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Internacional

Edição 108 > Desafios e dilemas na Política Externa Brasileira

Desafios e dilemas na Política Externa Brasileira

Ronaldo Carmona
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O aumento significativo da projeção internacional do Brasil é uma das principais novidades do sistema internacional neste início da segunda década do século XXI. Aprofundar o curso deste protagonismo progressista – baseado no interesse nacional e no interesse da maioria dos países em desenvolvimento – ou retroceder, alinhando-se às posições dos países centrais em seus objetivos de prolongar a atual ordem internacional, são opções antagônicas apresentadas pelos dois principais projetos que disputam o governo nacional nas próximas eleições de outubro
 

A Declaração de Teerã – firmada em maio passado, entre Irã, Turquia e Brasil –, para além do resultado em si mesmo, positivo, teve fortes impactos na percepção acerca de mudanças em curso na atual ordem internacional. Diversos observadores e analistas do quadro internacional trataram a questão a partir dessa chave.

Afinal, embora não seja a primeira vez “que potências regionais afirmam posição contra os Estados principais”, o acordo trilateral “representa a tentativa mais ousada nesse sentido feita até hoje, especialmente pelo fato de dizer respeito a uma questão crítica, com implicações globais” (1).

Há quem vá além, chegando a defender que a partir desta iniciativa trilateral “entramos em uma dinâmica de equilíbrio de poder em que há quatro ou cinco poderes no mundo. O Brasil entrou no palco das grandes potências. E esse (a Declaração de Teerã) foi o primeiro exercício do País em uma questão central” (2). Exageros à parte – os Estados Unidos permanecem, de longe, o país com maior capacidade de intervir no sistema internacional para fazer valer seus interesses hegemônicos –, o comentário reflete algo real: a perda relativa de poder da principal potência global.

No semanário norte-americano Newsweek está na capa: Is this the future? (É este o futuro?), com os três líderes celebrando em Teerã. A matéria discute se há um “eixo” (axis) “Brazil-Turkey-Iran”, como “novas ameaças ao poder americano” (New threats to American power). O artigo é assinado por Fareed Zakaria, autor do best-seller O mundo pós-americano.

O fato é que o movimento turco-brasileiro no tabuleiro estratégico mundial pôs em xeque, de imediato, um dos principais temas contemporâneos da agenda de política externa dos Estados Unidos: a contenção do programa nuclear iraniano que, junto com as guerras no Afeganistão e no Iraque, é questão central para o Estado norte-americano, a partir do 11 de setembro de 2001. Não por acaso, a Declaração de Teerã gerou uma espécie de “curto-circuito” no Departamento de Estado, levando a senhora Clinton a uma reação agressiva no primeiro momento.

O ineditismo de três países em desenvolvimento, não pertencentes ao clube nuclear, tomarem iniciativa, sem pedir licença em tema global de natureza estratégica – antes de manejo exclusivo das grandes potências nuclearmente armadas –, acendeu um sinal amarelo entre as potências centrais. Como efeito imediato, viu-se a rápida reação do status quo e, certamente, se verá o aumento de reações a este protagonismo como marca importante do sistema internacional no próximo período.

Afinal, a Declaração de Teerã se junta a outros movimentos recentes que explicitam tensões ou diferenças de agendas entre o centro do sistema e potenciais polos de poder que vão se estabelecendo a partir da periferia.

Semanas antes da reunião de Teerã, em Brasília, quatro líderes de grandes países em desenvolvimento estiveram com Lula para duas reuniões de grande significado: a da coalizão BRIC, que reúne Brasil, Rússia, Índia e China, e a cúpula do IBAS, que articula Índia, Brasil e África do Sul. A rápida consolidação e a vitalidade demonstradas precocemente por essas novas alianças expõem, mais que nada, os limites de um anacrônico sistema de poder internacional, remanescente da guerra fria, conformado pelos cinco membros do Conselho de Segurança – não por acaso, as cinco potências com “permissão” para possuírem armas nucleares.

