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Edição 112 > Reforma política: nova tentativa traz riscos à liberdade partidária
Reforma política: nova tentativa traz riscos à liberdade partidária
Uma reforma política só tem sentido se tiver como objetivo ampliar a liberdade de escolha do eleitor e a de ação dos partidos. Ampliar essas duas liberdades, garantidas na Constituição, significa radicalizar a democracia, abrindo as portas da política para todos os setores e garantindo, acima de tudo, a representação das minorias

Uma reforma política só tem sentido se tiver como objetivo ampliar a liberdade de escolha do eleitor e a de ação dos partidos. Ampliar essas duas liberdades, garantidas na Constituição, significa radicalizar a democracia, abrindo as portas da política para todos os setores e garantindo, acima de tudo, a representação das minorias
No início da nova legislatura do Congresso Nacional, a chamada reforma política encontra-se mais uma vez no topo da agenda legislativa. O tema vem se repetindo a cada ano seguinte das eleições gerais, desde 2003. A explicação mais óbvia para essa recorrência é a realização das eleições sempre realçar as deficiências de nosso sistema eleitoral e partidário, tornando urgentes as mudanças que cada um dos setores da sociedade e dos partidos políticos considera necessárias.
A reforma pretende alterar muitas disposições que mudam de forma mais ou menos radical o sistema eleitoral e o partidário. Como isso afetará fortemente o resultado das eleições seguintes, é natural que haja muita polêmica e que as opiniões se dividam entre os partidos e até mesmo dentro de cada um deles. Neste artigo trataremos do tema, mas restringindo seu escopo ao processo no âmbito da Câmara dos Deputados.
1- Por que a reforma política agora-
A nosso ver, independente das demandas da sociedade, há duas motivações estruturantes que explicam de forma mais concreta o agendamento dessa reforma e que explicam também a razão do fracasso das tentativas até agora realizadas.
A primeira dessas motivações é o esforço dos grandes partidos do Congresso em manter ou ampliar seu predomínio, tentando exercer um virtual monopólio dos votos dos cidadãos. Para tanto, esses partidos, mesmo com diferentes orientações ideológicas, buscam adotar regras que inviabilizem o crescimento dos demais partidos - pequenos e médios - até mesmo ameaçando sua existência. Essa motivação vem forçando os grandes partidos a apoiarem o início da reforma, mas, posteriormente, ela é frustrada pela ausência de consenso entre esses próprios partidos ou porque o rumo das mudanças entra em choque com os objetivos pretendidos, fazendo-os abortar o processo.
A segunda motivação estruturante é o desejo das classes dominantes em restringir a liberdade de escolha do voto dos eleitores para não perder o controle que exercem sobre os poderes legislativos, seja pelo financiamento das campanhas seja pela instrumentação da grande imprensa. O objetivo dessa motivação é tornar mais fácil constituir maiorias parlamentares favoráveis ou impedir a eventual formação de uma nova maioria que lhes seja hostil, e suas propostas buscam elevar o número de votos necessários a eleger um parlamentar e também a restringir as opções partidárias disponíveis ao eleitor.
Esse objetivo tende a coincidir com os dos grandes partidos, mas, da mesma forma, até agora não conseguiu gerar um consenso entre eles, frustrando a reforma.
Por essas razões, o objetivo inicial de realizar uma grande reforma termina se resumindo a aprovar alguns poucos pontos específicos, em geral sobre o processo eleitoral como propaganda, prestação de contas e pesquisa eleitoral.
Estas duas grandes motivações estruturantes são, na verdade, contra a ampliação do jogo democrático. E os objetivos de ambas explicam também por que o esforço das tentativas de reformar o sistema eleitoral e partidário sempre se concentra na mudança das regras das eleições proporcionais. Sempre são secundarizadas a questão das eleições dos chefes de poderes executivos ou as relações assimétricas entre os poderes executivo, legislativo e judiciário. É notável que a única reforma dedicada aos mandatos de chefes de poderes executivos - a permissão para um segundo mandado, em 1997 - foi feita para dar a esses mais poderes e não para restringi-los, o que aumentou ainda mais a assimetria entre os poderes.
