Teoria
Edição 147 > Antonio Gramsci - Entre o pós- modernismo e o relatório Kruschev
Antonio Gramsci - Entre o pós- modernismo e o relatório Kruschev

Nota do Tradutor - Marcos Aurélio da Silva
O artigo que agora propomos ao leitor, da lavra do filósofo italiano Emiliano Alessandroni – tradutor, autor de livros sobre Gramsci e Lukács, literatura e estética, bem como muitos ensaios filosóficos –, além de guardar grande interesse para o campo dos estudos gramscianos, toca em um ponto central do debate que hoje cerca as ciências sociais em qualquer parte do mundo. Estamos nos referindo ao crescente revisionismo que se abate sobre os diferentes ambientes intelectuais, um processo que seguramente tem raízes muito antigas, remetendo aos autores que resistiram com todas as forças à Revolução Francesa (E. Burke, B. Constant), mas que se alimenta constantemente, em diferentes ondas, como nos permite concluir a oposição ferrenha dos pais do neoliberalismo (Misses, Hayek) à Revolução de Outubro.1
O texto de Alessadroni trata dos efeitos deste processo sobre a intelectualidade de esquerda italiana partindo de um recente debate, motivado pela publicação de uma obra do linguista Franco Lo Piparo envolvendo a figura de Antonio Gramsci e a tradição comunista italiana. Na verdade, o artigo integra uma coletânea de ensaios2 escritos por intelectuais gramscianos que buscam responder à tese de Lo Piparo acerca do hipotético desaparecimento de um 34° Carderno entre os 33 escritos por Gramsci no cárcere, suposta obra de maquinações de Togliatti, do amigo Pietro Sraffa e até mesmo da família soviética de Gramsci, entre elas a cunhada Tatiana, que morava na Itália e cuidava dos contatos do prisioneiro com o Partido (Togliatti, então em Moscou), os amigos (o economista Pietro Sraffa, comunista não inscrito que auxiliava os contatos com Togliatti) e toda a família (na Sardenha e na Rússia). No incerto caderno, a renúncia de Gramsci ao socialismo encarnado pela União Soviética e ao movimento comunista internacional, bem como sua conversão à democracia liberal, tudo embalado pela polêmica que envolveu a troca de cartas entre Gramsci e Togliatti, em outubro de 1926 (carta afinal não enviada por Togliatti à executiva do Comintern), acerca da forma como a maioria do Partido bolchevique derrotou Leon Trotsky.
Provas faltantes, o conjunto dos autores busca responder a Lo Piparo a partir de 12 perguntas formuladas pelo organizador da obra, o historiador Angelo D’Orsi. Alessandroni se atém às perguntas de número 1, 2, 5 e 7, que passamos agora a resumir: Primeira: que lendas pairam sobre Gramsci as quais mesmo privadas de elementos de verdade continuam a renovar-se no debate político? Prevalece nesse debate, animado por jornalistas e comunicadores sem requisitos científicos, um desenho de tipo político-cultural? Segunda: o contraste Gramsci-Togliatti de outubro de 1926 é apenas interno ao PCI ou se coloca em um plano internacional? Que peso ele teve na história futura do comunismo? E como condicionou a história do PCI e a difusão da obra gramsciana? Existe uma oposição radical entre os dois ou se trata de algo mais complexo? Quinta: existem elementos de caráter material, filológico ou documental, que permitem falar de um 34° Caderno desaparecido? E se existiu, é possível haver ali uma renúncia de Gramsci ao marxismo e ao comunismo? Sétima: Existem elementos de caráter teórico, relativos ao pensamento de Gramsci, e de caráter histórico, ou seja, referentes aos fatos afirmados, que deixam antever sua conversão política, ou sua evolução em direção à democracia liberal?
