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Edição 108 > 1810-2010: Bicentenário das Independências hispano-americanas
1810-2010: Bicentenário das Independências hispano-americanas
As lutas das independências hispano-americanas foram mais complexas do que um único e fundamental antagonismo entre “americanos” e “espanhóis”. Havia também uma luta de classes étnico-social entre os “americanos”, mas que através de um discurso nativista conseguiu se unificar em favor da independência

Celebra-se neste ano em todo o continente a passagem dos dois séculos desde a deflagração, em 1810, dos processos históricos que culminaram com a independência política das colônias hispano-americanas. Em momentos como estes, somos levados à impressão de que os calendários parecem nos impor, periodicamente, seus temas e fatos históricos de forma implacável, por meio das chamadas efemérides. Mas, felizmente, tais efemérides costumam se salvar pelo fato de que cada presente, com os novos problemas e expectativas que gera, fornece sempre a possibilidade de um novo olhar para um “mesmo” passado.
A partir deste ano e nos seguintes, na esteira dessas comemorações, certamente os diversos meios de comunicação oferecerão ao grande público dos vários países da América Latina, inúmeras oportunidades de acesso às sínteses históricas, cronológicas e factuais a respeito das suas independências. Em menor medida, surgirão inevitavelmente os debates sobre o significado, em pleno século XXI, desses acontecimentos que marcaram indelevelmente os perfis, os limites e as possibilidades dos novos Estados nacionais latino-americanos que começariam a ser formados a partir de então. Sem dúvida, tal debate é e será de fundamental importância para que se fomente a consciência histórica dos povos latino-americanos.
Neste ensaio, de forma alternativa e sumária, oferecemos alguns pontos para reflexão, a partir do olhar de um historiador, sobre certos temas recorrentes nas abordagens dos processos de independência política das colônias hispano-americanas.
Inicialmente, no que tange às independências políticas, há que se estabelecer uma primeira importante distinção entre os diferentes processos verificados nas colônias espanholas e na colônia portuguesa na América (embora esta última não seja objeto de análise neste texto). Tal distinção muitas vezes corre o risco de ser ofuscada na denominação e no tratamento homogeneizante de “independências latino-americanas”. Não obstante o avanço dos exércitos de Napoleão sobre a península ibérica, em 1808, tenha se constituído no elemento externo comum e fundamental na deflagração de ambos os processos, os resultados e desdobramentos verificados no campo português e no campo espanhol foram bastante diversos. Enquanto a corte portuguesa se viu obrigada a fugir para a América, aproximando-se de sua colônia e mantendo a integridade do Império, a Espanha foi invadida e seu monarca, Fernando VII, aprisionado e obrigado a abdicar do trono em favor do irmão de Napoleão, José Bonaparte.
Assim, a Coroa espanhola, diante da invasão napoleônica, viu-se repentinamente isolada de suas áreas coloniais americanas que, por sua vez, reagiram de formas e com intensidades diferentes aos acontecimentos na metrópole, em razão de certas especificidades locais, como: importância econômica e fiscal, natureza da atividade econômica predominante, forma de exploração da mão-de-obra, composição social e étnica da população, nível de rivalidades locais, grau de circulação de ideias, posição geoestratégica etc. Nesse sentido, é fundamental para a compreensão dos movimentos de independência na Hispano-América que se tome na devida conta tais diferenças regionais já que, em não poucos casos, elas impõem sérios embaraços às tentativas de um tratamento homogeneizante.
Por outro lado, há uma tendência que tende a simplificar os processos de independência das colônias hispano-americanas, reduzindo toda a questão a um único e fundamental antagonismo entre “americanos” e “espanhóis” ou entre “colonos” e “metropolitanos”. Em geral, tal tendência esbarra nas dificuldades de se encaixarem nessa dicotomia outros atores sociais com interesses os mais diversos que, de uma forma ou de outra, se viram envolvidos nos movimentos de independência, gerando novos tipos de conflitos. Se o grupo dos “espanhóis” ou “peninsulares” é mais facilmente identificável, por representar uma ínfima parte da população (1% em média) e por ter o privilégio de ocupar posições-chave na administração colonial, nas esferas militares, eclesiásticas e até comerciais – o que não garantia, contudo, uma uniformidade de interesses –, o mesmo não se pode dizer definitivamente acerca do grupo dos “americanos”.
Entre os “americanos”, ocupavam a posição social de maior destaque os criollos, que representavam em média 20% da população colonial. Descendentes de espanhóis, nascidos na América, os criollos exploravam as atividades econômicas das colônias e rivalizavam com os peninsulares, que eram os espanhóis nascidos na metrópole, sobretudo em virtude dos privilégios conferidos pela Coroa a estes últimos. Embora haja também, diga-se de passagem, alguns historiadores que questionem esse antagonismo entre criollos e peninsulares, deslocando-o para a esfera dos diferentes grupos “hispano-americanos”.