2- As propostas em curso
Na reforma política de agora, como nas anteriores, o centro das atenções se volta para o sistema eleitoral proporcional, ou seja, como se definem os candidatos aos parlamentos e como o povo deve neles votar. Há 40 anos o sistema eleitoral proporcional se dá por meio de listas partidárias em que os candidatos são ordenados pelo voto dos eleitores, mas onde o número de vagas alcançadas é determinado pelo total de votos da lista acrescidos dos votos dados a cada legenda (dita lista -aberta- ou pós-ordenada).
A lista pós-ordenada é um sistema que tem várias vantagens, mantendo o partido como peça fundamental do processo, mas dando liberdade ao eleitor de escolher diretamente um candidato que lhe seja mais do agrado. Mas também tem desvantagens evidentes: 1) o esforço de cada candidato por uma posição melhor na lista se opõe ao de seus próprios correligionários, fragilizando a coesão interna; 2) o financiamento é principalmente privado e se sua captação se dá de forma individual, o que é difícil de controlar, dando oportunidade para o -caixa dois- e para a influência decisiva do poder econômico; e 3) a campanha de um grande número de candidatos, buscando um melhor posicionamento na lista, torna a propaganda caótica e confusa, favorecendo também aqueles candidatos -midiáticos-, geralmente neófitos na política e desvinculados de qualquer causa ou ideário.
Há um consenso de que esse sistema deve ser mudado ou pelo menos aperfeiçoado. A lista pósordenada contém uma contradição intrínseca entre o direito que o partido político pode exercer sobre os mandatos dos parlamentares e a liberdade que estes parlamentares têm para exercê-los. Essa contradição ficou ainda mais aguda a partir da decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF) de que o mandato pertence ao partido, e deve ser exercido conforme seu programa e diretrizes, e não ao parlamentar que o exerce. O fato de o mandato ser do partido cria uma forte contradição com o mecanismo de eleição individual da lista pós-ordenada e com a manutenção da captação de financiamento da campanha eleitoral de cada candidato. Esse mecanismo cria uma tendência natural a opor os interesses dos mandatos individuais aos interesses do partido ou de sua cúpula dirigente, o que estressa a unidade partidária.
Essa contradição acaba criando conflitos internos gerando dois tipos de problemas indesejáveis às instituições políticas: a artificialização de muitas das legendas, pela proliferação de grupos internos; e a indesejada judicialização do exercício da política, com os interesses em choque indo buscar na Justiça aquilo que as regras não permitem que se resolva pela própria prática da política.
Essas contradições só podem ser resolvidas se a ordenação da lista e a captação do financiamento eleitoral passarem a ser também do partido político, o detentor do mandato.
Até a tentativa de reforma de 2007, havia três opções principais para substituir o atual sistema de lista pós-ordenada: a lista pré-ordenada, quando o voto se dá em uma lista pré-ordenada pelo partido; o de voto distrital, quando se divide cada estado ou município pelo número de vagas que são eleitas em voto uninominal; e o distrital misto, onde uma parte se elege em lista pré-ordenada e outra diretamente pelo distrito. Agora foi acrescentada à pauta a opção do chamado -distritão-, uma variação do sistema distrital, onde o próprio estado ou município passa a ser o distrito, elegendo-se deputados ou vereadores, conforme o caso os candidatos mais votados, independente de sua legenda.
O voto distrital ou distrital misto sempre foi a opção dos setores mais conservadores do Congresso, em especial o distrital misto que tem como principal defensor o PSDB. Os dois sistemas baseados em distritos são claramente menos democráticos, eles concedem vantagem às maiorias, prejudicando a representação de minorias, pois o candidato que alcança a maioria dos votos ganha o direito exclusivo da representação de todo o eleitorado. Porém, ambos os sistemas acabaram se inviabilizando porque a divisão do país, e de cada município, em distritos tornou-se uma tarefa impossível, já que o desenho de cada uma dessas novas circunscrições indicaria, na maior parte das vezes, aquele que ali seria eleito. O que afasta dessa opção de sistema até mesmo a maior parte dos filiados de partidos que o apoiam. O sistema distrital só pode existir quando existe uma determinação histórica que delineia um distrito como circunscrição, o que não é o caso do Brasil. Desse modo, o distrito eleitoral no nosso país, puro ou misto, não passará de um artificialismo casuístico, tornando-o inviável como opção.
