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Resenha

Edição 108 > Aguardente e cristianismo

Aguardente e cristianismo

Hans-Martin Lohman
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LOSURDO, Domenico.

Nietzsche, o rebelde aristocrata: biografia intelectual e balanço crítico.

Tradução de Jaime A. Claven.

Rio de Janeiro: Revan, 2009. 1.108 páginas. 

Para o poeta Gottfried Benn, Nietzsche foi “o maior fenômeno carismático da história do pensamento”. Mas o “fenômeno” Nietzsche não esgota-se na enorme força que vem de sua obra, mas revela-se, sobretudo, nas mais diferentes e controversas reações que desencadeou. A obra de Friedrich Nietzsche, filho de um pastor protestante de Röcken (2), permanece até hoje na história do pensamento como um obstáculo diante do qual muitos fracassaram.

Antecipando: o estudo de mais de mil páginas do filósofo italiano Domenico Losurdo, publicado em 2002 na Itália e recém-lançado no país de Nietzsche, é um acontecimento intelectual especial e permanecerá por longo tempo como a principal indicação nesse terreno. Losurdo oferece nada mais, nada menos que uma obra de referência e de consulta que faz com que pareça ultrapassado, por exemplo, o Nietzsche-Handbuch (3) de Henning Ottmann.

Aquele leitor que apenas dispõe de uma certa ideia da literatura hoje corrente dedicada a Nietzsche tampouco deixará de certificar-se de que a sua filosofia é usada como uma fonte da qual cada um pudesse extrair o quer lhe pareça mais adequado – arbitrariedade e casualidade são palavras fracas para caracterizar a contrariedade gerada pelo uso e abuso de uma obra diante da  qual Michel Foucault não foi o último a ser envolvido. Nietzsche como psicólogo, Nietzsche como esteta e artista, como antissemita e antiantissemita, como “Godfather of Fascism” e “Nazi avant la lettre”(4), como crítico da moral, como poeta e como “Prinz Vogelfrei” (5) – tudo isso e muito mais já foi dito.

Losurdo decompõe prazerosamente essas interpretações em seus diferentes elementos ideológicos, ao ler Nietzsche – como ninguém o fez até agora – com uma desconcertante acuidade e precisão, situando-o em seu contexto histórico. O maior mérito de Losurdo reside na minuciosa e compreensível, a cada instante, contextualização histórica da obra de Nietzsche, pois assim ele possibilita o entendimento das conexões e das continuidades no seu pensamento que do contrário ficariam incompreensíveis.

Enquanto a interpretação dominante pós-moderna de Nietzsche, que reivindicou-lhe o papel de preparador do pós-modernismo filosófico (Jean-François Lyotard, Gianni Vattimo e tutti quanti), raciocinando sobre uma “hermenêutica da inocência”, Losurdo se atem aos termos de Nietzsche, mostrando que o seu discurso sobre a necessidade da escravidão e da luta contra a rebelião dos negros – caracterizados por Nietzsche enquanto “manada” ou “peble” – não pode ser tomado de forma limitada ou intermediária como uma metáfora inofensiva, mas seriamente como algo sangrento.

Losurdo lembra que o jovem Nietzsche foi não apenas contemporâneo do abolicionismo nos Estados Unidos da América, como também da Comuna de Paris, a qual considerava como nada mais do que a “horrível destruição da cultura”. Naquela época, em abril de 1871, Gustave Flaubert escrevia para George Sand: “Graças a Deus que os prussianos estão ali!; esse é o grito comum do burguês.

Para mim os senhores trabalhadores pertencem à mesma laia, e podia-se jogá-los todos no rio!”. Essa era exatamente a palavra de Nietzsche: remeter os “senhores trabalhadores” ao levante dos escravos. Losurdo oferece a esclarecedora indicação de que o escrito de Nietzsche de início da década de 70 do século XIX, O nascimento da tragédia no espírito da música, podia também levar o título A crise da cultura de Sócrates até a Comuna de Paris.

Independentemente do fato de também Losurdo aceitar o indiscutível fato de que há no pensamento de Nietzsche diferentes fases, caracterizadas inteiramente por diversos pontos principais e acentos, o autor pode rigorosamente – ou seja, com o texto na mão – mostrar que esse pensamento é, desde o seu início até o seu fim, profundamente político e permeado por um mote central – qual seja : toda a história pode ser entendida como uma história de “lutas entre estamentos e classes”, na qual os senhores (portadores de cultura) devem afirmar-se contra os servos (sem cultura). Segundo Marx, toda a história é a história das lutas de classes resultando, assim, pelo menos enquanto diagnóstico, de um interessante ponto de encontro.