Talvez se pudesse dizer, como se depreende da leitura da extensa apresentação feita por D’Orsi, que a tese de Alessandroni apenas troca os sinais daquela que, na esquerda italiana, acostumou-se a atacar Togliatti como fosse ele um simples agente a serviço de Stalin.3 Ou que tivesse ignorado as razões pedagógicas de Gramsci, que dificilmente o teriam demovido da crítica ao método utilizado pela maioria, mesmo se tivesse ele em Moscou.4 Ou ainda que ela tivesse esquecido as divergências que então se iniciavam entre os dois camaradas quanto à leitura - conjuntural, mas não de concepção estratégica - do quadro internacional, segundo assinalaram contribuições como a de Aldo Agosti e Marco Abeltaro: Togliatti seguindo a linha do Comintern, segundo a qual se estava diante de uma derrota epocal da classe operária, o que significava um adiamento da revolução mundial e a imperiosa necessidade de defender a “construção do socialismo em um só país”; Gramsci insistindo que, a despeito da retomada do controle do capitalismo sobre as forças produtivas e o mercado mundial, a atualidade da revolução não desaparecera, mas teria se transformado, deslocando o seu centro para os territórios nacionais e confiando a sua continuação aos partidos comunistas bolchevizados. 5
O fato é que, faltantes as provas, como acima dissemos, Alessandroni permanece fiel ao método da pesquisa historiográfica delineada desde Marc Bloch: como nos lembra D’Orsi, sim, a história se faz a partir de documentos, mas antes dos documentos estão as perguntas. E Alessandroni, que “apenas” lê as cartas trocadas entre Gramsci e Togliatti, insiste que ali transparece um posicionamento de Gramsci ao lado da maioria, o que significaria dizer, como notou Fabio Frosini ao apreciar a obra de Peter Thomas, que a despeito das inovações teóricas e de método forjadas por Gramsci, isso não pode simplesmente ser transposto a uma crítica da URSS staliniana.6 Mas além dos documentos, e eis o que é central na formulação de Bloch, Alessandroni acresce perguntas quanto ao quadro histórico da recepção das ideias de Gramsci. E é por este caminho que nos porta a uma leitura crítica do contexto histórico que segue do relatório Kruschev à emergência da cultura pós-moderna.7 Ao fim e ao cabo, como que fazendo entrar em relação ciência histórica e questão política, e talvez para não aceitar tão facilmente esta nova época da pesquisa científica, voltada “simplesmente” a “acertar a verdade, sem se preocupar com os usos públicos e políticos” que dela “possam sair”,8 trata-se de uma linha de investigação que toma por objeto revelar o “difuso clima revisionista” que cerca a obra de Gramsci, e que nos últimos anos cada vez mais tem se definido “por suas marcas desavergonhadas, peremptórias” e até “selvagens”, como prontamente o disse na mesma coletânea Pasquale Voza.9
Por fim, cabe dizer algo sobre o método de citação dos Cadernos empregados pelo autor. Como costuma acontecer entre pesquisadores de Gramsci, a numeração que segue a letra Q refere-se ao número dos Cadernos, seguida por sua vez do parágrafo e da página. As letras A, B e C indicam respectivamente textos de primeira redação, textos de única redação e textos de segunda redação.
ANTONIO GRAMSCI
ENTRE O PÓS-MODERNISMO E O RELATÓRIO KRUSCHEV
Emiliano Alessandroni*
Em uma das notas que Gramsci dedica na prisão a Nicolau Maquiavel, lemos o que segue:
Dupla interpretação de Maquiavel: da parte dos homens de Estado tirânicos que querem conservar e aumentar o seu domínio e da parte das tendências liberais que querem modificar as formas de governo... Croce escreve que isto demonstra a validade objetiva das posições de Maquiavel e isso é justíssimo.10
O fato de que das teorias de Maquiavel se servissem forças políticas contrapostas constitui, na percepção de Gramsci, um sinal de objetividade das mesmas. Prosseguindo a leitura, é possível ver que nos Cadernos se evoca novamente o “fato constatado por Croce (e em si justíssimo) de que o maquiavelismo, sendo uma ciência, servia tanto aos reacionários quanto aos democráticos”11. Um fenômeno que Gramsci constata também a propósito do “fundador da filosofia da práxis”: a “posição de Maquiavel se repete para Marx: mesmo a doutrina de Marx, para além da classe a qual Marx explicitamente se voltava (nisso diferente e superior a Maquiavel), serviu às classes conservadoras, cujo pessoal dirigente em boa parte fez o seu treinamento político no marxismo”12. A mesmíssima dialética pode ser constatada hoje para Gramsci: quase todas as principais correntes culturais tentaram, para além de todas as evidências, reivindicar a si próprias o autor dos Cadernos do Cárcere. E tudo isso está a testemunhar a solidez objetiva contida in nuce nas reflexões do intelectual sardo. Todavia, isto comporta também o risco da progressiva substituição do Gramsci autêntico por um Gramsci pós-moderno, flexível, adaptado a todos os usos e costumes.
