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Edição 147 > Fundamentos e perspectivas da administração Trump
Fundamentos e perspectivas da administração Trump
Trump tem se demonstrado capaz de se alinhar aos postulados fundamentais do imperialismo estadunidense, conforme demonstram os recentes acontecimentos no cenário internacional.

A vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais estadunidenses de 2016 causou forte comoção interna e gerou um terremoto geopolítico. Um processo eleitoral complexo, com sinais difusos que dificultaram as análises sobre a verdadeira natureza do acontecido. Surpreendeu o fato de um candidato supostamente antiestablishment, que enfrentou forte oposição até mesmo dentro da própria legenda por onde concorreu, ter vencido a eleição – principalmente após conduzir uma campanha racista, xenofóbica, autoritária e misógina, marcada pela falta de uma agenda política concreta e constante mudança de perspectiva. Esta imprevisibilidade, no entanto, não deve ser confundida com uma falta de objetivos, mas ser vista como uma estratégia efetiva para fazer avançar os interesses de sua administração.
Em seu primeiro discurso1, durante sua posse como 45º presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump buscou revestir a solenidade de um significado especial, clamando representar a transferência do poder de Washington DC – do establishment político – para o povo. Afirmou que iria governar para “cada estadunidense” e acrescentou que “não procuramos impor nosso modo de vida a ninguém, mas sim deixá-lo brilhar como exemplo”.
O dia 29 de abril de 2017 marca o centésimo dia da presidência de Donald Trump. Tradicionalmente, os primeiros cem dias do primeiro mandato de uma presidência nos Estados Unidos são avaliados para medir os sucessos e as realizações de um presidente durante o tempo em que seu poder e influência estão em seu momento mais alto. E as diferenças entre o discurso feito no dia 20 de janeiro de 2017 e a prática no decurso dos últimos meses são colossais, mas sem grandes surpresas se contrapostas às tendências gerais do desenvolvimento histórico dos EUA.
O caminho para compreender as vicissitudes desse processo perpassa por desnudar o quadro teórico deste, exposto principalmente nas contradições da eleição que levou Trump ao escritório oval e nas tendências históricas por detrás de suas propostas. Somente assim, poderemos avaliar com acurácia o progresso e as tendências de sua administração.
As contradições no seio da burguesia estadunidense
O processo eleitoral foi marcado por contradições e disputas acirradas, mas a escolha do Partido Democrata por Hillary Clinton provavelmente foi a principal causa de sua derrota. Apesar de gozar das boas graças da mídia liberal e das grandes corporações, Hillary é profundamente impopular, pois representa a velha política neoliberal estadunidense na sua pior forma. Por isso, foi incapaz de dialogar com a classe trabalhadora branca do Cinturão da Ferrugem, velha região manufatureira que enxerga na globalização neoliberal as mazelas de seu declínio nas últimas décadas. Além disso, a derrota democrata dentro dos seus próprios currais eleitorais provou-se uma crítica
retumbante à escolha de Clinton como candidata.
Em um período de extrema desigualdade econômica e social, os votos decisivos não estavam onde o capital costuma repousar, mas sim na classe trabalhadora. Desiludidos com o sistema e com suas condições materiais, ao invés de questionarem a raiz de seus problemas – o sistema capitalista – voltaram-se para a busca de um salvador. No entanto, devido aos desdobramentos da luta de classes e do estágio atual da consciência de classe nos Estados Unidos, os trabalhadores, apesar de guardarem expectativas e insatisfações semelhantes, se expressam de maneira diferente, principalmente através da questão racial. Assim se explica por que a tradicional classe trabalhadora branca se mobilizou para votar em Trump, enquanto sua parcela afrodescendente e latina preferiu, em grande parte, se ausentar da votação. Estes eleitores foram responsáveis pelo candidato do Partido Republicano superar as expectativas das pesquisas de intenção de voto em quase todos os estados estratégicos, como Ohio, Flórida, Carolina do Norte, Pensilvânia e Wisconsin, conquistando o número de delegados necessários para chegar à presidência.
As massas trabalhadoras e a pequena burguesia estadunidense ouviram com esperança as promessas de repatriar e expandir empregos perdidos para a globalização, inadvertidos de que todas essas promessas trarão consequências nefastas, pois para cumprir o objetivo de fazer “a América grande de novo” será necessário um ataque voraz aos já solapados direitos trabalhistas para garantir o aumento de produtividade e, por consequência, da extração de mais valor.
