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Edição 130 > Cidades incompletas
Cidades incompletas
Em busca de cidades inclusivas e integradas (na contramão da lógica capitalista) - com um ordenamento territorial social e ambientalmente justo - é preciso resolver pontos fundamentais como o fato de que o planejamento deveria ser uma questão de Estado e não de governos

A cidade - palavra originária do latim civitas/ atis - é o locus privilegiado da vida social que produz um modo de vida que se constrói em espaços cada vez mais concretados e desumanizados. Para entendê-la é preciso estudos multidisciplinares que buscam, entre outros objetivos, propor cidades mais solidárias. Devido às constantes transformações das cidades mudaram-se conceitos, acrescentaram-se adjetivos, mas a palavra em si se manteve por todos esses séculos desde a Antiguidade.
Em contraponto ao campo, o urbano - também do latim ubs/ urbis -, entendido mais como fenômeno e não como objeto, seria a qualidade de um tipo de cidade, caracterizando-a por sua dimensão, população, formas e funções.
Em linhas gerais, para se ter uma referência, foi mediante as revoluções técnicas ocorridas nos séculos passados, que proporcionaram amplo desenvolvimento das cidades e, após a Primeira Revolução Industrial (1760-1840), forte processo de urbanização no mundo. Entretanto, o processo de urbanização se deu principalmente a partir dos anos 1940. Daí surge o termo metrópole (do grego mhtro¿-polij -cidade-mãe-, -capital-) (1), que para os dias atuais se refere a grandes cidades, algumas sendo relativamente as mais importantes para seus países, estado ou região.
A gênese das grandes cidades decorre da necessidade de agrupar contingentes de trabalhadores próximos das indústrias, num movimento denominado por Marx como processo de acumulação primitiva. Assim, o processo de urbanização está diretamente ligado à industrialização ocorrida no mundo. Em países desenvolvidos, esse processo se deu de modo mais lento por diversos fatores, inclusive teve crescimento retardado pela Segunda Guerra Mundial. Com isso, cidades da Europa tiveram baixo crescimento da população urbana. Enquanto na antiga União Soviética, mais especificamente em Leningrado e Moscou, observou-se o inverso, ou seja, alto crescimento da população urbana com taxas próximas às de cidades da América Latina, Ásia e África - numa média de 4,5% nos anos 1950, 1960 (2).
Interessante observar que na América Latina o alto crescimento populacional dos centros urbanos se deu principalmente pelo êxodo rural, causado por um desequilíbrio na economia, com maiores investimentos na indústria, por um lado, e, por outro, pela desvalorização da produção agrícola e má-distribuição de terras com concentração e formação de latifúndios, criando-se - como diz Santos (2008) - uma estrutura agrária repulsiva. Ao mesmo tempo, as cidades se tornaram atrativas devido à oferta de empregos proporcionada pelo desenvolvimento do meio técnico-científico e às possibilidades apresentadas nos novos espaços em expansão. Tais processos acabaram gerando a dicotomia campo x cidade: repulsão do campo e atração da cidade.
Remetendo a análise para o caso brasileiro o resultado demográfico desse processo de urbanização, principalmente no século XX, foi o inchaço de algumas cidades, principalmente no Sudeste, com um fluxo migratório tão denso e forte que marca o país, antes predominante rural passa a ser urbano, gerando inversão nos dados demográficos. O movimento migratório foi à época maior que a taxa de natalidade nos centros urbanos. Para se ter uma ideia a população urbana que era de 31,24% em 1940 cresceu de 5% a 10% em média/por década, até os anos 1990. Já nos anos 2000 a taxa de urbanização reduziu a 3% em média/por década. Último senso do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que em 2010 a população urbana no Brasil era de 84,36%.
Em meio a esse processo de urbanização no Brasil, a cidade que mais cresceu foi São Paulo. Desde o estado de São Paulo à sua capital foram favorecidos pela existência de redes de transportes já bem desenvolvidas para a época, servindo de atrativo para a alta industrialização e consequente urbanização, cujo marco se deu com relevância a partir da década de 1970. Tal processo expansionista causou uma explosão de crescimento desordenado da metrópole paulistana, recebendo migrações do interior do Brasil e de outros países. A capital cresceu de tal modo que varia sua colocação, mas permanece há décadas entre as primeiras 10 maiores cidades do mundo em área e população.
Milton Santos trata da fragilidade das cidades menos estruturadas em resistir aos novos fatores de transformação, afirmando que -O crescimento da população urbana é muito mais nítido e acelerado nos países subdesenvolvidos que nos países desenvolvidos- (SANTOS, 2008).
Tais considerações são importantes com o propósito de se contextualizar o processo de urbanização mundial e compreender fatores determinantes no acelerado e desordenado processo de crescimento, principalmente, das grandes cidades brasileiras.