Com a exclusão dos dois sistemas, as opções de novos sistemas eleitorais se resumem a dois, opondo agora a lista pré-ordenada ao -distritão- ou a uma variação deste. Uma terceira opção - fora dessa polaridade e de objetivo menos ambiciosos, porém mais realistas - seria manter o atual sistema da lista pósordenada, mas aperfeiçoando-o, modificando, por exemplo, o regime de financiamento para a modalidade de exclusivamente público.
A lista pré-ordenada é claramente mais democrática do que o -distritão-, já que o grande número de votos exigido para se conquistar um mandato representativo no segundo beneficia os interesses majoritários, geralmente financiados pelo poder econômico, prejudicando fortemente a representação das minorias. O -distritão- também -fulaniza- o voto e prejudica a coesão interna dos partidos, que passarão a ser um ajuntamento de projetos individuais de poder. Esses defeitos também repercutirão nas casas legislativas que terão uma grande dificuldade de se estruturar internamente em lideranças e de formar maiorias estáveis.
Outra questão que vem se apresentando como objetivo dos grandes partidos é o fim das coligações eleitorais nas eleições proporcionais. Este é um dos raros pontos da reforma que parece ter o consenso dos líderes dos três maiores partidos. Essa questão é relevante porque caso não se chegue a um consenso entre as opções de sistema eleitoral - o que é provável - é possível que os esforços dos grandes partidos se voltem para esse ponto em particular, que prejudica todos os demais partidos, em especial os pequenos.
O que se pretende com a eliminação da coligação - constrangendo a liberdade da ação partidária - é tentar congelar a situação atual dos grandes partidos, impedindo os demais partidos de crescer. Isso é inaceitável. Caso não existissem coligações no passado, o PT, por exemplo, jamais teria conseguido se transformar no grande partido de hoje. E as demais forças políticas perderão suas esperanças de crescer e se transformarem em opções de poder, o que vale tanto para as partidos de grande tradição política e histórica, como o PCdoB e outros, como também para aqueles que surgiram mais recentemente, como é o caso do Partido Verde.
3- Nossas propostas
No nosso entender, uma reforma política só tem sentido se tiver como objetivo ampliar a liberdade de escolha do eleitor e a de ação dos partidos políticos. Ampliar essas duas liberdades, garantidas na Constituição, significa: a) radicalizar a democracia, abrindo as portas da política para todos os setores e garantindo, acima de tudo, a representação das minorias e a igualdade de oportunidades para todos os partidos, oferecendo mais opções ao livre voto dos eleitores; e b) fortalecer os partidos como atores fundamentais da democracia e da disputa política, garantindo-lhes maior liberdade de ação para representar e compor maiorias.
Em primeiro lugar, o PCdoB vem sempre defendendo como sistema eleitoral o voto proporcional em lista pré-ordenada. Nós entendemos ser esse sistema o que melhor permite dar representatividade a todas as forças políticas, fortalecer os partidos e oferecer ao eleitor um mais amplo leque de propostas políticas e ideológicas.
O fato de a lista ser pré-ordenada nas convenções partidárias faz com que esse sistema seja denominado inadequadamente de -lista fechada-. Na verdade, a lista pré-ordenada é muito mais transparente para o eleitor do que a atual lista pós-ordenada, dita -aberta-. A lista pós-ordenada, onde os candidatos fazem campanhas individuais, é menos transparente porque é difícil para o eleitor identificar todos os demais candidatos que a compõem e que, de toda forma, se beneficiarão de seu voto. Ao contrário, a lista pré-ordenada será sempre apresentada ao eleitor na sua inteireza, de forma clara, pois é a lista que deve conquistar o voto e não apenas um de seus candidatos. Isso propiciará ao eleitor muito mais informação sobre as consequências de seu voto do que a lista atual. A lista pré-ordenada é a lista transparente.
Além disso, a lista pré-ordenada dará também mais condições ao eleitor de fiscalizar o mandato concedido por seu voto. Ao contrário de agora, quando é quase impossível ao cidadão ter informação sobre os votos individuais de seu deputado, na lista pré-ordenada, o eleitor precisa apenas acompanhar os votos da sua bancada partidária para aferir a fidelidade de seu representante ao voto que lhe foi concedido.
