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Edição 143 > O domínio da urbanização improdutiva no Brasil: a simbiose do capitalismo financeiro e da acumulação primitiva
O domínio da urbanização improdutiva no Brasil: a simbiose do capitalismo financeiro e da acumulação primitiva
A urbanização brasileira vem se associando principalmente à multiplicação do valor da terra de forma ativa e intencional, enquanto um desaguadouro sistemático dos excedentes econômicos que não se voltam para o investimento produtivo e encontram rentabilidade superior em operações eminentemente mercantis
“A Revolução Francesa, ao conceituar o território nacional, apagando as conexões com linhas dinásticas e eventuais acordos familiares, definiu as linhas de contorno de uma pátria, propriedade eterna e indivisa do povo nacional através de gerações” (Carlos Lessa, 2010).

O capitalismo não se baseia apenas em um processo de valorização a partir da produção social de mercadorias, ele depende também de mercantilizar (ou seja, organizar em mercados) aquilo que não possui valor de troca originalmente. Polanyi (2000) designou como “mercadorias fictícias” esses bens. Mesmo não sendo frutos do trabalho humano, eles assumem uma forma específica de capital nos marcos da propriedade privada e geram uma fonte de renda para quem os detém.
A terra é um desses casos. Sua transformação em mercadoria foi uma necessidade histórica para garantir a expropriação dos produtores, separá-los de seu acesso direto e garantir a apropriação do produto por não produtores ao subordiná-la ao processo de valorização do capital. É evidente que esse processo de transformação não é isento de contradições ao se transformar em um valor que se valoriza pelo controle concentrado de sua oferta. A reprodução fundiária como capital vem estando no centro dos conflitos sociais desde a origem do capitalismo diante dos “despejados” do meio rural e dos excluídos do acesso à terra urbanizada regular.
Além de ser um foco de tensões sociais, é também um fator de instabilidade do próprio sistema capitalista. Constatam-se ineficiências no uso do solo geradas pelo próprio funcionamento do mercado de terras, por exemplo: hiperaglomerações e imobilidade urbana, déficit habitacional e redes espúrias de clientela (incluindo domínio de milícias e cartéis de empresas de transporte coletivo), loteamentos ilegais e ocupação de áreas de ecossistema frágil (gerando grandes passivos ambientais) etc. Portanto, o preço da terra não é um mecanismo regulador que gera distribuição equilibrada das atividades no espaço.
Nesses termos, enfatizam-se dois aspectos fundamentais que revelam o caráter ao mesmo tempo moderno e atrasado da valorização fundiária. Primeiro, o preço depende basicamente do potencial de demanda efetiva. Este potencial reflete a segmentação do mercado em diversas classes de renda (independente do preço geral de produção imobiliária) e, em grande medida, com a finalidade de reserva de valor e, logo, riqueza patrimonial. Nessa dimensão, trata-se de um processo moderno de valorização fictícia que autonomiza a reprodução do capital através da mobilização e emissão de ativos financeiros (o que será detalhado mais adiante).
Segundo, sua oferta não depende do preço e sim de mecanismos coercitivos e extramercados. Especificamente, depende da vinculação com “privilégios públicos”, os quais conferem barreiras à concorrência intercapitalista de acordo com a oferta diferenciada de serviços e investimentos públicos em infraestrutura básica, a forma particular de licenciamentos e regularização fundiária e as prioridades em termos de localizações nobres e novas fronteiras de expansão associadas ao planejamento das cidades etc. Nessa dimensão, trata-se de uma máquina de acumulação primitiva que, na órbita da circulação e em articulação orgânica com o Estado, garante a reprodução de capitais tradicionais e atrasados.
O resultado mais comum é a preferência pela decisão de localização em terras baratas, logo, novos assentamentos tendem a ocorrer nas periferias desprovidas de boa estrutura urbana que exigirão apoio do poder público para sua valorização. Evidentemente, a “revitalização” de áreas centrais é uma oportunidade a ser considerada também, o que envolve criminalização da pobreza e isolamento de massas populacionais empobrecidas, programas de desapropriação e remoção em série a fim de “liberar” o território para o mercado, jurisprudências especiais para flexibilizar a legislação, e toda sorte de incentivos e salvaguardas para criar condições satisfatórias para a apropriação privada.
Cabe lembrar que a propriedade privada da terra não é natural e depende da sanção do Estado através da concessão de garantias formais (desde a proteção legal à ação repressiva policial) e da implementação de grandes intervenções urbanas. Além disso, essa propriedade privada não tem valor em si mesmo, o que só é gerado como título capitalizado a certa taxa de juros. Nesses termos, o cerne do problema envolve a correlação de forças que sustenta o Estado e a forma de uso capitalista do solo, sendo que esta última se caracteriza pela busca de lucros extraordinários associados aos ganhos diferenciados de localização.