Nesse tema, aliás, durante o mês de maio, na Conferência de Revisão do Tratado de Não-proliferação de Armas Nucleares (TNP), se manifestou novamente a aguda tensão entre a agenda da não-proliferação – isto é, da contenção do alargamento do clube atômico, grande prioridade das grandes potências – e a agenda do desarmamento – isto é, efetivo fim das armas nucleares no mundo – prioridade para o Brasil e para a imensa maioria do mundo em desenvolvimento. O Brasil – recorde-se –, no Decreto assinado em 1997 no qual aderiu ao TNP, condicionou sua adesão ao efetivo progresso do desarmamento das potências nucleares – pelo que seu descumprimento pode ensejar, num futuro breve, até mesmo uma revisão da adesão brasileira.

Uma importante demonstração das alterações em curso na governança global se deu com o fato de que a própria gestão da crise econômica capitalista “precipitou a aceitação do G20 como instância substituta do G7 na coordenação da economia global”. O surgimento desta agrupação mais ampla no lugar do “clube dos ricos” (G7/G8) “foi, sem dúvida, uma das mais impressionantes transformações da ordem internacional dos últimos anos”, diz Rubens Ricupero (3), crítico da política externa brasileira. Trata-se aqui de tema fundamental para o interesse nacional: como tomamos parte de mecanismos que, no limite, podem acordar novas regulações que imponham constrangimentos à nossa soberania na promoção de políticas de desenvolvimento.

Também na questão climática, nos debates da COP-15, em Copenhagen, em dezembro passado, manifestaram-se sinais de uma transição de ordem internacional, quando uma aliança de grandes países em desenvolvimento, denominada BASIC (sigla para Brasil, África do Sul, Índia e China), impediu a imposição de um resultado de interesse específico do bloco dos países desenvolvidos.

O conjunto da obra mostra que o Brasil jogou grande papel nesta primeira década do novo século no sentido de buscar desconcentrar o poder no sistema internacional, base de seu interesse nacional e objetivo central de sua política externa: criar condições exógenas mais favoráveis ao desenvolvimento.

O ponto de partida que demonstrou a possibilidade de agrupações de países em desenvolvimento conterem a imposição de medidas contrárias aos seus interesses nacionais por parte dos países centrais talvez tenha se inaugurado, contemporaneamente, com o aparecimento do G20 comercial, ainda em 2003, em Cancun, por ocasião das negociações da Rodada de Doha da OMC. Naquela ocasião, impediu-se a imposição de nova rodada de liberalizações comerciais unilaterais “goela abaixo” dos países em desenvolvimento – como, aliás, havia acontecido na anterior Rodada Uruguai, finalizada em 1995.

Algumas razões do aumento do protagonismo brasileiro

A ascensão internacional do Brasil é um dado da realidade. Mesmo a corrente conservadora, a contragosto, é obrigada a reconhecê-la (4). A maior presença brasileira no mundo deriva de razões objetivas, da evolução do quadro internacional, e tendo em vista opções políticas e estratégicas tomadas.

O Brasil, na medida em que desenvolva suas capacidades e potencialidades, poderá expressar maior poder no cenário internacional, fruto de sua geografia, de sua demografia e de um crescente dinamismo econômico.

Temos o quinto território do mundo, com 8.515 km2: 7.491 km de litoral e 15.719 de fronteira com uma dezena de países – terceiro país com maior número de vizinhos. Temos a quinta população do mundo, com cerca de 192 milhões de habitantes. Nossa economia, após duas décadas e meia de retrocesso, volta a expandir-se. Com o oitavo maior PIB do mundo, tanto a preços correntes como por paridade de poder de compra, voltamos a diminuir a distância entre nossa economia e nossa geografia e demografia, projetando-se que, em alguns anos, chegaremos ao quinto posto na lista de maiores economia do mundo.

O aumento do protagonismo internacional do Brasil também resulta da evolução da correlação de forças em nível internacional. O próprio governo norte-americano tem reconhecido, à sua maneira, a diminuição de seu poder relativo (5). Esse enfraquecimento relativo de poder dos Estados Unidos e dos demais países centrais, aliás, é acentuado pela crise econômica capitalista, todavia em curso.