A influência do pós-modernismo
Um primeiro dado que ocorre ter em conta é que a recepção dos escritos gramscianos se deu pari passu com a afirmação de um mundo cultural que, no dizer de seus defensores, estabeleceu “uma daquelas fortes rupturas temporais além das quais nada mais restou igual ao que era antes”. Tratar-se-ia de uma “mudança de época” comparável àquela verificada “entre o fim do século XVIII e o início do XIX, coincidindo com a primeira revolução industrial, as revoluções políticas e as reviravoltas e desordens nas mais diversas áreas da vida material, da sensibilidade, dos modelos culturais, dos sistemas retóricos e temáticos que habitavam o imaginário na passagem dos dois séculos”.13 Claramente se trata de um extremismo que vai bem além da realidade dos fatos: alguém já fez notar ao autor dessas passagens como as mudanças verificadas a partir dos anos cinquenta do século passado não tenham “levado ao poder uma nova classe” social, nem “assinalado a afirmação de novas relações de produção” ou “feito nascer novas formas de organização política”. Não houve qualquer revolução social comparável à revolução francesa, nem a destruição de todo um sistema produtivo como ocorreu na passagem do feudalismo à modernidade. Se bem observamos “a revolução informática assinala uma virada como a da revolução elétrica” e, como aquela, se situa sempre “no interior de uma história iniciada no final do século XVIII”.14
Não obstante uma virada, ou pelo menos uma novidade, tratou-se em última análise de um processo não apenas cultural. O ecletismo, a dissolução dos nexos lógicos tradicionais, o pastiche, o relativismo, a rebeldia e a dessacralização como fins em si mesmos, a violação de todos os princípios de autoridade, a destruição da dialética, da razão, o conformismo do anticonformismo, o trinfo do irracional, do humor como valor em si, constituem os ingredientes daquela condição pós-moderna descrita e orgulhosamente reivindicada por François Lyotard no final dos anos setenta e que irá marcar de maneira crescente o horizonte cultural da segunda metade do século XX. Assistimos, segundo o contexto nacional, o nascer de diferentes fenômenos. Na literatura o realismo mágico, o teatro do absurdo, a neovanguarda, a beat generation; na pintura Jackson Pollock e a body art; na filosofia o difundir-se de um autor como Nietzsche e do espírito dionisíaco, especialmente graças à afirmação dos novos filósofos como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Felix Guattari e, naturalmente, o próprio Lyotard. Tudo isso determinando a consolidação de um horizonte cultural inteiramente construído sobre aquilo que Franco Fortini havia definido como “a negação a baixo preço”, a qual terminava por corroborar o estado de coisas que, nas intenções subjetivas, pretendiam opor-se.15
Com o início dos anos setenta e a passagem do fordismo ao pós-fordismo, este fenômeno de denúncia adaptativa (a toda prova inerente à compatibilidade sistêmica), aumenta vertiginosamente. São os anos em que o movimento de 68 inicia uma indolente degeneração, deixando sempre maior espaço, no seu interior, aos componentes mais nietzscheanos e messiânicos, aqueles mais focados, para usar ainda as palavras de Fortini, na “reivindicação anarco-existencial do instante e do imediato”.16 O fenômeno concorrerá para plasmar certa ideia indiferenciada de poder, a qual, por sua vez, terá pesadas repercussões sobre o conceito de intelectual, condicionando inexoravelmente as relações entre as duas esferas.17
É no interior deste quadro que se coloca a recepção do pensador sardo. O horizonte no interior do qual tal recepção ocorreu foi sempre aquele condicionado a ver, no intelectual italiano, o rebelde e o contestador do poder, não o partigiano,18 como frequentemente sugeria o próprio Gramsci. O desobediente solitário e romântico que se lança contra todos os governos e todos os partidos, não o observador das forças em luta e o partidário dos impulsos motrizes sob as quais, naquele dado momento histórico, as circunstâncias objetivas fazem passar os processos de emancipação. Para contestar essa leitura ideológica de Gramsci seria suficiente recordar a centralidade que ocupa no seu pensamento a categoria de “contradição real”, a qual, antes de qualquer outra, constitui o eixo orientador de suas teorias, e para além da qual restaria apenas o reino da indiferença ou da utopia.19
Examinaremos na próxima seção como todo esse horizonte cultural do qual até aqui tratamos, terminou por encontrar um terreno fértil em um acontecimento de alcance histórico e de dimensão planetária que, muito rigorosamente, deve ser levado em conta se se deseja estudar o pensamento de Gramsci e entrar no amplo laboratório dos Cadernos do Cárcere.
