenhado por meio de seus representantes na Câmara e no Senado numa proposta que gere mais democracia, mais liberdade partidária, mais opções de escolha para o eleitorado e mais facilidade de controle dos legisladores eleitos. Uma reforma que avance e sirva à democracia precisa ter a cara do povo brasileiro. Não pode servir apenas às conveniências dos grandes partidos. Por isso, os comunistas se posicionam claramente contra a cláusula de barreira, o voto distrital e o fim das coligações proporcionais

Se alguém perguntar a qualquer um dos 513 deputados e 81 senadores do Congresso Nacional qual deveria ser a prioridade do Legislativo, a resposta seria unânime: aprovar a Reforma Política. Como um mantra na ponta da língua, essa manifestação de desejo vem atravessando legislaturas sem que se avance de forma concreta em relação à questão. Uma mudança aqui, um acréscimo acolá, mas chega eleição e passa eleição e a situação é a mesma.
Na raiz dessa aparente falta de ação do Legislativo em dar prioridade à -mãe de todas as reformas- estão os detalhes. E é aí que o diabo mora, como diz o ditado popular. Todo mundo quer a reforma política, mas o difícil é chegar a um consenso em relação aos pontos principais do texto a ser votado.
Desde o governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), várias foram as tentativas do Congresso de se debruçar sobre o tema. Todas fracassaram. Nem sempre foi apresentado um texto mínimo que unisse todas as diferentes opiniões. Nos governos de Lula, a mesma coisa. Após a crise de 2005, as mudanças foram colocadas como imperativas. O tempo passou, a poeira baixou e o tema voltou a ser prioritário sem causa.
No Congresso, o consenso não é fácil. Há divergência em torno de quase todas as principais questões: coligações partidárias, financiamento público, voto universal, distrital ou distrital misto, fidelidade partidária, cláusula de barreira, quociente eleitoral, fim da reeleição, lista fechada, propaganda eleitoral, cotas, quociente eleitoral, voto facultativo, suplência, eleições gerais a cada cinco anos (de presidente a vereador) etc.
Risco de restrição à democracia
É certo que, muitas vezes, a reforma foi pautada com abordagem central em questões pontuais, normalmente de interesse dos maiores partidos, como a cláusula de barreira e o voto distrital, nos oito anos de governo FHC, por exemplo. A primeira - que chegou a ser exigida em 5% - atingia em cheio as pequenas agremiações, que eram vendidas como as culpadas pela deformação do sistema político brasileiro. Já o voto distrital foi apresenta- do como solução para a representatividade do Legislativo, mas como pano de fundo tinha a força do poder econômico a defendê-lo.
Um dos riscos à aprovação de uma reforma que moralize o processo eleitoral brasileiro, como falamos, é a ação dos grandes partidos para aprovar o que lhes é conveniente. O PCdoB luta para evitar que vingue uma proposta de fatiamento da votação da reforma. Recentemente, o presidente da Câmara, Marco
Maia, declarou que poderia votar o que já é consenso e incluiu o fim das coligações - um tema sobre o qual não existe entendimento ainda. Ou seja, votar apenas os pontos que interessam às maiores agremiações é um perigo que devemos evitar.
Neste momento, infelizmente, os grandes parti- dos querem impor o fim das coligações proporcionais
- o que, na opinião do PCdoB, é um absurdo, principalmente se for aprovado sem o fim do quociente eleitoral. Aliás, o principal obstáculo à constituição de representação de partidos pequenos é o quociente eleitoral, que praticamente entrega aos grandes parti- dos as vagas que sobram após a divisão do número total de votos válidos pelo número de vagas disponíveis.
Apesar de as coligações representarem a possibilidade de unidade entre grupos políticos com afinidades, como é o caso da aliança mantida pelo PCdoB com o PT desde 1989 no plano nacional, o atual instituto do quociente eleitoral muitas vezes força as agremiações pequenas e médias a se coligarem por questão de sobrevivência. Foi a coligação que permitiu a estes partidos espaço na cena política para expor suas ideias, diminuindo o hegemonismo de três ou quatro grandes legendas que dominavam o Congresso (veja tabelas 1 e 2).
Pela regra atual, se não houvesse coligações proporcionais, em 19 estados seria praticamente impossível aos pequenos partidos elegerem deputados, pois a exigência nessas unidades em 2010, por exemplo, foi maior até que a própria cláusula de barreira de 5%, de anos atrás. De um lado, o PCdoB, perderia 1/3 de sua bancada atual, por exemplo. De outro, o PMDB ganharia mais 31 deputados e o PT mais 20. Se isso ocorresse, apenas estes dois teriam 215 deputados - 42,3% da Casa - e seis dos 22 partidos com representação na Casa deixariam de existir (veja tabela 3).