A projeção brasileira deriva também de uma opção política e estratégica do atual governo Lula, do aumento de sua presença internacional e da busca de conformar um polo sul-americano. O Brasil possui um enorme soft-power no mundo, a começar pelo exemplo de sua formação social miscigenada e acolhedora. Sua postura progressista e anti-hegemônica nos temas internacional também lhe confere autoridade e prestígio, sobretudo junto aos países em desenvolvimento. Absolutamente insuficientes, porém, são os meios para sustentar seu protagonismo diante de violentas reações que poderão ocorrer no futuro. Aumentar o hard-power, como propõe a Estratégia Nacional de Defesa, é essencial para seguir jogando papel progressista na ordem internacional.

A oposição conservadora à política externa de Lula

O aumento da projeção internacional do Brasil defronta-se com reações externas (6) e internas. No cenário político nacional, é alvo privilegiado da grande mídia, que não hesita em mobilizar um grupo de embaixadores aposentados – também conhecidos como embaixadores de pijamas, alcunhados pelo jornalista Mauro Santayana –, sempre a postos para uma entrevista ou um artigo crítico (7).

Essencialmente, podemos sistematizar as críticas conservadoras em torno de dois alvos principais: a política brasileira para a América Latina (ameaça bolivariana, Mercosul, Honduras, Cuba) e a “preocupação” com o aumento das diferenças entre Brasil e Estados Unidos em temas diversos da agenda regional e mundial (bases em Colômbia, Honduras, Cuba, Irã, questões climáticas, contenciosos comerciais e outros).

Segundo os conservadores, na América do Sul, praticamos uma diplomacia da generosidade, que seria contrária ao interesse nacional, pois se realizaria “sem contrapartida” de nossos vizinhos (8). Revelando visão de alcance curto, para os conservadores, o acordo de venda das refinarias da Petrobras na Bolívia, o pacote de apoio brasileiro ao Paraguai por conta do Tratado de Itaipu, e até mesmo os repasses ao Focem (Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul) seriam exemplos de generosidade “sem retorno” mercantil – forma como concebem “interesse nacional”.

O candidato da oposição, José Serra, tem encampado e até, no clima de campanha, radicalizado tais teses. Chega a defender que o Mercosul retroceda a uma simples área de livre comércio – fase anterior à atual, de união aduaneira incompleta –, pois para ele, o bloco é “uma barreira para o Brasil fazer acordos comerciais”, pelo que  “ficar carregando este Mercosul não faz sentido” (Valor, 20-04-2010). Quanto ao Mercosul, aliás, não se pode deixar de registrar a ferrenha oposição conservadora ao ingresso da Venezuela no bloco – aprovada no Senado Federal em dezembro passado após mais de um ano de intenso debate e ferrenha oposição ideológica da direita.

Mais recentemente, refletindo sua agenda antissul-americana, Serra tem se dedicado a atacar o governo da Bolívia, que seria o grande responsável pelo consumo de drogas nos grandes centros urbanos brasileiros.

Os ataques de Serra ao Mercosul, e mais amplamente à integração sul-americana, derivam de uma visão mercantilista primária, lente exclusiva pela qual parece enxergar a inserção internacional do Brasil. Propõe que a variável central de política externa brasileira seja a busca de acordos comerciais com países ricos, aparentemente, independentemente de seus custos nocivos à autonomia de desenvolvimento nacional, ao estilo Alca. Seus apoiadores, inclusive, chegam a lamentar o fim da Alca e propõem, sem meias palavras, “restabelecer relações prioritárias com os países desenvolvidos” (9).

Pensamos que o interesse nacional deve ser visto por outro ângulo, partindo dos interesses geopolíticos e estratégicos brasileiros. A base da inserção internacional do Brasil parte, numa progressão geográfica, do desafio de coesionar a América do Sul (via Mercosul e Unasul, instrumentos complementares, um mais econômico, outro mais político) e mais amplamente a América Latina (via instrumentos como a Celac, Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos).

A coesão sul e latino-americana deve ter base no estabelecimento de uma agenda de corte desenvolvimentista na região que busque, através da mobilização de sinergias e complementaridades, a construção de capacidades produtivas e em infraestrutura, capaz de gerar um novo ciclo de expansão da região. Deve-se eliminar a agenda de promoção de trocas comerciais desiguais, que aprofundam assimetrias e, assim, ressentimentos – característica dos anos 1990 –, substituindo-a por uma agenda de integração para o desenvolvimento, com ênfase na integração produtiva e na integração física da região.