Ademais, não podemos nos deixar enganar pela construção simbólica de Donald Trump como um candidato “antiestablishment”, pois esta foi cuidadosamente talhada, com ajuda de uma parte da mídia, para abarcar o eleitorado estadunidense. O homem de negócios que entra na política com um discurso moralista para desalojar a corja de políticos corruptos incompetentes de carreira. A velha fórmula do messias apolítico, desta vez apresentada com uma roupagem nova, mas que parece estar se tornando uma tendência nas democracias burguesas, guardadas as especificidades e peculiaridades de cada país. O uso de figuras não convencionais não é novidade na política estadunidense.
Donald Trump deve ser compreendido como um clássico demagogo que através de sua retórica exaltada chauvinista-populista apela para os preconceitos e esperanças do povo para angariar apoio. Trump, no entanto, jamais teve a intenção de representar os interesses do povo. Elemento clássico da burguesia estadunidense cujo programa verdadeiro é fazer os Estados Unidos “grandes de novo” para os capitalistas, não para os trabalhadores e as massas excluídas.
Desta forma, prevalece a interpretação de que seja Democrata, seja Republicano, qualquer candidato que ganhe as eleições na “América” será um representante do sistema capitalista encabeçado pelos Estados Unidos. Tanto Trump quanto Hillary são ambos parte do mesmo establishment constituído por grandes monopólios e corporações. Existem diferenças entre os dois, mas o objetivo final é sempre o mesmo: perpetuar o sistema capitalista imperialista sob a égide estadunidense.
Isto porque a eleição de 2016 reveste-se de um significado especial, a necessidade de responder ao desafio a hegemonia do capitalismo estadunidense imposto pelos polos de poder emergentes, principalmente a China. Uma tarefa que extrapola a divisão entre os dois grandes partidos tradicionais e assume um claro caráter de classe. É a primazia da burguesia estadunidense que está em xeque.
O resultado das eleições presidenciais de 2016 nos Estados Unidos expôs para o mundo o aprofundamento das contradições no seio da burguesia estadunidense. Ficou evidente no pós-2008 que o neoliberalismo não é mais capaz de restaurar a lucratividade do capitalismo e, justamente por isso, uma fração da burguesia estadunidense, representada por Donald Trump, optou por retomar políticas clássicas do capitalismo do século XIX.
Tendências históricas
No Grundrisse, Karl Marx caracterizou os Estados Unidos como “um país em que a sociedade burguesa não se desenvolveu sobre a base do feudalismo, mas começou a partir de si mesma; em que a sociedade burguesa não aparece como o resultado remanescente de um movimento secular, mas como o ponto de partida para um novo movimento; em que o Estado, em contraste com todas as formações nacionais anteriores, desde o início esteve subordinado à sociedade burguesa e à sua produção e jamais pôde ter a pretensão de ser um fim em si mesma; enfim, em um país em que a própria sociedade burguesa, combinando às forças produtivas de um velho mundo com o imenso terreno natural de um novo, desenvolveu-se em
dimensões e liberdade de movimento até então desconhecidas e suplantou em muito todo o trabalho anterior no domínio das forças naturais; e onde, enfim, os antagonismos da própria sociedade burguesa aparecem unicamente como momentos evanescentes.” (2011, p. 28).
Apesar de escritas na segunda metade do século XIX, essas palavras carregam relevância até os dias atuais. É nos Estados Unidos que se manifestam de maneira mais integral as relações de produção do modo de produção capitalista. Em nenhum outro lugar do mundo, a famosa frase do Manifesto do Partido Comunista (2010, p. 42), “o (poder) executivo no Estado moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”, faz tanto sentido.
Na época atual do capitalismo, o poder do Estado moderno centralizado alcançou um desenvolvimento incomparável na História, expresso principalmente na consolidação do monopólio da violência e coerção. Assim se explica como, na crise de 2008, o governo estadunidense tomou todas as decisões unilaterais para resgatar o capital privado, absolver os grandes capitalistas, decidir as empresas que iriam falir e empurrar o prejuízo para o público.
Além disso, jamais podemos esquecer que a burguesia é uma classe que está sempre em conflito consigo mesma. Competição entre os capitalistas não é acidental, mas parte inerente do sistema. Conflitos pelo controle de mercado e investimentos são corriqueiros e não são decididos através do altruísmo. É somente através do poder Executivo do Estado moderno que os capitalistas se unem em torno de seus interesses gerais.
O controle do poder estatal é crítico, mas não pressupõe a importância de indivíduos competentes, com talentos gerenciais e carisma extraordinários ocupando a presidência. Ao contrário, a história estadunidense é recheada de exemplos de pessoas medíocres que ocuparam a cabeça do poder Executivo. A questão fundamental é a permanência do poder nas mãos da burguesia e a manutenção da legitimidade do sistema político “democrático” frente às massas. Desta forma, Donald Trump foi o escolhido para gerir os assuntos gerais de sua classe. E, como apontado, representa uma fração que busca implementar políticas antagônicas das até então em curso no atual contexto.