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O divisor de águas do relatório Kruschev
Em 21 de janeiro de 2001, o então líder do Partido da Refundação Comunista, Fausto Bertinotti, pronuncia na cidade de Livorno um discurso para celebrar o aniversário de 80 anos da fundação do PCI. Nesse discurso ele condena “a tragédia do stalinismo”: uma tragédia que atingiu o conjunto do “movimento comunista internacional”, com as suas errôneas convicções acerca da “via nacional ao socialismo”, para depois insinuar-se capilarmente no interior de “todo o movimento operário, em que prevalece uma concepção ética segundo a qual ser fiel ao partido prevalecia sobre qualquer outra”. Trata-se de uma verdadeira “tragédia e não de simples erros”, cuja ausência de condenação se deve atribuir ao fato de que sempre, “diante das tentativas de transformação”, prevaleceu “a lógica do poder”. Mas existe uma figura que, sob as barbas de toda a sequela de erros e tragédias, a esta lógica soube heroicamente escapar. Trata-se de Antonio Gramsci:
Ele estava nos cárceres do fascismo, era um homem estimado mesmo se controverso. No cárcere... maturou a ideia de que os seus próprios companheiros preferiam deixá-lo ali mais que libertá-lo. Por que Gramsci permanece comunista? O faz porque ele pensa que além da tragédia de uma pessoa e de todo um período vale mais a razão da liberdade que é a essência do comunismo.20
Vemos aqui configurar-se a imagem do intelectual-herói que combate contra o poder opressivo em todas as suas formas e manifestações. O retrato de Gramsci não é aquele de um homem que compreendeu como poucos o próprio tempo e que se posicionou ao lado das forças progressistas e emancipatórias e contra aquelas conservadoras e antidemocráticas, lutando ao lado das primeiras antes de tudo politicamente e, uma vez preso, com os únicos meios que lhe restavam, os meios culturais e intelectuais. Mas de uma figura metafísica (ou se se quiser apenas meta-histórica), que evita as contradições reais do próprio tempo, vendo nele “a tragédia de todo um período” a qual contrapõe a libertação hipotética, a razão da libertação, que pertencerá talvez a outro tempo e a outras forças. De Gramsci, Bertinotti não celebra a inteligência ligada ao espírito partigiano, mas a inteligência ligada ao hermetismo: as forças de referência que guarda Gramsci não seriam, portanto, sujeitos reais, mas categorias, sujeitos abstratos, uma vez que sujeitos reais são sempre expressão de poder, cujos intelectuais deveriam opor-se sem hesitação. Esta nova consciência, acrescenta Bertinotti, começou a liberar-se das garras ferozes do stalinismo apenas “depois de 1956”21, já definido algures como “o ano do divisor de águas”22. Trata-se, claramente, do ano do Relatório Kruschev, aquele verdadeiro “terremoto”23 que “teve um efeito enorme... sobre o movimento comunista internacional”.24
Não é aqui o caso de sentenciar se aquele relatório fosse objetivo ou constituísse uma manobra político-propagandística: importante é ter bem em mente o impacto que ele teve sobre a alma da esquerda de todo o mundo. Ainda antes do relatório secreto, importantes personalidades da cultura e da política mundial haviam expressado profunda estima pela figura de Stalin, celebrado como um grande estadista. Nos limitemos aqui a ter em mente discursos cheios de elogios oriundos das mais variadas autoridades morais, políticas e culturais da cena internacional: de Mahatma Ghandhi a Hannah Arendt, de Alcide de Gasperi a Sandro Pertini, de Norberto Bobbio a Thomas Mann, todos haviam contemplado Stalin com admiração e simpatia.25 Até um político como Pietro Nenni, que sempre expressou profundas reservas diante de Stalin, em 1953 pronunciou um discurso na Câmara dos Deputados no qual afirmou ter tido a ocasião, no último período, de “corrigir o erro segundo o qual Stalin fosse um ditador sustentado por um sistema de força, quando a sua verdadeira força esteve até o final no consenso de milhões e milhões de homens”26.