Mas observe-se que mesmo no plano das trocas mercantis, o Mercosul apresenta vitalidade. Basta dizer que neste quesito “o comércio bilateral (entre Brasil e Argentina) cresceu de US$ 7 bilhões em 2002 para quase US$ 31 bilhões em 2008 (4,5 vezes em 6 anos!)” (10).

Outro alvo conservador tem sido o tema Honduras. Após um ano do golpe que depôs o presidente Zelaya, todavia não se lhe permite sua volta, permanece a ação de grupos paramilitares de ultradireita e o próprio presidente conservador Pepe Lobo tem denunciado riscos de novo golpe. Para os conservadores, o Brasil estaria isolado, a despeito de os três grandes países da América Latina – Brasil, México e Argentina – permanecerem firmes em não reconhecer o regime hondurenho enquanto não houver condições democráticas básicas naquele país.

A reação conservadora na questão do Irã

Basicamente três argumentos são repetidos exaustivamente quanto ao tema do Irã: primeiro, critica-se o Brasil por envolver-se em “assunto complexo” em “região distante”, sem aparente relação direta com o país, enquanto se acumulam “problemas” em nossa região; segundo, diz-se que a ação atende a “cálculos estratégicos” através dos quais se “chegou à conclusão de que é preciso ir contra os interesses dos Estados Unidos” (11), pelo que, estaria irremediavelmente comprometida a possibilidade de o Brasil obter assento no Conselho de Segurança da ONU; e, por fim, o terceiro argumento: o protagonismo brasileiro estaria rompendo uma “tradição diplomática” do país que, ao longo da história, se manteria basicamente inalterada.

Quanto ao primeiro tema, note-se que o papel de mediação exercido pelo Brasil quanto à questão iraniana tem a ver, antes de tudo, com seu próprio interesse: garantir a existência de condições internacionais favoráveis ao domínio de tecnologia para a produção de energia nuclear com fins pacíficos nos países em desenvolvimento. Diante de um contexto de mudança de matriz energética que o mundo verá no próximo período – e de ameaças, como se vê no caso do Irã, de crescentes restrições ao direito básico de domínio da tecnologia consagrado pelo TNP –, o Brasil mira também seu próprio interesse. Afinal, ele é um dos oito países do mundo a dominar o complexo ciclo nuclear completo e um dos poucos com base industrial para construção de reatores. Possui a 6ª reserva de urânio, tendo prospectado, em pleno século XXI, apenas 1/3 de seu território. Juntando tecnologia e reservas, só três países – Brasil, Estados Unidos e Rússia – têm tal situação privilegiada.

Hoje o Irã é que está no centro da mira. Amanhã poderá ser o exitoso Programa Nuclear brasileiro, através de novas e draconianas imposições regulatórias – já ensaiadas no chamado “protocolo adicional” –, que, sob o argumento da “não-proliferação”, buscariam tirar o Brasil do “jogo” e do seleto clube (12). Aliás, o Programa Nuclear brasileiro estruturou-se sob pesado embargo norte-americano, forçando a ruptura do Acordo Militar com os Estados Unidos, assinado em 1952, e “que nos condicionou doutrinária e materialmente por quase 30 anos” (13) até ser denunciado por Geisel, em 1977.

O fato é que a ascensão do Brasil como ator com relativo poder decisório no sistema internacional exige que o país passe a enfrentar o conjunto dos temas globais postos sobre a mesa, inclusive de natureza estratégica.

Quanto aos “problemas na América do Sul”, a percepção conservadora insiste na ameaça bolivariana – que substitui a ameaça comunista do passado –, enquanto o grande fator de conturbação do ambiente regional (a postura de sabotagem da integração promovida pela Colômbia) é convenientemente ignorado pela seletiva ótica conservadora. A direita conservadora, ao propor que o Brasil circunscreva seu papel ao de ator regional, quase que uma “polícia regional”, parece querer retomar a política de delegação, proposta à ditadura brasileira no final dos anos 1960 por Nixon e Kissinger, segundo a qual, em âmbito regional, “países-chave” se encarregariam de manter a ordem conforme as determinações da potência imperial (14). O Brasil não cabe neste figurino.