Em segundo lugar, defendemos o financiamen- to público das campanhas. Ele se faz imprescindível para garantir uma igualdade mínima de oportunidade para todas as propostas. Só ele permite que a diversidade partidária e a representação das minorias sejam de fato disponíveis à escolha dos eleitores, evitando a distorção da assimetria das condições concorrenciais trazida pelo poder econômico por meio do financiamento privado. O financiamento público também é uma solução adequada para se eliminar a corrupção no processo eleitoral e no exercício dos mandatos eletivos. Só ele permite também de forma fácil e barata fiscalizar as transgressões relacionadas à captação de recursos privados.
A lista pré-ordenada é, sem dúvida, a forma mais adequada à existência do financiamento público. Entretanto, advogo que essa forma de financiamento também pode ser compatível com o sistema atual de lista pós-ordenada. Basta para isso que o partido político tenha mais responsabilidade na campanha, centralizando o seu financiamento mediante um fundo eleitoral, que funcione nos moldes do atual fundo partidário - também público -, cujo funcionamento é transparente e fiscalizado pela Justiça Eleitoral. Essa é uma condição que, como vimos, pode resolver a contradição do sistema atual, que opõe o mandato individual ao partido. Apesar dos problemas que a opção do financiamento público possa ter quando associado à lista aberta - devido à natural dispersão das candidaturas individuais -, é preciso insistir em que a reforma política promova uma solução que elimine ou pelo menos minimize os malefícios do financiamento privado e dê mais consistência à atual lista pós-ordenada.
Torna-se necessário, ao final, comentar a questão da coligação eleitoral. Vimos como a extinção do instrumento da coligação proporcional vem sendo um ponto de consenso entre os grandes partidos. É até possível, como comentamos, que o fim das coligações proporcionais venha a ser o único objetivo realmente concreto dessa reforma política, por parte dos grandes partidos e de outros grupos de interesses.
O PCdoB entende que o direito dos partidos de se unirem em coligação para a disputa eleitoral faz parte da garantia constitucional de livre ação partidária e não pode ser restringido.
O principal argumento esgrimido contra a coligação proporcional é que ela distorce a vontade do eleitor. A falta de informação sobre os membros da lista e sobre quais partidos estão nela coligados pode fazer com que seu voto termine por eleger um candidato de outro partido. É possível que esse fenômeno aconteça em algumas situações e com uma parte dos eleitores, mas não é a regra.
Em primeiro lugar, porque as coligações geram listas públicas, em que a informação sobre todos os partidos, e os seus candidatos, que as compõem é divulgada de forma obrigatória em todas as peças da propaganda eleitoral, permitindo ao eleitor médio a informação suficiente sobre as consequências de seu voto. A presumida desinformação do eleitor contida na crítica à coligação tem mais a ver com a visão elitista sobre a suposta -incapacidade- do eleitor do que com a realidade.
Em segundo lugar, seria o caso de perguntar aos críticos da coligação proporcional por que essa suposta desinformação do eleitor não a prejudicaria frente à coligação majoritária. Ao contrário da primeira, todos apoiam a existência de coligação para os majoritários, embora ao eleger um governador ou presidente, por exemplo, o eleitor está levando ao poder todos os partidos coligados e não apenas o do titular. Sabe-se, em consequência, que os partidos coligados indicarão nomes para os órgãos executivos. Porém, ao contrário da coligação proporcional, onde a lista de nomes de candidatos é pública, não há nenhuma informação ao eleitor da coligação majoritária sobre quais nomes serão indicados pelos partidos para compor o governo a ser eleito. No caso da coligação majoritária, de fato, a informação ao eleitor sobre todas as consequências de seu voto é zero! No entanto, essa coligação é considerada boa e desejável, mas a da proporcional, não. Deve ser extinta!
A ação partidária está sempre sujeita a contingências que determinam a necessidade de alianças para atingir os objetivos de cada força política. Para as eleições, o objetivo de alcançar um cargo de representação proporcional ou majoritária pode ser diferente na escala de poder, mas compartilha a mesma natureza. A vedação discricionária de um tipo de aliança não passa de um casuísmo que fere a liberdade constitucional da ação partidária. Ainda mais porque unir-se em coligação é um direito dos partidos, não uma obrigação.
A História tem nos ensinado que todos os movimentos vitoriosos resultaram sempre de uma coalizão de forças políticas. Obstar os instrumentos que permitem às forças políticas se unirem, juntando forças, para atingir objetivos maiores, impossíveis para as forças isoladas, será sempre um desserviço ao país.
Osmar Júnior é deputado federal (PCdoB-PI) e líder da bancada comunista na Câmara dos Deputados.