Como contrapartida, a desordem urbana e as carências sociais são recriadas continuamente porque a expansão das cidades não está voltada para a superação de um espaço segregado de valores de uso, no qual permanece limitado o acesso para a população em geral (por exemplo, aos bons serviços de moradia). Afinal, a desordem urbana e as carências sociais são necessárias para justificar a ativação do circuito imobiliário. Esse circuito de capital é requisitado recorrentemente pelo poder público para resolver parte dos problemas, embora seja sua própria lógica que os recria através da forma que controla o mercado de terras.
Ademais, as desvalorizações e destruição de capitais imobilizados em certas parcelas do território não são casuais, e são necessárias para ativos serem absorvidos de forma mais lucrativa no seio da concorrência intercapitalista. A melhor forma de compreender isso é observar que muitos vazios urbanos, enquanto uma reserva de terra para hipervalorização futura, já estão loteados e se transformam em um ativo nobre (inclusive cotados acima da inflação) mesmo que não tenham nenhum valor de uso disponibilizado.
Contraditoriamente, a urbanização ao gerar maior oferta de terras utilizáveis reproduz sua escassez relativa, ampliando a heterogeneidade estrutural em uma economia nacional. Isso porque a urbanização fica subordinada a uma forma específica de concorrência baseada em uma demanda especulativa que determina o comportamento financeirizado do preço da terra. É essa concorrência que dá conteúdo econômico à propriedade privada da terra, permite a extração de renda de monopólio e mantém o preço com uma rigidez à queda.
Rangel (2004a) discutiu corretamente a problemática fundiária ao reconhecer que se trata de uma questão financeira associada à sua forma de capitalização. Esse processo torna indissociável a valorização fundiária da imobiliária (logo, incluindo o resultado de inversões em benfeitorias), sua fase construtiva exige pequena parcela de capital constante e recupera sua liquidez a cada rotação da produção, e faz do título imobiliário um ativo mobiliário (como as obrigações e ações) que é negociado segundo sua expectativa de valorização futura.
Isso significa que o cerne do problema não é simplesmente uma questão jurídica que limita sua redistribuição nos marcos do direito à propriedade privada. Rangel (2004b) faz questão de alertar que uma política de desapropriações e compra pelo Estado com esse fim poderia ter como efeito perverso a redução da oferta e elevar seu preço. Em sua interpretação, o fundamental é quebrar a expectativa de valorização no mercado de terras, surgindo uma tendência à queda de seu preço e à ampliação da oferta que levariam a um processo redistributivo mais sustentado.
Enquanto questão financeira, a problemática fundiária não se resume a uma discussão ricardiana de custo de produção. Afinal, ela não é simplesmente uma restrição à “eficiência marginal do capital” diante de condições diferenciadas de produção em cada terreno e barreiras à entrada que impedem a perfeita mobilidade do capital. Inversamente, a especulação urbana é um resultado necessário de um padrão de acumulação sob o comando de capitais mercantis urbanos que articulam proprietários de terra, incorporadores imobiliários, construtoras/empreiteiras, agências financiadoras e órgãos governamentais.
Lessa (1985) levantou duas hipóteses sobre o processo histórico de urbanização brasileira: 1) grande parte das cidades pôde crescer sem ser um polo e, logo, seu dinamismo não foi derivado necessariamente da produção de regiões tributárias; 2) apesar da importância da industrialização para se compreender as bases do desenvolvimento nacional, não é a industrialização que também explica os processos de expansão e valorização urbanas na maioria das regiões.
Diante disso, a urbanização brasileira vem se associando principalmente à multiplicação do valor da terra de forma ativa e intencional, enquanto um desaguadouro sistemático dos excedentes econômicos que não se voltam para o investimento produtivo e encontram rentabilidade superior em operações eminentemente mercantis. Especificamente, o cerne dessa lógica de valorização não é a fase de construção (apesar de grande empregadora de mão de obra de baixa renumeração), e sim a operação quase invisível de loteamento. Isso é que revela sua natureza rentista-patrimonialista.
O circuito imobiliário não possui um mero caráter complementar, ao contrário, é autônomo e desempenha um papel de comando na evolução do capitalismo no Brasil. Sua importância decisiva se deve à forma como oferece resposta aos problemas de realização e da reprodução ampliada do capital. Quanto ao problema da realização, ele garante rentabilidade adequada ao se configurar como o principal determinante do emprego e da renda urbana, inclusive para algumas indústrias tradicionais e serviços básicos. Quanto ao problema da reprodução, ele garante a formação de novo capital. Isso é possível ao se configurar em uma das principais fronteiras de valorização para massas de capitais sobrantes e não reinvestidos em circuitos produtivos modernos (o que fica mais explícito com a atual desindustrialização nacional).