Depois do XX Congresso o quadro muda radicalmente. Praticamente ninguém terá mais a coragem de pronunciar um discurso como aquele, embora crítico, de Nenni. A nova imagem de Stalin, que começa rapidamente a divulgar-se, resulta bem longe daquela de um homem amado pelo seu povo, mas reflete já aquela de um homem doente e paranóico, que só com a brutalidade policialesca submeteu, por pouco menos de trinta anos, os corpos e as mentes de seus cidadãos, transformando a Rússia em uma espécie de grande campo de concentração, na qual não se podia senão escolher entre venerar o soberano ou ser barbaramente justiçado.
Não é importante julgar agora a verossimilhança desse quadro. Interessa apenas ter em conta, no momento, que isso emerge apenas muitos anos depois da morte de Gramsci e que, portanto, não poderia condicionar os seus escritos, mas condicionou certamente a nós e à nossa leitura deles. Aproximar-se das Cartas e dos Cadernos, daquelas páginas assim prenhes de sensibilidade e profundidade humana, de penetração analítica e rigor lógico, de conhecimento, cultura e espírito combativo, aproximar-se daqueles textos com o eco do Relatório Kruschev nas nossas orelhas, deveria por força das circunstâncias nos advertir acerca da incompatibilidade de fundo entre estes textos e o quadro que o Relatório havia imprimido, de forma mediata ou imediata, em nossas mentes. Aquele quadro parecia de fato exprimir o contrário disso que emergia das páginas carcerárias, as quais, portanto, pela tenacidade e pela moralidade que desencadeavam, não poderiam senão ser pensadas em contraposição a ele. A “razão de Gramsci” não teria nunca podido sobreviver sem antes ter removido cada conveniência sua com a “razão de Stalin”: também ela, como as demais, tinha necessidade de uma desestalinização hermenêutica. Quando, após a morte de Togliatti, o universo imagético e sentimental saído do Relatório Kruschev começa a fundir-se e a amalgamar-se com aquele do pós-modernismo, estabelecer a verdade histórica torna-se já um objetivo praticamente impossível. Cada sutil discussão que, as condições permitindo, Gramsci podia ter tido no curso da sua existência, cada frase ou expressão ambígua (e dada a autocensura preventiva a qual estava forçado na prisão podemos imaginar o quanto estas eram frequentes), cada categoria não diretamente referencial, servia a construir a imagem do intelectual herético contra o poder e a doxa encarnada por Stalin.
Essa construção exegética de paladino solitário contra a tragédia do mundo tornou-se particularmente fecunda naqueles estudiosos de Gramsci que perderam o mapeamento da luta entre forças conservadoras e emancipatórias que distingue o presente histórico e, portanto, se sentem, mais ou menos conscientemente, como catapultados naquela mesmíssima condição que, por via de força hermenêutica, gostariam de atribuir ao intelectual sardo.