Cidade formal X cidade informal
O crescimento desordenado das cidades é quase sinônimo de urbanização no Brasil, causou diversos conflitos e disputas pelo uso e propriedade dos espaços e, além de tudo, é fortalecido pela especulação imobiliária - que supervaloriza áreas e imóveis, inviabilizando o acesso e permanência, residência, de grande parte dos trabalhadores sem recursos para os altos valores da cidade formal, sendo, assim, expulsos para as margens da metrópole em sua maioria - outra parte de trabalhadores (ou não) acaba margeando avenidas ou sob viadutos da metrópole.
Fruto do desenvolvimento de uma racionalidade econômica e técnico-científica nota-se uma necessidade de crescimento urgente numa dinâmica espaço-temporal acelerada, característica do período contemporâneo (SANTOS, 2008). Assim, a necessidade de ampliação de redes de conexão e rápida mobilidade é uma questão de primeira ordem; todavia, para se alcançar a fluidez desejada, é preciso mudar a lógica da exclusão social, aproximando empregos e moradias.
Fato é que com a urbanização desenfreada, com explosão demográfica, são criadas mais e mais demandas de moradia, infraestrutura, acessibilidade etc., gerando problemas diversos devido ao despreparo dos municípios frente a tais necessidades surgidas. Resultado disso é o desdobramento de um processo em paralelo à urbanização: a favelização - que se deu fortemente a partir dos anos 1980.
A favelização se dá essencialmente nas áreas periféricas da metrópole, onde se observa um crescimento exponencial da população que constrói informalmente seus espaços, suas moradias, comércio, ruas etc., e se configuram, assim, na chamada cidade informal e/ou ilegal, que se desenvolve sem apoio do Estado, sem infraestrutura, acarretando graves problemas ambientais e de saneamento, entre outros, proporcionando baixa qualidade de vida à maioria da população (3). Em muitos casos a expansão das áreas periféricas é tão extensa que acaba se ligando a metrópole às cidades vizinhas, formando o mosaico da própria região metropolitana.
Como ainda não se alcançou - mesmo com muitos esforços legais e práticos - um planejamento realmente integrado e inclusivo nas grandes metrópoles, o que comumente ocorre é certo padrão no modo de -fazer cidade-, com uma metropolização desigual e caótica, consolidando a criação de espaços duais: centro X periferia.
Nas áreas centrais, na cidade formal e/ou legal, há uma modernização constante devido à concentração de recursos num espaço já privilegiado por farta infraestrutura, com integral acessibilidade. Essa modernização também se dá sob outro aspecto, o da revitalização do centro, demolindo alguns prédios/imóveis, construindo novos ou reestruturando e dando novos usos a outros. Fato é que se oneram a cada dia mais a vida e o consumo nesses espaços, tornando-os inacessíveis à maioria da população.
Outra esfera de problemas ocorridos nas cidades é a ambiental. As situações mais graves ocorrem nas áreas periféricas, na cidade informal, onde há uma precariedade das condições de vida urbana, gerando problemas socioambientais e situações de risco por ocuparem beira de córregos, encostas íngremes, por exemplo - o que afeta tanto o espaço físico quanto a saúde pública. A soma desses fatores tem como consequência degradações ambientais e muitas vezes desastres sociais (e mortes) causadas por enchentes ou deslizamentos de terra nas encostas.
Ademais, como afirma Santos (2008): -É inegável que o desenvolvimento tecnológico (entre outros) provoca mudanças no ritmo da relação sociedade-natureza. Novas escalas espaço-temporais e também novas representações são construídas a partir desta aceleração pela sociedade em seu cotidiano-.
Torna-se, então, questão de ordem a incorporação da cidade informal à cidade propriamente dita não só para atender à função social urbana como também para a requalificação de áreas degradadas da ordem dos interesses difusos (ambientais) - aqueles que não são nem públicos nem privados, mas de interesse e responsabilidade de todos. E aí ocorre um novo conflito: entre a proteção ambiental e o direito social de acesso a uma moradia. Há necessidade urgente de programas de reconstrução das periferias, concomitante à proteção ambiental, que compreendam a inclusão econômica e social e atendam às demais necessidades das populações residentes nessas áreas.
Em busca de uma cidade completa
Devido a uma luta de anos - com papel fundamental dos movimentos sociais - em julho de 2001 foi aprovada e sancionada a Lei 10.257, o Estatuto da Cidade, que estabelece diretrizes gerais da Política Urbana do país - regulamentada nos capítulos 182 e 183 da Constituição de 1988. Mesmo que tardiamente, de certa forma, visto a urbanização caótica já estar desenvolvida, o Estatuto tem importante papel na ordenação do território visando ao cumprimento das funções sociais da cidade e à garantia de bem-estar de seus habitantes.
O Estatuto dispõe e orienta uma gestão democrática com participação da comunidade no desenvolvimento urbano, além dos estudos multidisciplinares executados por especialistas na questão urbana. A Lei prevê a ordenação do território, controle no uso do solo e o desfavelamento. Elenca de modo geral os instrumentos da política de desenvolvimento urbano, dispondo sobre o parcelamento, a edificação e a utilização compulsórias, o direito de preempção, o de superfície e de usucapião especial coletivo (MUKAI, 2001).