Ainda no Grundrisse, em uma análise crítica da obra The Harmony of Interests: Agricultural, Manufacturing, and Commercial (1851), do economista estadunidense Henry Charles Carey, chefe conselheiro econômico de Abraham Lincoln, Marx demonstra a contradição do autor em assumir como ponto de partida da análise a necessidade da emancipação da sociedade burguesa do Estado na América do Norte, mas concluir com uma defesa da intervenção do Estado para que o desenvolvimento puro das relações burguesas não seja perturbado por influência externa. Algo que de fato, afirma o pensador comunista, ocorreu nos Estados Unidos.
Carey, expoente do pensamento capitalista estadunidense, era um crítico voraz do sistema britânico e defendia o protecionismo como uma forma de se contrapor ao que entendia como a influência destrutiva da Inglaterra sobre o mercado internacional com suas aspirações monopolistas. Essa política, segundo ele, era necessária para encorajar a produção e a autossuficiência nacional. Um de seus trabalhos de maior projeção, Essays on Political Economy (1822), era um apoio à política de proteção e à promoção da indústria implementada por Alexander Hamilton. Para Carey, a concentração do capital no interior de um país e o efeito dissolvente dessa concentração só têm aspectos positivos, enquanto o monopólio do capital concentrado inglês com seus efeitos dissolventes sobre os pequenos capitais nacionais de outros povos só tem efeitos negativos. Marx, evidentemente, o desqualificou teoricamente por não entender as leis fundamentais do desenvolvimento do capitalismo. O estadunidense defendia duas medidas
diametralmente opostas, em esferas diferentes, mas que travam da mesma tendência básica do capitalismo, concentração e formação de monopólios do capital.
Seja como for, a discussão demonstra as raízes históricas do protecionismo no pensamento capitalista estadunidense. Se, em um primeiro momento, foi utilizado como recurso para salvaguardar os interesses da jovem burguesia estadunidense contra o capitalismo inglês – saindo de cena quando os Estados Unidos passaram a ditar as regras –, agora, ressurge renovado no discurso chauvinista de Donald Trump, cujo objetivo é proteger o capital estadunidense das ameaças contra sua hegemonia.
100 dias de Trump
Se Donald Trump será capaz de conduzir os assuntos da burguesia com proficiência, ainda é uma questão que permanece em aberto, mas desde que assumiu a presidência cada vez mais se conforma dentro dos padrões.
No final de outubro de 2016, em Gettysburg, Pensilvânia, Trump fez um discurso elaborando um plano para os seus cem primeiros dias na presidência. O Contrato com o Eleitor Estadunidense2, dividido em duas partes, a primeira a ser implementada pelo Executivo, rascunha três grandes áreas: iniciar uma limpeza em Washington DC, incluindo a elaboração de uma emenda constitucional para limitar o número de mandatos dos congressistas; proteger o trabalhador estadunidense; e restaurar o Estado de Direito. E a segunda propõe dez medidas legislativas para que sejam aprovadas dentro do prazo dos 100 dias, nestas incluem-se o repúdio ao Obamacare, o financiamento de um muro na fronteira com o México, expansão dos investimentos nas forças armadas, entre outras.
Durante sua campanha, o magnata empreendedor também assumiu 141 posições diferentes em 23 tópicos importantes para a política estadunidense3, incluindo aquecimento global, controle de armas, aborto, imigração, entre outros. Trump não demonstra qualquer remorso ou vergonha em mudar constantemente suas perspectivas.
Na verdade, a sua imprevisibilidade e aparente falta de princípios são sua marca registrada, algo que no mundo do capital rendeu-lhe bons frutos nos negócios. O objetivo é sempre conseguir o melhor acordo, não importa como. Ao que aparenta, esta estratégia parece estar sendo transplantada para sua atuação na presidência.
Promessas e declarações feitas durante a disputa eleitoral foram rapidamente revertidas. A OTAN deixou de ser obsoleta; a China não será mais tachada como manipuladora de câmbio; as relações com a Rússia azedaram a níveis similares ao da Guerra Fria; a promessa de não intervencionismo terminou com o bombardeamento unilateral na Síria e nas recentes provocações à Coreia Popular; entre outros exemplos.
Todavia, com relação às promessas expostas no Contrato com o Eleitor Estadunidense, algumas foram cumpridas, como a confirmação de Neil Gorsuch para a Suprema Corte, a aprovação do oleoduto de Keystone, a retirada dos Estados Unidos do Tratado de Livre Comércio Transpacífico, a tentativa – ainda que frustrada – de repelir o Obamacare, entre outras.