Na realidade, porém, as coisas (e isto não tem nada que ver com o juízo que nós hoje podemos formular a respeito de Stalin) põem-se diversamente: Gramsci sempre considerou Trotsky um homem de grande valor, com qualidades excepcionais, dedicado com toda força à causa da emancipação operária, mas também uma pessoa inclinada a cair em erros táticos muito graves e extremamente perigosos para a sobrevivência do movimento comunista internacional. Todas as divergências em que ele se enredou no curso de sua militância política, constituíram, para Gramsci, uma confirmação desta sua inclinação. Em um artigo publicado no “Stato Operaio” de maio de 1925 e depois reimpresso em “L’Unità” (em 4 de junho), o intelectual sardo acolhe alegremente a breve recomposição entre o ex-comandante do Exército Vermelho e a maioria do Partido: “o ponto de vista de Trotsky foi derrotado; fiel à causa do proletariado, disciplinado perante o partido, Trotsky aceitou as decisões e retomou o seu trabalho”. Todavia, não se exime de pôr-se em alerta acerca da sua pessoa:
É possível que a longa militância entre os mencheviques não tenha deixado nele traços profundos, incanceláveis? Ele conseguiu... eliminar também os últimos resíduos de uma ideologia lentamente maturada através de decênios de trabalho político? As recentes polêmicas do PCR demonstram que isto não aconteceu. Quando a nova política econômica [a NEP] da Rússia soviética criou uma situação profundamente diversa daquela inicial da revolução, a velha ideologia menchevique impediu Trotski de aplicar a ela os critérios do leninismo. Trotsky caiu em um erro tão grave que se não fosse combatido a tempo e tivesse deitado raízes teria tido consequências incalculáveis ameaçando a solidez dos fundamentos do Estado proletário: o bloco entre operários e camponeses.27
Na celebre contenda epistolar de 1926 com Togliatti, a posição de Gramsci permanece a mesmíssima: Trotsky é um homem de grande valor e operosidade, cuja perda, além de constituir um fato deplorável para a Rússia soviética, traria o risco de uma fratura insanável no interior do movimento comunista internacional, como aquele que se abriu no PCI com a corrente de Bordiga. Todo o intento da carta endereçada ao Comitê Central do PCUS era de recompor a fratura: esta dirige acusações a ambas as partes, convidando os próprios dirigentes do Politburo a uma maior sensibilidade e flexibilidade na resolução dos conflitos internos. O tom de Gramsci não é de modo algum formal, mas reflete a dramaticidade da situação. Togliatti, que se encontrava em Moscou e podia, portanto, ter um maior pulso da situação em relação a Gramsci, sabia que era já muito tarde; que a fratura não seria mais costurada e que Trotsky tinha já dado vida, com Kamenev e Zinoviev, à “Oposição Unificada” com a qual se preparava a organizar, com todos os meios, uma derrubada do governo. Naquela situação, já há meses comprometida, a carta de Gramsci não poderia surtir qualquer efeito senão os risco de determinar uma fratura entre o PCUS e o PCI clandestino, que teria de fato sido condenado à morte. Togliatti responde a Gramsci com a firmeza que a dramaticidade da situação exigia. Por sua vez Gramsci replica a Togliatti com tons igualmente duros, mas reafirmando um ponto que sublinha várias vezes:
Não creio que na nossa carta... haja qualquer perigo de enfraquecer a posição da maioria do Comitê central [...] As oposições representam na Rússia todos os velhos preconceitos do corporativismo de classe e de sindicalismo que pesam sobre a tradição do proletariado ocidental e retardam o seu desenvolvimento ideológico e político [...] Na nossa carta havia toda uma acusação contra as oposições, feita não em termos demagógicos, mas exatamente por isso mais eficaz e séria.28