Aqui, entramos no segundo argumento. Para a corrente conservadora, só ascenderemos ao núcleo do poder mundial por dádiva do centro, por “bom comportamento”, alinhando-se invariavelmente às posições do mainstream (15).

Parece-nos tratar-se exatamente do inverso: nossa ascensão ao CS da ONU e a própria reforma dos órgãos de governança do sistema internacional serão resultado da evolução da correlação de forças em nível internacional, ou não ocorrerão – jamais será concessão de quem age para prolongar o atual status quo do poder mundial. O Brasil só se credenciará e jogará papel decisivo nessa “nova ordem” se polarizar nossa região na defesa de valores progressistas para a ordem internacional em conformação.
O Brasil, enquanto Estado, não deve ter, a priori, nem posição pró-norte-americana nem antinorte-americana. Trata-se aqui de possuir posições anti-hegemônicas, anti-imperialistas, de defesa de espaço e autonomia para nosso projeto de desenvolvimento. Como diz José Honório Rodrigues, em Interesse Nacional e Política Externa, “não somos contra ninguém, somos, apenas, a favor de nós mesmos, como povo que aspira ao progresso econômico e à justiça social”. A oposição conservadora, ao contrário, demonstra posição visceralmente a favor do alinhamento de nossa política exterior às posições norte-americanas – única forma, para eles, de ascender ao núcleo de poder mundial. Mas se for para sermos simples caudatários das posições norte-americanas, qual o sentido de assumir um papel global?

Inaceitável. Afinal, Brasil e Estados Unidos são dois grandes países que muitas vezes possuem interesses objetivamente contraditórios. E na medida em que aumentarem o peso objetivo e o protagonismo brasileiro é inevitável o crescimento de contenciosos com posturas hegemonistas.

A grande questão atual é a de renovar o pensamento estratégico brasileiro, a partir da reflexão sobre o novo contexto internacional em conformação. Precisamos, mais que nunca, “pensar com a própria cabeça”, isto é, ver o mundo de acordo com lentes brasileiras.

Já o argumento da “ruptura com a tradição” não se sustenta se contrastado com a trajetória diplomática brasileira. Bastaria estudar boas obras de referência sobre o tema (16), para observar que nossa política exterior oscila de acordo com o contexto internacional e, sobretudo, com as circunstâncias políticas internas.

Como estabelecer um sinal de igualdade entre políticas de afirmação da independência e soberania brasileira – como a PEI (Política Externa Independente), nos anos 1960, dos chanceleres Afonso Arinos, San Tiago Dantas e Araújo Castro ou do “pragmatismo responsável” de Azeredo da Silveira, no governo Geisel – e a política externa subordinada aos interesses norte-americanos como se observou no governo de Eurico Gaspar Dutra e no início da ditadura militar, sob o governo Castelo Branco?

Mesmo se o argumento da tradição resvalar para uma característica da formação social brasileira – a busca de mediações –, não foi exatamente isto o que se buscou com a Declaração de Teerã?

Questão nacional, povo e elite

O debate sobre política externa tem o mérito de explicitar uma diferença básica entre a imensa maioria do povo brasileiro e parcelas importantes das elites no que diz respeito a como veem a própria nação, suas potencialidades e desafios.

Para a imensa maioria do povo brasileiro, o aumento da presença internacional do Brasil é motivo de celebração, de orgulho, de expressão da realização da nacionalidade – como afirmou recentemente o Vox Populi (17), a partir de pesquisas qualitativas.

Entretanto, parcela expressiva das elites – repercutindo visão negativista acerca do Brasil, todavia presente em nosso pensamento social – é fortemente crítica à condução protagonista da inserção internacional do Brasil.

Ao refletir as diferentes percepções do povo e da elite quanto à questão nacional, não poderíamos deixar de recordar a metáfora de Nelson Rodrigues sobre o complexo de vira-lata, para classificar o pensamento sabujo, deslumbrado e antinacional refletido em parte expressiva da burguesia brasileira. Trata-se daquilo que o embaixador Samuel Pinheiro denomina, em seu Desafio Brasileiro na era de gigantes (Editora Contraponto, 2006), como vulnerabilidade ideológica e consciência colonizada – para ele, a mais grave de nossas vulnerabilidades, pois “agrava as outras facetas da vulnerabilidade externa”. Enfrentar este óbice endógeno à realização do potencial brasileiro é uma questão básica para avançar num projeto nacional.