As promessas efetuadas por Trump no documento de Gettysburg estão sendo minuciosamente monitoradas por uma organização que se declara não partidária através do website Track Trump4. Este grupo divide em oito áreas a análise sobre o governo Trump, nomeadamente imigração, comércio, energia e clima, governo federal, política econômica, saúde, educação e segurança. Destas, somente as promessas feitas na área de imigração, segurança e governo federal estão majoritariamente em progresso ou sendo de fato implementadas. Educação, política econômica não têm nenhum dos itens expostos em processo de adoção.
Ao que tudo indica, Donald Trump não conseguirá cumprir com as promessas feitas no contrato que leva sua assinatura pessoal. Os eleitores insatisfeitos que quiserem cobrar do presidente deverão retornar ao documento e reparar na linguagem deste, eles se frustrarão ao reparar que Trump não dá certezas absolutas, apenas promete “perseguir imediatamente” as medidas a serem propostas dentro do Executivo e se compromete a “trabalhar com o congresso” para implementar as medidas legislativas.
Durante o período dos 100 dias, a administração Trump foi marcada por intensas disputas internas e escândalos envolvendo seu alto escalão, como a nomeação de seu genro Jared Kushner para assessor sênior na Casa Branca, a renúncia do conselheiro de segurança nacional Michael T. Flynn, entre outros exemplos. No entanto, devemos conceber que o poder Executivo do Estado moderno é gerenciado por milhares de burocratas, grupo formado por elementos – em geral trabalhadores qualificados – ligados à burguesia. Estes cumprem o papel de gerenciar a rotina do Estado e manter a estabilidade do sistema político em troca de privilégios pessoais, carreirismo e prestígio. Fazem parte de uma grande reserva de mão de obra que circula na administração do Estado independentemente de suas preferências partidária, servindo aos interesses da burguesia em diversos
governos, conforme sua habilidade e competência.
Considerações finais
Uma parte considerável das promessas de Trump é inviável ou falácia, algumas – como por exemplo o banimento integral de lobistas estrangeiros injetando dinheiro nas eleições estadunidenses – já são previstas como ilegais na legislação atual, outras como, a criação de 10 milhões de empregos em seu primeiro mandato e um PIB de 4% ao ano, são quase impossíveis.
As confusões e instabilidades cercando a figura de Trump, na verdade, revelam sua astúcia em atender variadas demandas, muitas vezes contraditórias, sem prejudicar os interesses gerais que se propôs a defender.
Além disso, Trump tem se demonstrado capaz de se alinhar aos postulados fundamentais do imperialismo estadunidense, conforme demonstram os recentes acontecimentos no cenário internacional. Portanto, a imprevisibilidade de Trump transplantada para o complexo cenário geopolítico representa uma ameaça concreta e objetiva à paz mundial. Um exemplo real deste perigo é a recente escalada das tensões na península coreana. Trump enviou uma armada nuclear para a região, enquanto a Coreia Popular, como resposta, se declarou preparada para iniciar a guerra termonuclear. A China, por sua vez, se divide entre os dois lados para não prejudicar nenhum de seus interesses fundamentais. No entanto, cabe recordar que a China e a Coreia Popular assinaram, em 1961, o Tratado Sino-Coreano de Amizade – válido até 2021 –, no qual se comprometem a prestar assistência militar
por todos os meios à sua disposição caso um dos signatários sofra um ataque armado por parte de qualquer Estado. O uso de uma estratégia política irregular para alcançar os objetivos a qualquer custo pode gerar consequências imprevisíveis, possivelmente resultando em conflagrações inesperadas e conflitos militares em escala global. Portanto, um ataque unilateral dos Estados Unidos contra a RPDC pode gerar consequências desastrosas para além das partes diretamente envolvidas e deflagrar uma guerra de proporções colossais.
* Gaio Doria é mestre em economia chinesa pela Universidade do Povo da China (RUC) onde atualmente cursa o doutorado no Departamento de Marxismo; colaborador da Comissão de Política e Relações Internacionais
Notas1-Ver <https://www.whitehouse.gov/inaugural-address>.
2-Ver <https://assets.donaldjtrump.com/CONTRACT_FOR_THE_VOTER.pdf>.
3-Ver <http://www.nbcnews.com/politics/2016-election/full-list-donald-trump-s-rapidly-changing-policy-positions-n547801>. 4-Ver <https://www.track-trump.com/>.
BibliografiaMARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, K.; FRIEDRICH, E. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010.