Após a prisão, a posição partigiana de Gramsci não desaparece e ele mantém intacta suas posições. Toda a polêmica que lemos nos Cadernos é dirigida contra Trotsky, logo acusado de ser o artífice de uma nova forma de “bonapartismo” que constituía um “perigo” e conduzia, portanto, à “necessidade inexorável de reprimi-la”. 29 Uma outra passagem dos Cadernos, sobre O número e a qualidade nos regimes representativos, contém uma verdadeira celebração do então sistema político soviético, que torna a alma dos cidadãos partícipes da vida política: não a desvitaliza, transformando-a em massa amorfa (como ocorre nos regimes representativos ocidentais), às quais se concede um voto a cada cinco anos e com o qual não se faz outra coisa senão atestar a eficácia do processo de subordinação psicofísica.30 A própria categoria de cesarismo progressista (com a qual se demonstra que o enrijecimento jurídico-politico não obedece a escolhas arbitrárias, mas a circunstâncias e ralações de forças objetivas) aparece como uma evidente referência conceitual à situação da União Soviética, como também a esta parece referir-se o conceito de “guerra de posição” em antítese àquele de “guerra de movimento”. Mas esta passagem dos Cadernos pode ajudar talvez mais que qualquer outra a tornar clara esta questão:
É claro que o desenvolvimento é no sentido do internacionalismo, mas o ponto de partida é “nacional” e é deste ponto de partida que se deve iniciar. [...] É neste ponto que me parece estar o conflito entre Leon Davidovitch e Bessarione como intérprete do movimento majoritário. As acusações de nacionalismo são ineptas se se referem ao núcleo da questão. Se se estuda o esforço de 1902 a 1917 da parte do movimento majoritário se vê que a sua originalidade consiste no depurar o internacionalismo de todo elemento vago e puramente ideológico (em sentido deteriorado) para dar-lhe um conteúdo de política realista.31
Inescapável a conclusão: Gramsci, aqui como noutros lugares, insere Stalin na linha da maioria, interpretando-o como o legítimo continuador do aparato teórico e político de Lênin. E, se a isso agregamos as recentes conclusões alcançadas em torno do Caderno 22, como a defesa conceitual do desenvolvimento industrial e tecnológico da União Soviética32, compreendemos o quanto as recepções de Gramsci foram, e continuam a ser, cruelmente influenciadas pelos acontecimentos históricos e culturais sucessivos a sua morte.
*Emiliano Alessandroni é doutor em “Estudos interculturais europeus” pela Universidade de Urbino “Carlo Bo”, Itália. Autor dos livros La rivoluzione estetica di Antonio Gramsci e György Lukács. Padova: Il Prato, 2011 e Ideologia e strutture letterarie. Roma: Aracne, 2014.
Tradução: Marcos Aurélio da Silva. Prof. Associado da Universdidade Federal de Santa Catarina.
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_____ Storia, letteratura e geografia, in Said, E. Nel segno dell’esilio. Milano: Feltrinelli, 2000.
Notas
1 Losurdo, D. Il revisionismo storico: problemi e miti. Roma-Bari: Laterza, 2015.
2 D’ Orsi, A. Inchiesta su Gramsci. Quaderni scomparsi, abiure, conversioni, tradimenti: leggenda o verità? Torino: Accademia University Press, 2014. 219 p.
3 D’Orsi, A. Introduzione. Antonio Gramsci fra leggende, storia sacra, e qualche verità, in: Inchiesta su Gramsci. op. cit., p. XIII e XIV.
4 Id. ib., p. XIV
5 Agosti, A. e Abeltaro, M. Storia indiziaria, ma sui documenti. In: Inchiesta su Gramsci. op. cit., pp. 4-5. Na verdade, os autores insistem que Togliatti permaneceu fiel à linha política do Congresso de Lion (que era a linha de Gramsci) até pelo menos fins de 1928, quando a abandonou não sem certas reservas (p. 6).
6 Frosini, F. Gramsci “non contemporaneo”. Sul recente libro di Peter Thomas. In: Critica marxista, n° 3-4, 2010, p.76. De fato, parece ser este o mesmo ponto de vista de Guido Liguori, que também destacando as inovações presentes nas formulações de Gramsci, vê, todavia, como forçada (ao menos em parte) a tese do antistalinismo de Gramsci sustentadas por Giuseppe Vacca. Liguori, G. Gramsci conteso: interpretazioni, dibattiti e polemiche (1922-2012). Roma: Riuniti, 2012, p. 331.
