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Edição 108 > O Projeto Brasil dos movimentos sociais
O Projeto Brasil dos movimentos sociais
A Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) aprovou em Assembleia o Projeto Brasil. Ele tem o mérito de dar caráter geral às lutas específicas e direciona os movimentos para intervir na luta política. Foi consenso que é preciso mobilizar o povo para barrar o retorno da direita neoliberal

As eleições presidenciais de 2010 desde já explicitam a disputa entre projetos antagônicos para o Brasil. Diferente de eleições anteriores, em que temas conjunturais ganhavam relevância, neste ano a campanha revela com mais nitidez as opções políticas e ideológicas de cada candidatura. O caráter plebiscitário assumido pelo processo coloca de um lado da disputa a perspectiva de aprofundar as mudanças obtidas nos últimos oito anos, durante o governo Lula, representado pela candidata Dilma Rousseff. Do lado oposto, representando a ânsia pelo retorno das privatizações e de um projeto antinacional de submissão aos países mais desenvolvidos, está José Serra, o candidato das elites.
A maior politização do debate eleva a responsabilidade dos movimentos sociais em apresentar um projeto de desenvolvimento nacional democrático e popular para o Brasil. Abre-se a oportunidade da defesa de propostas mais ousadas, capazes de alterar a qualidade do desenvolvimento em curso, gerando melhorias diretas na vida do povo e na estrutura social do país. A formulação de políticas públicas e estruturais por parte dos movimentos sociais deve influenciar a disputa, conquistando espaço nos programas de governo defendidos pelos candidatos. Essa é a hora em que a exigência do aprofundamento das mudanças precisa ganhar mais força.
É preciso afirmar que o avanço econômico sem transformação social não levará ao desenvolvimento efetivo do país. Os movimentos sociais devem pautar uma concepção contemporânea e democrática de desenvolvimento. Um novo projeto de nação que deve contemplar a garantia de soberania econômica e política. Reafirmar o papel do Estado como promotor do desenvolvimento, rejeitando a tese do Estado mínimo que se deixa governar pelos interesses do mercado. Exigir mais direitos para o povo através da constituição de um país com justiça social. E, para isso, estabelecer uma agenda comum dos movimentos sociais, com lutas e reivindicações unitárias. O povo é que deve ser o protagonista da construção desse novo projeto de desenvolvimento, que precisa agregar amplos setores sociais.
Com esse propósito, a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) realizou no último dia 31 de maio a Assembleia Nacional dos Movimentos Sociais, reunindo mais de 3 mil militantes vindos de 24 estados do país na quadra do Sindicato dos Bancários, em São Paulo. Algumas delegações chegaram a viajar por três dias para poder participar deste momento de celebração da unidade dos movimentos sociais.
Vale lembrar que a Coordenação dos Movimentos Sociais – criada em abril de 2003 por organizações e entidades como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a União Nacional dos Estudantes (UNE) – é um espaço de convergência, reflexão e atuação conjunta, com o objetivo de aglutinar propostas para o desenvolvimento do país e para a melhoria da vida do conjunto da sociedade. Trata-se de um espaço estratégico de convergência de forças populares e democráticas. Juntas, elas constroem um campo de ação que coloca os movimentos sociais como protagonistas na produção de conhecimento e elaboração de alternativas viáveis e avançadas para o Brasil.
A CMS é formada por 28 entidades e movimentos nacionais, e nos estados participam ainda grupos locais. A Coordenação se organiza a partir de articulação horizontal e sem hierarquia por tipo ou forma de movimento. Três centrais sindicais compõem a CMS – CUT, CTB e CGTB. O movimento feminista, tão importante em uma eleição como essa em que das três candidaturas com mais visibilidade duas são mulheres, está representado por entidades como a UBM. A luta pela visibilidade LGBT colore os debates e rejeita a homofobia ainda tão presente em nossa sociedade. Constroem a CMS no dia a dia também os movimentos de luta pela moradia através de entidades como a Conam, em defesa da mídia livre, o movimento negro representado, entre outros, pela Unegro, a juventude presente através da UJS, os estudantes da UNE, UBES e ANPG. É, portanto, uma articulação marcada pela diversidade e pluralidade de pensamentos. Por isso seus consensos são tão ricos e representativos.