A problemática fundiária não deve ser encarada como um “efeito colateral” de um processo acelerado de modernização econômica nacional, capaz de ser resolvido plenamente por ações mitigadoras locais que reorientem fluxos demográficos e eliminem vazios urbanos (mesmo exigindo respeito à função social da propriedade prevista na Constituição brasileira). Isso porque é o sentido da urbanização capitalista que recria a questão em escala territorial ampliada de acordo com os limites do padrão de acumulação geral.
Por essa razão, a solução para o problema não se resume a uma reforma urbana. Criar obstáculos e reprimir a demanda especulativa por terras teria como consequência provável a fuga de capitais do território, acarretando uma onda de desvalorizações em um cenário de destruição não criativa. Apesar de reproduzir o atraso, essa lógica é determinante também do dinamismo de uma série de atividades fundamentais em escala local e regional que podem desaparecer.
Contudo, uma crise urbana nunca será a crise do sistema capitalista, reconhecendo-se que existem ainda abertas outras órbitas permissivas de valorização. Nesse sentido, Lessa (1985) apontou que a solução exigiria combater todas as formas rentistas-patrimonialistas em escala nacional. Da mesma forma, Rangel (2004a) defendeu que a demanda especulativa por terra tenderia a refluir à medida que novos campos de investimento produtivos estivessem organizados junto a mecanismos internos de intermediação financeiras compatíveis. Isso poderia enfraquecer o poder dos grandes capitais mercantis (como latifundiários e grandes arrendatários urbanos) e, assim, superar sua condição de hegemonia a partir de transições no padrão de acumulação geral.
Inversamente, o período recente confirma que essa hegemonia não só se manteve como também se aprofundou, confirmando a preferência da maioria dos donos de riqueza no Brasil sob a forma de “bens de raiz”. Isso revela a complexidade da revolução burguesa brasileira e a forma como se desenvolveram de forma incompleta os mercados fundadores das relações sociais de produção capitalista, como o mercado de terras. Por um lado, manteve-se um caráter conservador que trava a valorização conjunta dos capitais, o que impede a ampla formação de conglomerados nacionais a partir de estruturas produtivas modernas. Por outro, salta-se para uma forma avançada de capitalismo, o capitalismo financeiro, mas sem uma industrialização madura e sob franca regressão mercantil, logo, estando associada à abertura de fronteiras de acumulação primitiva e que aprofundam a apropriação privada das políticas públicas.
Sob uma gestão pública empresarial, o espaço urbano vem se tornando a base do poder de classe enquanto uma unidade de negócios que concilia patrimônios imobiliários e mobiliários. Portanto, qualquer projeto nacional é negado diante das medidas de desregulamentação propícias ao uso capitalista do solo atrelado à lógica dos mercados financeiros globalizados. Além disso, as demandas sociais ficam subordinadas, e, no limite, reprimidas, para não atrapalharem o bom andamento dos projetos que sustentam focos de hipervalorização fundiária. Nesse sentido, torna-se clara a importância de sediar grandes eventos internacionais e assumir pesados investimentos em segurança e ordem pública (o que inclui militarização de comunidades populares). Respectivamente, essas medidas asseguram ao mercado uma oferta de ativos com atributos únicos e não reprodutíveis junto a uma imagem de ambiente seguro para aplicações financeiras.
Segundo Harvey (2013, p. 27), “uma política que se esquiva das principais contradições só consegue tratar dos sintomas”. É preciso ter claro como, na atualidade, acentua-se o caráter contraditório da urbanização capitalista, tornando-se um fator potencializador de crises socioeconômicas ao internalizar práticas parasitárias, consequentemente improdutivas. Em particular, há o desinteresse pelo território como patrimônio coletivo e base da soberania econômica. Isso se explicita no Brasil, uma economia periférica que sofre uma grave desindustrialização e possui um projeto nacional ainda interrompido.
* Bruno Leonardo Barth Sobral é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ e doutor pelo Instituto de Economia da Unicamp. Autor do livro: Metrópole do Rio e Projeto Nacional pela Editora Garamond (2013)
Bibliografia
HARVEY, David. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
LESSA, Carlos. A identidade e a autoestima nacional dependem da propriedade imobiliária individualizada. In: Jornal dos Economistas, Rio de Janeiro, n. 254, 2010, p. 3-4.
_______. Acumulação oligárquica e formação das metrópoles. In: Pensamiento Iberoamericano, Madrid, n. 7, 1985, p. 214-216.
POLANYI, Karl. A grande transformação. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
RANGEL, Ignácio. A questão agrária e o ciclo longo. In: _______. Questão agrária, industrialização e crise urbana no Brasil. Porto Alegre (RS): Editora da UFRGS, 2004a, p. 195-210.
_______. A questão da terra. In: _______. Questão agrária, industrialização e crise urbana no Brasil. Porto Alegre (RS): Editora da UFRGS, 2004b, p. 211-220.