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Edição 147 > Miguel Nicolelis: Brasil renuncia à independência ao abandonar sua ciência e tecnologia
Miguel Nicolelis: Brasil renuncia à independência ao abandonar sua ciência e tecnologia
Em palestra na USP, o neurocientista mostrou os avanços em investimento científico brasileiro e o desastre que representou o golpe de Estado para a área. Para ele, o Brasil está à beira de um abismo e o único recuo possível para sair desse buraco é a retomada da democracia e dos investimentos que vinham em ritmo crescente

A convite da Associação de Pós-Graduandos da Universidade de São Paulo Helenira Rezende (APG-USP), no dia 6 de abril, o cientista Miguel Nicolelis ministrou a aula magna Universidade, Estado e Democracia: desafios e perspectivas para a ciência brasileira aos ingressantes da universidade. Durante cerca de três horas, o neurocientista reconhecido internacionalmente deu um testemunho de paixão pela ciência e pela ousadia da invenção do conhecimento. Mas também foi enfático na convocação ao mundo acadêmico para que reaja à situação política do país, sob pena de sofrer um retrocesso sem precedentes, que torne inviável a reversão em médio prazo.
Talento brasileiro
Nicolelis mostrou com os olhos brilhando e contou com a voz embargada, em alguns momentos, seu projeto de Campus do Cérebro em Macaíba, na região metropolitana de Natal (RN), onde se propôs a formar cientistas desde o útero materno, utilizando alta tecnologia e pedagogia que casa “a ousadia de Santos Dumont com o humanismo de Paulo Freire”. Contou de forma saborosa os resultados extraordinários do seu Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), que hoje faz parte dos institutos mantidos pelo governo federal. Algo que foi comemorado em outros tempos, hoje – de acordo com Nicolelis – não tem garantia plena de que vá se manter com a atual política de cortes em ciência e tecnologia do governo Temer. Foi a partir do trabalho em Macaíba, que Nicolelis pôde montar o exoesqueleto que fez uma pessoa paraplégica chutar uma bola na abertura das Olimpíadas do Rio, a partir de comandos do cérebro. Depois disso, as pessoas que usaram o sofisticado aparelho passaram a evoluir nas reações físicas mesmo sem o aparelho, o que surpreendeu cientistas do mundo todo.
O projeto foi financiado por doações privadas durante um longo tempo. Depois de 2008 houve parcerias pontuais, quando o projeto foi reconhecido como sendo de interesse nacional pelo Ministério da Educação. Em 2012, surgiu a ideia de transformar todo o projeto num campus federal, quando ele foi doado ao governo brasileiro. “Foi uma das vitórias mais tristes que tive na minha vida, pois, no momento em que o MEC aceitava o campus como uma entidade federal, ou seja, perenizava o projeto para atender milhares de crianças, professores da USP foram a público protestar contra a alocação de recursos federais para um campus na periferia de Natal. Eles foram à imprensa internacional, às revistas científicas, foram à Universidade Duke tentar que eu fosse despedido. (...) É pesado o jogo aqui, não é para principiante! O Brasil tem um exército silencioso, que ninguém ouve, mas que é muito poderoso – inclusive na academia –, das pessoas que não fazem e que não querem que ninguém faça. (...) Meu conselho é que você tem que encontrar um caminho e fazer, pois a resposta no Brasil não é newtoniana e linear, é meio quântica, de probabilidades.”.
Nicolelis contou também do episódio em que, ao vencer uma concorrência, teve questionada sua nacionalidade e residência no Brasil. “Tive que voar às pressas para Brasília e acordar na porta do CNPq com a minha conta de luz de Natal e a certidão que a dona Gizelda registrou quando eu nasci aqui na Bela Vista [bairro tradicional de São Paulo], para provar que eu era brasileiro. E fui com a camisa do Palmeiras para dar ênfase”, disse sob gargalhadas.
Um segredo bem guardado
Nicolelis falou sobre pesquisas internacionais que mostravam o Brasil como um dos “players” em pesquisa científica de ponta, com investimentos crescentes, interrompidos pelo impeachment da presidenta Dilma. O impacto da Lava Jato sobre a Petrobras, empresa que mais investe em inovação e tecnologia, também foi criticado. Segundo ele, essa “top five” das petroleiras do mundo é responsável por uma cascata de investimentos em pesquisa aplicada e básica. “Quando se escrever a história do Brasil, no futuro, haverá toda uma sequência de volumes Tiro no Pé nº 1, Tiro no Pé nº 2; serão Tomos sobre o assunto. Não conheço nenhum país no mundo com o complexo de vira-latas que temos e com a capacidade de acertar o dedão toda vez”, ironizou, aconselhando que acha que é preciso “tomar um chá de erva cidreira” e repensar o que estamos fazendo com o país.