A Assembleia da CMS – que aprovou o texto do Projeto Nacional e Popular dos Movimentos Sociais para 2010, o Projeto Brasil – começou a ser construída em janeiro, durante os Fóruns Sociais Mundiais temáticos de Porto Alegre e Salvador. Nestes dois encontros a CMS lançou um duplo desafio: construir uma plataforma de lutas e propostas unificadas, garantindo uma intervenção qualificada no processo eleitoral e garantir o crescimento da mobilização social através da construção de uma agenda unificada de lutas.
Entre janeiro e maio foram realizadas plenárias em 17 estados para absorver as reivindicações locais de cada região do país, mobilizando mais de 20 mil pessoas na formulação do Projeto Brasil dos Movimentos Sociais. Unificando a rica diversidade dos movimentos que compõem a CMS, construiu-se uma nova versão do documento lançado na ocasião das eleições presidenciais de 2006.
O principal mérito do Projeto Brasil é dar um caráter geral de transformação estrutural às lutas e reivindicações específicas de cada movimento e entidade. Dessa forma é que a CMS sintetiza sua atuação nas eleições em curso. Ao mesmo tempo em que não formaliza apoio a nenhuma candidatura, por respeitar a diversidade e pluralidade de pensamento presentes em sua composição, a CMS toma lado nessa disputa. A rejeição à volta do consórcio “demo-tucano” ao poder central do país ficou evidenciada nas falas de todas as lideranças que se pronunciaram durante a Assembleia por ser claramente antagônica às reivindicações pautadas pelos movimentos.
“Nós, militantes de diversas organizações dos movimentos sociais reunidos na Assembleia Nacional dos Movimentos Sociais convocada pela CMS, apresentamos para a sociedade brasileira uma plataforma de reivindicações unitárias para a construção de um Projeto Nacional de Desenvolvimento para o Brasil”.
Assim começa o Projeto Brasil, que se divide em quatro eixos temáticos, com o propósito de apontar as posições e intervenções da CMS sobre o atual momento político. Os pontos são: “Soberania Nacional”, “Desenvolvimento”, “Democracia” e “Mais Direitos ao Povo”.
Reconhecendo que durante o governo Lula avanços foram conquistados, a partir do diálogo com os movimentos sociais, a CMS aponta que as mobilizações e a pressão popular precisam se acirrar a partir de 2011 para que se garanta o aprofundamento das mudanças. Essa perspectiva fica clara neste trecho do documento:
“No Brasil muitos avanços foram conquistados pelo povo durante os sete anos do governo Lula. O Estado foi fortalecido alcançando maior ritmo de desenvolvimento, a distribuição de renda e o progresso social avançaram com a valorização do salário-mínimo, das políticas sociais e da integração solidária do continente. Porém, muito mais há para ser feito. Defendemos mudanças na política econômica, com redução dos juros e do elevado superávit primário para que o país transite para um novo Projeto Nacional de Desenvolvimento. Sabemos que enquanto não resolvermos a grave desigualdade social motivada pela enorme concentração de renda e riquezas em nosso país não avançaremos na constituição de um Brasil democrático. Reivindicamos a realização de reformas estruturais que avancem e consolidem as conquistas desse último período. Lutamos pelas reformas política, tributária, urbana, agrária, da educação e dos meios de comunicação como forma de ampliar a participação do Estado na indução do desenvolvimento”.
Além de formular e aprovar o conteúdo do projeto de país defendido pelos movimentos sociais, a Assembleia serviu para incentivar a organização popular e convocar mobilizações unificadas para o próximo período. Para isso, a CMS definiu incentivar a constituição de comitês populares de campanha para as eleições 2010.
“Sabemos que essas conquistas virão da luta do povo organizado. A construção de um Brasil soberano, justo, democrático e desenvolvido passa necessariamente pelo fortalecimento dos movimentos sociais. Por isso convocamos todos os militantes a continuarem com os debates nos estados e municípios através dos diversos segmentos sociais no intuito de tornar público o Projeto Nacional e Popular dos Movimentos Sociais, instrumento de proposição que visa a enfrentar as disputas eleitorais e implantar continuamente as pautas defendidas pelo movimento sindical e social organizado na Coordenação dos Movimentos Sociais. Para isso, nesse próximo período devemos organizar Comitês Sindicais e Populares de campanha para difundir esse Projeto Nacional, fortalecer a unidade dos trabalhadores e dos movimentos sociais, mobilizar o povo para impedir o retrocesso, ampliar as conquistas e aprofundar as mudanças”.