O restante dos “americanos” era composto pela grande maioria da população colonial (80% em média). Eram amplos contingentes de índios, mestiços e alguns africanos (variando seu peso demográfico conforme a região), submetidos a duras e humilhantes condições de vida, a uma rígida hierarquia étnico-social e às mais diversas formas de trabalho, muitas compulsórias, como por exemplo, as mitas, encomiendas e obrajes. Encontravam-se à margem da competição entre criollos e peninsulares. Tinham boas razões para se revoltar muito mais contra os “criollos americanos”, que os exploravam mais diretamente, do que contra os “peninsulares espanhóis”. Muitos deles colocaram-se inclusive, nos primeiros momentos das lutas independentistas, do lado da Coroa espanhola.
A seguir apresentamos alguns exemplos de como, nos processos de independência, não houve um alinhamento automático de interesses entre os diversos componentes do grupo dos “americanos” e de como, pelo contrário, em alguns casos houve mesmo aproximações entre americanos e espanhóis.
O primeiro exemplo foi o da rebelião indígena-camponesa, liderada pelos padres Hidalgo e Morelos, na região do vice-reinado da Nova Espanha (atual México), em 1810, que se apoiou, fundamentalmente, na dicotomia entre “americanos” e “espanhóis”, colocando-se claramente em favor dos primeiros. Entretanto, bastou o movimento assumir um caráter de luta popular pelo fim dos tributos indígenas, da escravidão e do sistema de castas, bem como pela devolução das terras tomadas das comunidades indígenas, para ser logo abandonado pelo setor criollo americano. No avanço dessa rebelião, alguns criollos foram inclusive assassinados, junto com espanhóis. Quando Hidalgo foi preso, condenado e fuzilado, sua cabeça foi exibida publicamente durante anos como um exemplo para aqueles que ousassem desafiar certos limites da luta emancipacionista. Certamente com o aval dos criollos americanos.
Seguindo a mesma linha, o caráter revolucionário da rebelião indígena de Túpac Amaru, ocorrida em 1780 no vice-reino do Peru, ainda estava bastante presente na memória dos setores criollos dessa região nas primeiras décadas do século XIX. Cientes do considerável risco que representava a mobilização dos indígenas para lutarem pela independência, os criollos “peruanos” não quiseram se arriscar novamente. Não por acaso a região do atual Peru foi o último reduto dos espanhóis na América. Tais exemplos demonstram como certas rebeliões indígenas acabaram por colocar em segundo plano as eventuais diferenças entre criollos e peninsulares, diante do temor que essas revoltas geravam entre a população branca.
Também numa região do vice-reinado de Nova Granada, hoje Venezuela, foi bastante significativo o movimento dos trabalhadores livres nas fazendas de criação, chamados llaneros (equivalentes aos gaúchos do Prata), que não guardavam nenhuma simpatia pelos criollos de Caracas. Liderados pelo espanhol José Tomás Boves, os llaneros optaram por defender o seu rei e por lutar à revelia dos chefes militares espanhóis, chegando a impor, em 1813, uma fragorosa derrota a nada menos do que o exército libertador de Simón Bolívar, representante da elite dos criollos americanos. Portanto, americanos lutando contra americanos! Os independentistas bolivarianos somente venceram a luta na região da atual Venezuela após conseguirem, mais tarde, cooptar os llaneros por meio do argumento do nativismo americano. Assim, o que aqui estamos nos referindo genericamente como o grupo dos “americanos” abarcava, na verdade, um amplo leque social, com um altíssimo nível interno de contradição.
Torna-se necessário aqui, chamarmos a atenção para as duas dimensões básicas que envolveram as lutas pelas independências hispano-americanas, que podem ser colocadas nos seguintes termos: a classe dos criollos americanos, para vencer as forças metropolitanas espanholas, necessitava incorporar à luta as classes subalternas americanas e estas, por sua vez, procuravam tirar vantagem da situação para se livrar da dominação que lhes foi imposta historicamente, seja pelos criollos americanos, seja pelos peninsulares espanhóis. Nesse sentido, é preciso compreender a complexa coexistência, em certos momentos, de duas lutas paralelas travadas por essas classes subalternas: junto ou mais do que pela independência, lutaram também por melhores condições de vida, pelo direito à terra, pelo fim do servilismo e do sistema de castas. Quando se proclamaram em favor da independência foi porque associaram-na à sua redenção.