Como vimos nas Tabelas 1 e 2, de 2002 a 2010 os partidos médios e grandes cresceram, avançando sobre os espaços privativos das grandes legendas. O que se pretende com a eliminação da coligação proporcional, constrangendo a liberdade da ação partidária, é tentar congelar a situação atual dos maiores partidos, impedindo os demais partidos de cresce- rem e permitindo àqueles a reconquista das vagas perdidas nos últimos anos.
Ampliação dos debates
São debates assim, enviesados, que ter- minam impedindo o avanço das reformas, se bem que agora, aparentemente, há certo interesse em promovê-la.
O PT, principal partido do país, que venceu as três últimas eleições presidenciais e elegeu o maior número de deputados federais e estaduais, assumiu um compromisso em fazer a reforma andar. O partido, junto com PCdoB, PSB e PDT, fechou consenso em torno de alguns pontos e estes marcharão unidos para aprová-los. O próprio ex-presidente Lula andou promovendo debates e ocupou as redes sociais para conclamar o envolvimento da sociedade e do movimento sindical nos debates. Isso dá um impulso.
A Comissão Especial formada para discutir o tema tem tentado unificar as várias propostas existentes e tem buscado levar à sociedade esse debate, através de audiências públicas nos estados. Até o dia 3 de junho, a comissão já havia realizado conferências em Goiânia (GO), Porto Alegre (RS), Aracaju (SE), João Pessoa (PB), Florianópolis (SC), Belo Horizonte (MG), Palmas (TO), Salvador (BA) e Vitória (ES).
A reforma tem andado a quatro pernas no Congresso, com uma comissão funcionando no Senado e outra na Câmara. Isso já é um problema, porque divide o debate e depois tem-se que encontrar um meio termo entre as duas propostas. Uma única comissão poderia agilizar os trabalhos e vencer etapas. No Senado, a Comissão já manifestou opinião sobre alguns temas que serão transformados em Projeto de Lei a ser apreciado pelos senadores em plenário (veja Quadro 1). Na Câmara, o relator da proposta na Comissão Especial, deputado Henrique Fontana, tem até o dia 21 de junho para apresentar seu relatório para votação pelos membros do colegiado, antes de ir a plenário. Mesmo assim, uma parte dos deputados acha não ser possível aprovar algumas mudanças sem antes ouvir a população em plebiscito, em especial em temas como financiamento público e sistema eleitoral.
No Congresso, temas até então fora do foco da reforma vêm ganhando projeção, como o debate sobre a unificadas eleições, com o fim da reeleição - o que mostra que o debate ganha corpo. Nos últimos dias ganhou destaque a proposição de unificar as eleições, de presidente a vereador, como forma de reduzir os gastos eleitorais e evitar a paralisia que se observa na máquina pública por quase um semestre a cada dois anos, por conta do processo eleitoral. Outro tema de interesse do movimento social é a maior facilidade de apresentação de proposições de iniciativa popular, que o relator na Comissão da Câmara, Henrique Fontana (PT-RS), prometeu incluir em seu texto final. Hoje, a apresentação de uma proposta exige 1 milhão de assinaturas de eleitores.
PROPOSTA APROVADA NA COMISSÃO DO SENADO
PROPOSTAS DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO
Suplência de senador: reduz de dois para um o número de suplentes de senador e veda a eleição de suplente que seja cônjuge, parente consanguíneo ou afim, até o segundo grau ou por adoção do titular.
Data de posse e duração de mandato: estabelece mandato de cinco anos para presidente da República, governador e prefeito. O primeiro tomará posse em 15 de janeiro e os dois outros cargos em 10 de janeiro
Fim da reeleição: torna inelegível presidente da República, governador e prefeito para os mesmos cargos, no período subsequente.
Coligações: permite coligações eleitorais apenas nas eleições majoritárias (presidente da República, governador e prefeitos).
Candidatura avulsa: acaba com a exigência de filiação partidária para candidatos em eleições municipais.
Sistema eleitoral: institui o sistema eleitoral proporcional de listas preordenadas nas eleições para a Câmara dos Deputados, respeitada a alternância de um nome de cada sexo.
Referendo: estabelece que lei ou emenda constitucional que altere o sistema eleitoral seja aprovada em referendo para entrar em vigor.