O esforço do movimento social nesse momento de encruzilhada histórica que vivemos deve estar todo focado no processo eleitoral. Os comitês populares devem ser o espaço de articulação entre entidades e lideranças sociais na defesa do Projeto Brasil. O debate político posto no país propicia um avanço no grau de consciência do povo. O movimento social deve aproveitar esse momento para levar para o seio do povo o debate entre os diferentes projetos de nação colocados nessa eleição. Cada associação de bairro, centro acadêmico ou sindicato deve ser um espaço de propagação da defesa desse novo Brasil desenhado no projeto de desenvolvimento apresentado pelos movimentos sociais. A oposição ao retrocesso representado pela candidatura Serra precisa ser explicitada. E, frente à polarização do processo eleitoral, é necessário o aprofundamento da compreensão de que a candidatura de Dilma Rousseff é a única capaz de levar adiante o projeto dos movimentos sociais.
Conforme demonstra a história do nosso país, nenhuma grande transformação social acontece sem a pressão do povo organizado. Passado o processo de construção programática, é necessário investir na consolidação de um campo amplo de unidade capaz de trazer à tona grandes mobilizações sociais e populares no próximo período. Só assim será possível construir uma influência maior dos movimentos sociais no cenário político e eleitoral. Por isso, além de trabalhar pelo fortalecimento da CMS e seu enraizamento nos estados, a constituição dos comitês populares deve buscar uma aproximação política cada vez maior entre as diferentes articulações, em especial com o Fórum das Centrais Sindicais. Dessa forma, o processo amplo constituído ao longo das eleições servirá como um embrião de novas mobilizações que deverão pautar o próximo período na exigência de mais conquistas e avanços.
Além da Assembleia Nacional dos Movimentos Sociais construída pela CMS, outras duas iniciativas semelhantes foram organizadas no primeiro semestre deste ano: a Assembleia Popular, convocada para 25 a 28 de maio em Brasília e a Conferência Nacional da Classe Trabalhadora, que reuniu cerca de 30 mil trabalhadores convocados pelo Fórum das Centrais Sindicais em 1º de junho, em São Paulo. Nesses três eventos foram aprovados documentos programáticos que se conectam na perspectiva de fortalecer o papel dos movimentos sindical e social no processo eleitoral através da apresentação de um projeto de desenvolvimento nacional com geração de empregos, distribuição de renda e avanços sociais.
Essa agenda propositiva construída pelos movimentos sociais ilustra o novo momento que vive a sociedade brasileira. Graças às conquistas democráticas obtidas recentemente, os movimentos, antes acostumados a resistir aos ataques dos governos contra os direitos e interesses do povo, agora têm fôlego para pautar exigências fundamentadas em um novo projeto de desenvolvimento.
No governo Lula, novas formas e espaços de atuação dos atores sociais foram constituídos. Os Conselhos Nacionais e as Conferências temáticas se consolidaram como espaços privilegiados de intervenção direta do povo na formulação de políticas públicas. Grandes conquistas foram obtidas nesse último período graças a espaços como esses que têm mobilizado milhões de pessoas em todo o país. Um novo governo deve fortalecer ainda mais essas estruturas e instâncias de poder.
Mas nenhuma mobilização prescinde a perspectiva da construção de grandes lutas de massa. A construção de passeatas e jornadas unificadas por mais direitos e avanços é positiva em qualquer momento e determinante para a construção de uma nação democrática. É imprescindível a atuação dos movimentos sociais também nesse campo de batalha. A pressão das ruas é sempre necessária, seja para pressionar governos progressistas, para sustentar transformações mais profundas que atinjam interesses da elite gerando uma reação desta, ou mesmo para contrapor políticas e governos conservadores. É fato que a construção de grandes mobilizações não depende apenas de vontade. Buscar bandeiras políticas que unifiquem um amplo leque de forças e sensibilizem o clamor popular é um desafio colocado aos movimentos sociais.
As eleições de 2010 definirão se os oito anos de governo Lula foram uma exceção na condução do país ou uma alavanca capaz de impulsionar um enterro definitivo do projeto de nação subserviente e socialmente injusta defendido e implementado pela elite nacional traduzida na coalizão eleitoral entre PSDB e Democratas. Os movimentos sociais terão um papel decisivo na definição deste resultado ao lutarem pelo aprofundamento das mudanças com a eleição de Dilma Rousseff.
Lúcia Stumpf é Jornalista, Secretária nacional de Movimentos Sociais do PCdoB.