Talvez seja na perspectiva dessas duas dimensões das lutas pela independência hispano-americana, expostas anteriormente, que devemos recolocar o tema das influências externas, no campo das ideias, que teriam guiado e justificado os posicionamentos dos principais líderes independentistas. Isso para chamar a atenção para o fato de que, para além das influências das tão propaladas ideias liberais e da Ilustração, provavelmente o impacto da Revolução Americana ter sido, na prática, mais efetivo. Isso porque o caso estadunidense, além de representar um modelo de independência bem sucedido no continente, não colocou questões que pudessem comprometer a manutenção do domínio da classe criolla sobre as demais classes subalternas americanas. Exatamente essa revolução é que ofereceu o exemplo de como harmonizar um programa liberal, restrito aos campos econômico e político, com a manutenção da escravidão.
Por outro lado, aquela perspectiva historiográfica que reduz a questão das independências ao antagonismo fundamental entre “americanos” e “espanhóis” tende, na verdade, a reproduzir a dicotomia criada pelo próprio discurso das elites criollas ao evocarem o sentimento nativista americano. Mas o que viria a ser esse nativismo? Definia-se pela reivindicação de uma suposta “identidade americana” fundada sobre o local de nascimento (no caso, a América), critério em torno do qual estariam integrados numa única identidade os criollos brancos, indígenas, mestiços e filhos de escravos africanos. Não sendo capazes de, sozinhos, levar adiante o movimento independentista, os criollos adotaram a eficiente e vitoriosa estratégia de explorar o nativismo para atrair os demais “americanos” para seu lado. Evidentemente, sem que isso significasse uma alteração substancial na hierarquia étnico-social que pudesse ameaçar a sua liderança “natural” do processo.
Outra questão interessante é que alguns historiadores identificaram alguns grupos políticos nas principais cidades coloniais que, segundo esses estudos, teriam se posicionado num meio termo entre a subordinação colonial e a emancipação total, aos quais chamaram de autonomistas. Algo parecido ao que existiu em Cuba. Para esses autonomistas, a monarquia espanhola se encontrava integrada por diversos reinos que reconheciam a um mesmo soberano e, nesse sentido, a independência, vista como a construção de um Estado soberano distinto da Espanha, não se encontrava nos seus planos, desde que lhes fossem garantidos certos direitos e ampliada a autonomia na tomada de decisões.
Para finalizar, um último ponto de, e para, reflexão. As denominações geralmente dadas aos acontecimentos verificados no primeiro quarto do século XIX na maioria dos países da América Latina, do tipo “a independência do Chile”, “a independência da Argentina” ou “a independência do México”, expressam de forma sutil um sério problema. Acabam por repassar a ideia de que está se tratando da história de entidades, povos ou nações já formadas, naquele momento dominados por uma potência estrangeira, colonialista e autoritária, da qual se tornariam independentes por meio da épica luta patriótica. Teriam os novos Estados se constituído sobre a base de personalidades e identidades nacionais preexistentes?
A verdade é que, ao contrário da versão dominante nos relatos patrióticos, não houve, definitivamente, nações ou identidades protonacionais nem antes e nem durante as lutas independentistas. Exatamente o processo de crise e fratura da monarquia espanhola, com os seus desdobramentos, é que abriu espaço para o longo e complexo processo de construção das nações hispano-americanas. Falar da existência de uma consciência ou de um sentimento nacional chileno, argentino ou mexicano, antes ou mesmo durante as lutas pela independência, é algo absolutamente destituído de qualquer sentido. Os historiadores têm dificuldades, por exemplo, de identificar uma nação argentina antes da primeira metade do século XIX.
Contribuiu para tanto uma historiografia de viés positivista, de raízes ainda no século XIX, que, no afã de exaltar as histórias nacionais, procurou reconstruir a história desses “objetos” (do tipo nações chilena, argentina ou mexicana) desde os “tempos mais remotos”, recorrendo a todo tipo de registro de que se tivesse notícia. Invertendo-se a equação, é como se uma consciência nacional ou protonacional tivesse impulsionado os revolucionários a tomar as armas contra o domínio espanhol. Por isso era fundamental ressaltar a participação decisiva dos heróis nacionais, pois eram eles os promotores privilegiados de tal consciência, aqueles que, ao perceberem a existência de uma nação oprimida pelo despotismo europeu, propuseram-se a libertá-la.
Enquanto as comemorações do bicentenário das independências hispano-americanas podem estar servindo, em não poucos casos, para a reafirmação de valores patrióticos e mitos fundacionais, resta esperar que a história dos “heróis que nos deram a pátria” não tome o lugar da história daquelas multidões de heróis anônimos que serviram à luta independentista, morrendo sem saber o que era pátria e uma vida sem amos.
Eugênio Rezende de Carvalho é doutor em História Social e das Ideias pela Universidade de Brasília e professor da Universidade Federal de Goiás, onde exerce a docência e desenvolve pesquisas na área de História Latino-Americana. É autor dos livros Nossa América: a utopia de um novo mundo (São Paulo: Anita Garibaldi, 2001) e América para a humanidade: o americanismo universalista de José Martí (Goiânia: UFG, 2003) e Pensadores da América Latina (Goiânia: UFG, 2009).