“A derrocada da Petrobras remove bilhões do sistema de pesquisa brasileiro, como a engenharia, por exemplo”, afirmou, apontando esse como um “segredo” que não se fala no Brasil. Nicolelis questiona se alguém já viu alguma grande empresa internacional sofrer campanha como a que a Petrobras tem sofrido, embora seja apenas vítima diante de delitos de corrupção de funcionários. “Os bancos americanos quebraram o mundo e ninguém cogitou de fechar o Bank of America, Citybank e JP Morgan, aliás, ninguém foi preso por esse escândalo de trilhões de dólares.”.
Ele mencionou as marchas de cientistas ocorridas recentemente nos EUA, devido ao corte de 20% do financiamento por Donald Trump do National Institute of Health, e lamentou a falta de mobilização da universidade e dos institutos brasileiros diante de políticas muito mais graves. “Surpreendi-me com um movimento de cientistas nas ruas, num lugar em que eu nunca imaginei que alguém iria pra rua fazer nada, além de comemorar o SuperBowl”, afirmou sobre os americanos.
Complexo de inferioridade como consenso nacional
Nicolelis parafraseou Fernando Birri, ao explicar para que serve a utopia, como aquela referência que nos faz caminhar para frente, já que nunca será alcançada. Para ele, é esta referência de ousadia, de buscar fazer melhor que qualquer outro país do mundo, que falta entre os cientistas brasileiros. Ele criticou o “complexo de vira-latas”, que já o atacou de tantas formas, mas que nunca o impediu de seguir em frente em suas ambições científicas.
“O nosso grande drama hoje é a desinformação. A questão da ciência é uma questão de soberania nacional. As sociedades que renunciarem à produção do conhecimento de ponta, à produção da sua própria ciência e tecnologia renunciam à sua independência enquanto nação, enquanto sociedade. É isto que está em jogo. Se o nosso país quer continuar sendo uma nação ou quer se transformar única e exclusivamente em um vassalo de outras nações”, declarou.
Nicolelis falou das dificuldades de se fazer ciência no Brasil, dos problemas relacionados ao financiamento da pesquisa, do retrocesso representado pelo encerramento do programa “Ciência Sem Fronteiras”, que deu oportunidade a 108 mil jovens cientistas brasileiros de estudarem em universidades de ponta no exterior, mas teve seu fim anunciado pelo governo no domingo anterior, pouco antes do jogo de futebol. “O Ciência Fronteira foi matéria da Nature, da Science, da Scientific America, como um dos maiores programas da história do mundo em termos de fellowship financiados pelo governo de um país”, disse ele, criticando a postura dos brasileiros de atacarem o programa pelos estudantes que aproveitam o financiamento para fazer turismo.
“Ninguém fez isso! Nem a Índia, nem a China”, disse ele, mencionando os estudantes do Acre, de Roraima, Mato Grosso do Sul, que encontra no Massachusetts Instituto of Technology, no Caltech, em Harvard, estudando física nuclear ou neurociência, porque o Brasil pagou o curso deles. “E as universidades americanas abrindo escritório aqui na Faria Lima, desesperadas para recrutar, porque sabiam que iam ganhar talento único e dinheiro”, contou.
O impacto internacional do fim do programa, segundo ele, é tratado como uma inconsistência do país no trato de sua produção científica e tecnológica. “Quando colegas meus, alguns Prêmios Nobel, me dizem que o Brasil não é um país sério, confesso que já não tenho mais argumentos pra combater essa visão...”, lamentou. “Isso é doloroso pra mim, como nada foi nesses 30 anos de exílio, porque eu não acredito nisso!”.
Ilustrando seu ponto de vista, Nicolelis mencionou o jornalista britânico Robert Fisk, do Independent, que, ao vir ao Brasil, observou uma diferença essencial com seu país, onde tudo que é público é tratado com muita estima e muito cuidado, pois é de todos e para todos. “Em uma semana, ele observou que tudo que é público no Brasil pode ser destruído e desconsiderado. Ele notou algo de essencial do ethos nacional, que não se libertou da herança do colonialismo brutal que sofremos. Nos EUA, se fala que o país ainda não terminou a última batalha da Guerra Civil, principalmente lá onde eu moro. Aqui não nos libertamos de toda a herança colonial, da escravidão, toda essa bagagem social que não nos permite ter uma definição homogênea do que é ter uma nação”, analisou ele, citando episódios recentes como os aplausos a Jair Bolsonaro no Clube A Hebraica, disseminando ódio fascista, ou ainda o comportamento de médicos diante da paciente Marisa Letícia, esposa do ex-presidente Lula. “É como se a gente estivesse vendo a erosão do mínimo denominador comum que mantém esse país junto.”.
Dois golpes numa vida
Ele atribuiu o retrocesso que vive a ciência no Brasil à histórica falta de clareza das elites políticas nacionais sobre a necessidade de um projeto de desenvolvimento soberano para o país. Evocou a responsabilidade política da comunidade científica na realidade pós-golpe. “É muito importante que os cientistas se deem conta do que se passa no país, de verdade, e passem a atuar na vida nacional”, disse ele.