7 Aliás, não seria demais afirmar que a crítica da cultura pós-moderna, suas vinculações com o neoliberalismo, embora ainda pequena diante da avalanche que foi esta virada política e cultural, começa a ganhar corpo no seio da esquerda européia. Veja-se a respeito os trabalhos de Zamora, D. (org.) Critiquer Foucault: lês années 1980 et la tentation neoliberale. Bruxelles: Editions Aden, 2014 (também publicado em inglês em versão ampliada por Zamora, D. & Behrent, M. C. sob o título Foucault and Neoliberalism, Polity Press: Cambridge/UK; Malden/USA, 2016); Losurdo, D. La sinistra assente: crise, società dello spettacolo, guerra. Roma: Carocci, 2014, em especial o capítulo 8; Azzarà, S. Heidegger ‘innocente’: un esorcismo della sinistra postmoderna. In: MicroMega: almanacco di filosofia, no 2, 2015, pp. 116-125.
8 D’Orsi, A. Introduzione. Antonio Gramsci fra leggende, storia sacra, e qualche verità, in: Inchiesta su Gramsci. op. cit., p. XXXII.
9 Voza, P. Fraintendimenti e mistificazioni. In: Inchiesta su Gramsci, op. cit., p. 185.
10 QdC (Q 4), (4 A), p. 425; não recuperado diretamente em um texto C, mas retomado em um outro texto A no Q 4 (8 A) sob o titulo Maquiavel e Marx.
11 QdC (Q 4), (8 A), p. 431; retomado como texto C em QdC (Q 13, 20).
12 QdC (Q 4, 8 A), p. 431.
13 R. Cesarini, Su periodizzazione e canoni nella letteratura contemporânea, in: “L’asino d’oro”, n. 4, 1991, p. 149.
14 R. Luperini, Appunti per uma risposta a Cesani, in: “L’asino d’oro”, n. 5, 1992, p. 162.
15 Cf. F. Fortini, Opus servile, in: Fortini, Saggi ed epigrammi. Milano: Modadori, 2003, pp. 1649-50.
16 Cf. F. Fortini, Di alcuni critici, op. cit. p. 219 (itálico do autor).
17 Veja-se a critica de Edward W. Said à “dimensão indiferenciada e totalizante” atribuída por Foucault ao conceito de poder, a qual o intelectual palestino contrapõe a sobriedade da reflexão gramsciana, na qual “a noção de poder não é nunca oculta nem irresistível, ou em última instância unidirecional”, como para Foucault. Cf. E. W. Said, Foucault e l’immagine del potere, in: Said, E. Nel segno dell’esilio. Milano: Feltrinelli, 2000, pp. 286-88; Id., Storia, letteratura e geografia, op. cit., p. 520.
18 Nota do tradutor. A expressão, recorrente no texto, não diz respeito às organizações formadas para combater o nazifascismo durante a II Guerra, de resto não conhecidas de Gramsci, morto no ano de 1937. Seu sentido é o de “partícipe da vida política” e remete à expressão “Odeio os indiferentes”, com a qual Gramsci inicia o artigo intitulado Indifferenti, publicado originalmente em La Città futura de 11 de fevereiro de 1917.
19 E. Alessandroni, Antonio Gramsci, per un marxismo non travolto dall’utopia, in: Marxismo oggi, n. 1, 2008.
20 Id. Ib.
21 Id. Ib.
22 Cf. Canfora,1956. L’anno spartiacque. Palermo: Sellerio, 2008.
23 D. Fertilio, Budapest 1956, le lettere della rottura, in: “Corriere della Sera”, 23 ottobre 2006.
24 Medvedev e Medvedev, Stalin sconosciuto. Alla luce degli archive segreti sovietici. Milano: Feltrinelli, 2006, p. 122.
25 D. Losurdo, Stalin. Storia e critica di una leggenda nera. Roma: Carocci, 2008.
26 Canfora, op. cit., p. 30.
27 A. Gramsci, La morale del ritorno di Trotskij, in: “L’Unitá”, 4 giugno 1925.
28 A. Gramsci, Lettera a Palmiro Togliatti del 26.11.1926, in: P. Spriano, Gramsci in carcere e il partito. Roma: L’Unità, 1988.
29 QdC (Q22), (11 A), p. 2164. Cf. também Q 7, 16.
30 QdC (Q 9), (69 A e 13), (30 C), pp. 1140-41; 1624-26.
31 QdC (Q 14), (68 B), p. 1729.
32 Cf. D. Losurdo, L’Americanismo? Non è da avversare, in: Il Manifesto, 27 giugno, 2013.