O debate sobre o Plano Diretor Estratégico de São Paulo
Na ordem do dia está em ampla contenda a ordenação territorial da cidade de São Paulo na revisão do Plano Diretor do município. Assim, São Paulo está fazendo o necessário e obrigatório, segundo o Estatuto da Cidade, enfrentamento no planejamento urbano - intrínseco ao Plano Diretor. Foi encaminhado à Câmara Municipal pela Prefeitura, em 26 de setembro de 2013, o Projeto de Lei de Revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE) - PL 688/13, que depois segue para o Legislativo para dar continuidade à revisão, conduzindo o processo final de participação coletiva.
A revisão do PDE objetiva o estabelecimento de um novo modelo de desenvolvimento urbano diretamente ligado ao enfrentamento das expressivas desigualdades socioterritoriais presentes na cidade de São Paulo, conforme descrito nos documentos do site da Prefeitura (4).
Entre as discussões do PDE há propostas de reorganização do crescimento vertical da cidade, onde em bairros já verticalizados, como Pompeia e Moema, por exemplo, e com pouca oferta de transporte público, só serão permitidos edifícios com até oito andares. Já em áreas onde serão construídos novos corredores de ônibus - segundo o projeto de 155 quilômetros até 2016 - serão permitidos prédios com até 42 metros de altura às margens das grandes avenidas.
O projeto para o novo PDE de São Paulo visa ao aumento em 20% de terrenos destinados às -habitações de interesse social- (voltadas às famílias que recebem até seis salários). Mas há uma grande polêmica, gerando manifestações de sem-teto, com relação à construção de moradias populares (Cohab e Minha Casa Minha Vida) no entorno da Represa Billings, que é área de proteção permanente e tem hoje considerável número de invasões. Se a proposta do prefeito Fernando Haddad for aprovada essas construções serão viabilizadas.
Em busca de cidades realmente inclusivas e com ordenamento territorial justo, social e ambientalmente, é necessário que o planejamento urbano vise ao estudo integrado da região metropolitana, considerando seu entorno e as cidades vizinhas que contribuem numa relação sob aspectos positivos e negativos à metrópole. E uma questão fundamental é a compreensão de que o planejamento deve ser de ordem do Estado e não de planos de governo, pois necessitam de planos de longo e médio prazo que independem de uma política dessa ou daquela administração governamental. Também não se pode esquecer que a desordem no desenvolvimento das cidades mundiais segue a lógica capitalista do laissez faire, laissez passer (deixai fazer, deixai passar) que não visa ao bem-estar social da maioria da população, mas ao contrário, privilegia uma minoria e exclui a grande parte dos trabalhadores.
*Ana Paula Bueno é urbanista e da redação de Princípios
Notas
(1) Metrópole, do grego metropolis, refere-se às cidades centrais de áreas urbanas formadas por cidades ligadas entre si fisicamente (conurbadas). E pólis (cidade-estado) era o modelo das antigas cidades gregas, importantes no desenvolvimento daquela civilização. Na Grécia Antiga a pólis era um pequeno território localizado geograficamente no ponto mais alto da região, com características de uma cidade.
(2) Os dados apresentados foram retirados do livro Manual de geografia urbana, de Milton Santos, 3ª ed., 2008. Por não constarem fontes de informação, como instituição ou órgão de pesquisa, deduz-se com sendo resultados de pesquisas do autor.
(3) Cidade formal/legal e cidade informal/ilegal são termos cunhados em Grostein, 2001.
(4) O site da Prefeitura também apresenta um sucinto histórico dos Planos anteriores e relata: -O Município de São Paulo possui um Plano Diretor Estratégico aprovado em 2002 (Lei 13.430/02). Ele estava programado para ser revisto em 2006, mas a proposta de revisão não foi concluída. Por isso os trabalhos foram retomados através da realização de um processo amplo e democrático de discussão que resultou no Projeto de Lei de revisão do PDE enviado à Câmara-.
Quanto as etapas do PDE: -Essa revisão ocorreu em 4 (quatro) etapas de trabalho: (I) avaliação temática do plano vigente; (II) oficinas públicas para levantamento de propostas, realizadas em todas as subprefeituras; (III) sistematização das propostas recebidas e (IV) devolutiva e discussões públicas da minuta do projeto de lei. Acesse as ferramentas digitais que auxiliaram no processo participativo-.
Referências bibliográficas
GROSTEIN, Marta Dora. Metrópole e expansão urbana: a persistência de processos -insustentáveis-. São Paulo em Perspectiva, São Paulo: v. 15, n. 1, p. 13-19, jan./ mar.2001.
LENCIONI, Sandra.Observações sobre o conceito de cidade e urbano. In GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 24, pp. 109 - 123, 2008.
MUKAI, Toshio. O Estatuto da Cidade: anotações à Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. São Paulo: Saraiva, 2001.
PREFEITURA DE SÃO PAULO, Desenvolvimento Urbano: http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/novo-plano-diretor-estrategico/