O debate em curso na sociedade brasileira diz respeito a qual sentido dar ao crescente protagonismo brasileiro no mundo, um fato amplamente reconhecido. Caminhos antagônicos estão propostos: prosseguirmos com uma postura independente e autônoma ou nos apequenarmos, vinculando-nos quase num automatismo às posições dos países centrais e hegemônicos. Essa é a natureza do debate em curso.

Ronaldo Carmona é Cientista social, mestrando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), da Comissão de Relações Internacionais do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). E-mail: ronaldocarmona@gmail.com
    

Notas

(1) Marco Vicenzino, diretor da Global Strategy Project, “O crescente papel internacional do Brasil”, na Folha de S.Paulo, 07-06-2010, p.A3.

(2) Entrevista de David Rothkopf, analista do Carnegie e colunista da Foreign Policy e O Estado de S. Paulo, 13-06-2010, p.A19.

(3) “Diplomacia de Lula”. Ensaio de Rubens Ricupero na Revista Novos Estudos do Cebrap, n. 87, junho de 2010.

(4) O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse: “se há setor no qual o Brasil ganhou credibilidade e, portanto, o respeito internacional foi no das relações exteriores” (“Política Externa responsável”, O Estado de S. Paulo, 06-06-2010, p.A2).

(5) Ver discurso do presidente Barack Obama no Cairo ou relatórios como o Global Trends 2025: A Transformed World, do National Intelligency Council.

(6) Sobre condicionamentos externos, ver CARMONA, Ronaldo. “Reação ao Protagonismo brasileiro e à união sul-americana”, Princípios n. 104.

(7) Dentre outros, os senhores Rubens Ricupero, Sergio Amaral, Marcos Azambuja, Rubens Barbosa, Roberto Abdenur, Celso Lafer e Luis Felipe Lampreia – estes dois últimos, chanceleres de Fernando Henrique.

(8) O termo (“diplomacia da generosidade”) aparece em livro de Rubens Barbosa, editado pelo governo do estado de São Paulo sob o título Mercosul e a Integração Regional. 

(9) Palestra de Rubens Barbosa no Instituto Teotônio Vilela, março de 2010.

(10) Brasil e Argentina: relação intensa, do embaixador brasileiro em Buenos Aires, Enio Cordeiro (Valor Econômico, 26-04-2010).

(11) Editorial d’O Globo, 25-05-2010.

(12) Em clara provocação, o diretor da AIEA, o japonês Yukiya Amano, em maio último – não por acaso, logo após a Declaração de Teerã –, no Le Monde, fala de “frustração” por seus inspetores não poderem acessar partes do Programa Nuclear brasileiro, que são segredo industrial. Fazendo coro, vê-se a recente entrevista de José Goldemberg à revista Época, 25-06-2010. Ambas pressionam pela adesão do Brasil ao Protocolo Adicional do TNP, um crime de lesa-pátria caso fosse assinado.

(13) Depoimento do almirante Mario César Flores em “Reflexões sobre defesa e segurança: uma estratégia para o Brasil”, Ministério da Defesa, 2005.

(14) Este tema é desenvolvido por Matias Spektor, em Kissinger e o Brasil. Zahar, 2009.

(15) Os conservadores argumentam, por exemplo, que a adesão gratuita e unilateral do Brasil ao TNP em 1997 – quebrando uma tradição de nossa política externa que vinha desde 1968, quando o diploma foi assinado – realizou-se como demonstração de boa vontade brasileira em participar numa ordem internacional globalizada, liberal, de natureza cooperativa. Nada mais falso, como se viu depois.

(16) Por exemplo, História da Política Exterior do Brasil, de Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, da Editora da UnB. 

(17) Em “Política externa e opinião pública”, disponível em www.cartacapital.com.br, acessado em 29-06-2010, conforme argumenta Marcos Coimbra, “nas pesquisas qualitativas feitas atualmente o que se encontra é uma sensação de orgulho do cidadão comum pelo que avalia ser um crescente reconhecimento internacional do Brasil, seu governo e sua economia”.
 

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