Nicolelis lembrou o período da ditadura militar em que perdeu colegas e professores nos quais se espelhava pela competência intelectual, pela defesa dos direitos humanos e da democracia, e a luta pelo direito ao acesso ao conhecimento para toda a sociedade. “Agora, na mesma vida, nunca imaginei que fosse voltar ao mesmo auditório da mesma Faculdade de Direito do Largo São Francisco, para defender a democracia diante de outro golpe de Estado!”.
Engajado na resistência contra o golpe jurídico-parlamentar no Brasil, Miguel Nicolelis afirmou que “a maior violência que aconteceu neste país nos últimos anos foi negarem o resultado de uma eleição democrática, depois disso...”. E defendeu que o momento é de a academia ter posição: “cientista também tem direito à opinião, de ter visão política, ter um projeto de Nação e externar esse projeto com toda a liberdade. Tem direito a ter lado. O meu lado, deixo bem claro, é o do Brasil e da democracia brasileira.”.
“Depois de trinta e poucos anos de carreira, este é o momento mais claro onde o risco iminente de colapso total e concreto da vida universitária, da produção científica, das universidades públicas como as conhecemos é real. Não é mais uma hipótese, como foi em outros momentos. O risco é tangível de cairmos num buraco negro e não conseguirmos voltar. Podemos acordar um dia e não existir mais ciência sendo feita aqui. Existe um limite do quanto você pode remover de oxigênio de um sistema antes de ele colapsar”, comparou. Ele lembrou que em 2013, quando estava no Japão, e ocorriam os preparativos para a Copa do Mundo, falava-se da explosão de investimentos em todas as áreas no país, e a população protestava como nunca antes. “Eu só me pergunto como cientista: Está melhor? De 2013 a 2017, aonde chegamos? Olhem os números, comparem os indicadores econômicos, eu não peço mais nada. E nós não vamos reagir?”.
Diante de uma pergunta sobre como ele enxerga um caminho para a retomada do desenvolvimento e da soberania nacional, Nicolelis foi taxativo: “Eu tenho uma resposta muito curta e breve: por pra fora quem usurpou o poder, convocar eleições direitas e achar um consenso nacional. Pra mim é simples! Porque, também, se empurrar cai”, disse ele, sob aplausos e gritos de Fora, Temer.
Ele encerrou sua palestra contando a história dramática de um de seus ídolos, Carlos Chagas, que fez ciência revolucionária com nenhum recurso, sofrendo as ameaças de um país atrasado e pobre. “A esperança está dentro de nós. O que falta é a gente comunicar a nossa esperança publicamente para que outras pessoas saibam que a esperança delas pode ser um rastilho de pólvora. A ilegitimidade, a falta de democracia, a falta de amparo social que vivemos nesse momento com a parcialidade midiática e judiciária, tudo isso não resiste a um povo que sabe o que quer. No momento em que o povo brasileiro decidir que tipo de nação quer ter, não há gangue de canalha nenhuma que se perpetue no poder. Eles vão correr primeiro, porque além de tudo são covardes. Querem que renunciemos à esperança e à utopia, e não podemos aceitar mais essa imposição! Temos que reconquistar aquilo que nos pertence por direito inalienável, viver num país justo e democrático em que nossos filhos e netos possam levar a termo os seus sonhos mais doidivanas, sejam eles quais forem. Essa é a minha posição como cientista”, concluiu
Aula histórica
Para a coordenadora da APG-USP, Gabrielle Paulanti, a aula do professor Miguel Nicolelis foi histórica para a entidade e para a própria Universidade de São Paulo. “Nesse momento de golpe na democracia, é significativo que um grande cientista brasileiro, com enorme prestígio internacional, tome posição política na maior universidade do Brasil contra a agenda regressiva que vem sendo implementada à revelia da vontade popular”, afirmou ela à reportagem do portal Vermelho.
A dirigente estudantil destacou o fato de Nicolelis não ter restringido sua exposição apenas ao seu trabalho científico, mas também sobre o papel político e social da ciência. Para ela, “além de conhecermos mais a pesquisa e o trabalho do professor, essa aula nos trouxe mais confiança na ciência brasileira e sua potencialidade de mudar a realidade e diminuir desigualdades”.
Sobre Nicolelis: Graduado em Medicina e doutor em Fisiologia Geral pela Universidade de São Paulo, Miguel Nicolelis tem pós-doutorado em Fisiologia e Biofísica pela Universidade de Hahnemann, na Filadélfia (EUA). Apontado pela revista Scientific American como um dos 20 maiores cientistas da atualidade, ele lidera grupos de pesquisadores que empregam as ferramentas computacionais da robótica e da neuroengenharia para desenvolver neuropróteses com potencial para restaurar a mobilidade de pacientes paralisados por trauma ou degeneração do sistema nervoso central.
É fundador e preside voluntariamente a Associação Alberto Santos Dumont para Apoio à Pesquisa (AASDAP) desde sua criação, em 2004.
* Cézar Xavier é jornalista do portal Grabois e colaborador da revista Princípios