Para o filósofo político Losurdo – cujas leituras preferidas são historiadores conservadores como Tocqueville, Taine, Burke e Jacob Burckhardt –, Nietzsche revela-se como o mais brilhante intelectual de um movimento elitista de toda a Europa, que une-se na luta contra a Revolução, o liberalismo, o socialismo, a democracia, os direitos humanos, o individualismo e o capitalismo. E Losurdo na medida em que considera tanto o contexto histórico-social, como também a circunstância em que o aristocratismo radical de Nietzsche relaciona-se com uma crítica reacionária internacional da modernidade – ou seja, deixando de possuir algo de singular –, liquida com um golpe a tese do “caminho particular alemão” (6).

De forma igualmente soberana, o autor refuta a construção de uma ligação direta entre Nietzsche e Hitler (uma “distorção histórica”), e evidencia a sua inconsistência dedutiva. Ao mesmo tempo, ele defende o filósofo Georg Lukács contra a tentativa de transformá-lo em bode-expiatório de uma equívoca interpretação de Nietzsche. Losurdo demonstra que autores não marxistas – e anti – como Georges Lichtheim e Ernst Nolte estabeleceram uma ligação bem mais direta entre Nietzsche e o nazismo, com a sua política genocida, do que autores marxistas como Lukács e Hobsbawm.

Sem dúvida, entre as melhores passagens do livro está a leitura paralela feita por Losurdo de Nietzsche e de Marx. Ambos mostram-se como críticos ideológicos rigorosos, e ambos oferecem observações impressionantemente semelhantes, como quando ambos não consideram o moderno trabalhador assalariado como um “homem livre”, como pretende a ideologia burguesa, e sim como um escravo. Mas o que distingue Marx de Nietzsche é o último não analisar as “flores imaginárias da cadeia” para que o escravo dela se libertasse, mas sim para que ele “continuasse levando a cadeia sem fantasia e sem consolo”, como indica o jovem Marx em uma conhecida formulação.

Finalmente, quando o autor vislumbra em Nietzsche um “excesso teórico”, que contém o potencial de uma crítica da violência e da força – em profundo contraste com a própria filosofia nietzschiana reacionária e que honra a violência –, a arte hermenêutica de Losurdo, sem dúvida, atinge seu ponto alto. Ela pode então mostrar que a apologia da escravidão feita por Nietzsche – “Nós não somos humanitários” – é acompanhada, sem compromisso, da desmistificação das práticas coloniais de sua época que, sob as bandeiras do universalismo, do cristianismo e dos direitos humanos, significavam bem mais exploração, escravidão e genocídio: “O que os populachos assimilam em primeiro lugar dos europeus? Aguardente e cristianismo, os narcóticos europeus”. Essa crítica antecipa aquela de hoje referente ao imperialismo ocidental dos direitos humanos, como no Iraque e no Afeganistão.

Em relação ao tema Nietzsche vale: ex Italia lux (7). Depois que Giorgio Colli e Mazzino Montinari nos presentearam com a primeira edição completa, filologicamente confiável, da obra de Nietzsche, Domenico Losurdo nos convence com uma interpretação coerente e brilhante de seu trabalho, com a qual toda pesquisa dedicada a ele, tanto hoje como no futuro, deverá ser medida.

Hans-Martin Lohman é jornalista. Resenha publicada no hebdomanário alemäo Die Zeit em 01-07-2010. 
 

Traduçäo de Luciano C. Martorano.

 

Notas

1- Cidade no estado de Saxônia-Anhalt, oeste da  Alemanha onde nasceu Nietzsche (Nota do tradutor).
2 - Compêndio Nietzsche (Nota do tradutor).
3 - Respectivamente: patrono do fascismo e precursor do nazismo (Nota do tradutor).
4 - Aproximadamente: príncipe fora da lei (Nota do tradutor ).
5 - Deutscher Sonderweg: Na historiagrafia alemã existe um debate envolvendo uma eventual desigualdade das particularidades desse país em comparação, por exemplo, com a França e a Grã-Bretanha – sobretudo no que diz respeito à formação do Estado e de estruturas democráticas (Nota do tradutor).
6 - Em latim: da Itália vem a luz (Nota do tradutor).
 

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