PROJETOS DE LEI DO SENADO
Domicílio eleitoral: veda a transferência de domicílio eleitoral de prefeitos e vice-prefeitos durante o exercício do mandato.
Fidelidade partidária: prevê a perda de mandato por desfiliação partidária em casos nos quais não se configure incorporação ou fusão de legenda, criação de novo partido, desvio de programa partidário e grave discriminação pessoal.
Cláusula de desempenho: inclui entre os critérios em vigor para funcionamento partidário na Câmara eleger e manter filiados no mínimo três deputados, de diferentes estados.
Financiamento público de campanha: destina recursos ao Tribunal Superior Eleitoral em valor correspondente a R$ 7,00 por eleitor inscrito, a serem aplicados exclusivamente por partidos políticos e respectivos candidatos nas campanhas eleitorais.
Enfim o tema abre espaço para múltiplas propostas e envolve diversos interesses. Como se trata de reforma na forma de escolha da representação política, que envolve hábitos e costumes - muitos enraizados há décadas -, cabe ao legislador ouvir a sociedade e o papel de encontrar o maior consenso possível, evitando o estatuto da imposição da maioria no Congresso, o que gera sempre distorções e injustiças.
Claro, é muito difícil, numa instituição com quase 600 cabeças, encontrar um consenso total, ainda mais considerando que cada parlamentar será irremediavelmente atingido pela mudança que se implantar, sendo inevitável que o interesse individual não interfira em sua decisão. Mas acredito que devemos perseguir a conclusão da reforma em sua essencialidade, que é o fortalecimento da democracia brasileira. E neste momento temos a grande chance de fazer isso.
Mas o aproveitamento dessa chance não pode dar lugar à pressa para aprovar regras de qualquer jeito - que já valham para a próxima eleição, por exemplo, mas não representem avanços no sistema político e eleitoral brasileiro e funcionem apenas como uma satisfação à opinião pública ou atendam tão somente à gana por espaço das grandes legendas.
Propostas defendidas pelo PCdoB
O PCdoB tem compromisso com a Reforma Política e está empenhado por meio de seus representantes na Câmara e no Senado numa proposta que gere mais democracia, mais liberdade partidária, mais opções de escolha para o eleitorado e mais facilidade de controle dos legisladores eleitos.
Para os comunistas, a reforma só vale a pena se as portas da política forem abertas para todos os se- tores da sociedade, garantindo a representação das minorias e a igualdade de oportunidades para todos os partidos, oferecendo mais opções ao livre voto dos eleitores. Deve também fortalecer as agremiações partidárias como atores fundamentais da democracia e da disputa política, garantindo-lhes a maior liberdade de ação para representar e compor maiorias.
Em linhas gerais, o PCdoB defende alguns pontos que considera como fundamentais serem garantidos (veja Quadro 2). O financiamento público exclusivo de campanha é um deles, pondo fim ao processo corruptivo na relação entre o político e seus financiadores acompanhado do voto proporcional em lista pré-ordenada, que é o que melhor se adéqua ao financiamento público e exclusivo. Estes pontos combinam perfeitamente com outro avanço importante, que é a fidelidade partidária - entendimento já pacífico de que o mandato pertence ao partido e não ao candidato individualmente e por isso as restrições para mudança de legenda.
Enfim defendemos uma reforma política que amplie a democracia, acabe com a judicialização das eleições, hoje regidas por normas dos tribunais e não por regras prévias e legítimas definidas pelo Legislativo, e garanta ao eleitor o direito de escolher sem as amarras econômicas e midiáticas que muitas vezes deformam a representação.
Pressão popular
O que vier a ser aprovado em hipótese alguma pode representar um retrocesso político, com a instituição de regras que venham a limitar a livre manifestação, organização e funcionamento partidário, bem como interferir na vontade do cidadão. O PCdoB se posicionou claramente contra a cláusula de barreira, o voto distrital e o fim das coligações proporcionais - instrumentos que os grandes partidos querem aprovar para diminuir o número de legendas no Congresso e impor sua hegemonia.
É fundamental, nesta fase em que as propostas começam a ser afuniladas, a mobilização da sociedade para acompanhar os debates e pressionar os parlamentares. Os setores organizados e o movimento social devem estar atentos e participar ativamente deste processo. O que sair dessa reforma pode representar um avanço ou um recuo nas conquistas democráticas de nosso povo nos últimos 35 anos.
* Daniel Almeida é deputado federal pelo PCdoB-BA e membro titular da Comissão Especial da Reforma Política na Câmara dos Deputados