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Edição 106 > Saudade do futuro – a cultura nos 50 anos de Brasília

Saudade do futuro – a cultura nos 50 anos de Brasília

Sérgio Moriconi
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Símbolo do moderno, mito da monumentalidade! Afinal, o que representa Brasília no imaginário dos brasileiros? Apesar do retrocesso promovido por anos de ditadura militar, com meio século de existência a cidade parece já ter produzido um caldo cultural surpreendente 

Há muitos fatores a ser levados em consideração quando pensamos em que tipo de representação cultural Brasília exerce no imaginário dos brasileiros. Ao mesmo tempo, ficamos meditando se nós – os indivíduos da cidade nova – já construímos uma identidade própria, um sotaque, um comportamento que nos singularize em relação às outras regionalidades deste país. Com meio século de existência, a cidade símbolo do modernismo parece já ter produzido um caldo cultural que não deixa de ser surpreendente quando consideramos as adversidades políticas das décadas de 1960, 70 e 80. Sem sombra de dúvida, o golpe militar de 1964 abortou a possibilidade de sermos aquilo que poderíamos ter sido se as circunstâncias fossem outras.

Mesmo assim, somos o que somos e muito do que somos se deve às remanescências e à introjeção das avançadas ideias e concepções urbanísticas e arquitetônicas da cidade. Embora os governos militares tenham feito com que muitos de seus idealizadores voltassem para seus lugares de origem, alguns permaneceram e adotaram Brasília como seu local de residência. Athos Bulcão foi um deles. Seu desaparecimento há pouco mais de um ano nos leva a pensar na importância indelével de sua obra para a construção da identidade visual de Brasília. Haveria Brasília – sua representação em nosso universo simbólico – sem os azulejos e os painéis de complementação arquitetônica de Athos Bulcão? Junto a Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, o artista ajudou de fato a criar um referencial de transformação da tradição urbana do Brasil.

Em outras áreas da arte, entre artistas de outra geração, Brasília foi, em seus primeiros cinquenta anos de vida, uma cidade paradoxal. Capital de um país sob uma ditadura militar, os nichos de uma produção cultural vibrante e vital foram sendo abertos através de instituições que se mantiveram como núcleos de resistência à mesquinhez das mentalidades oficiais. A Universidade de Brasília foi uma delas. Espaços como o Centro de Criatividade, hoje Espaço Cultural 508 Sul, também. Ambos semearam os vários campos das artes da cidade e contaram, durante um bom período, com a aquiescência tácita e generosa do embaixador Wladimir Murtinho, um secretário de cultura que era uma ilha de liberalidade num ambiente onde predominavam a truculência e o obscurantismo.

Brasília pós-1964 foi aos poucos se tornando o símbolo do atraso. Pouca gente lembra hoje dos seus tempos heroicos, amplamente documentados por cineastas de todas as partes do Brasil e do estrangeiro. No que se refere ao campo do cinema, a épica de sua construção fez sonhar até mesmo produtores e diretores das chamadas chanchadas da Atlântida (Um candango na Belacap, por exemplo). Este filme e muitos outros atestavam Brasília (especialmente a arquitetura de Niemeyer e o plano de Lúcio Costa), juntamente com a Bossa Nova, como símbolos do moderno, marcos de uma nova era: o Brasil arcaico – era o que se imaginava – iria desaparecer como num passe de mágica. Não se pode esquecer que, o início da década, foram os anos JK. Havia uma grande efervescência em todos os campos – econômico (com o modelo Kubitschek de importação de capital e tecnologia, dando impulso ao “desenvolvimentismo”), social (a Revolução Cubana inspirando a oposição organizada de esquerda no Brasil, a partir da consciência da tragédia social nordestina), cultural (o teatro de Augusto Boal, o cinema novo etc.).

Os cineastas que voltaram seus olhos para Brasília nos anos 1960 – lá instalados ou não – foram todos sensibilizados por essa fantasia de Brasília. Eu citaria aqui Nélson Pereira dos Santos e Maurice Capovilla, entre outros. Eles e inúmeros cinegrafistas anônimos fizeram o registro fundamental de um acontecimento extraordinário e único em todo o mundo. Mesmo que pareça um clichê repetir aqui, o fato é que documentar o nascimento de Brasília equivalia – se tivesse sido possível – a registrar algo monumental como a construção das pirâmides do Egito ou as Muralhas da China. Principalmente a partir dos anos 1970, o cinema passou a ver Brasília como a negação do projeto modernista do país. A fase brasiliense do paraibano Vladimir Carvalho – que fez Conterrâneos Velhos de Guerra e Brasília Segundo Feldman – é isso. Da mesma forma, como mencionamos acima, Brasília pouco a pouco se transforma numa maldição para os olhares de fora. A cidade passou a ser a cara da ditadura militar.

Para mim e toda a nova geração de cineastas que cresceu junto com a cidade, normalmente filhos de pioneiros, Brasília tinha um sentido ambíguo. Crianças demais para sofrer as frustrações e as agruras do golpe militar víamos a cidade ainda como uma utopia do ponto de vista da proposta urbana e da convivência social. Ao mesmo tempo, era impossível não deixar de perceber o esvaziamento do ideal igualitário do plano urbanístico, com a reprodução, na periferia, da histórica exclusão social brasileira. Meus filmes Carolino Leobas e Athos expressam um pouco essa dualidade. Os filmes de Marcos Mendes também, assim como os de Mauro Giuntini, de uma geração um pouquinho posterior, mas cujos filmes também se enquadram numa perspectiva semelhante.

A esquizofrenia de viver numa cidade que havia sido símbolo do moderno e do avançado e que, de uma hora para outra, se vê sede de uma ditadura militar está divinamente expressa nos filmes da Pedra Produções, dos diretores Pedro Anísio, Marcelo Coutinho e João Facó, especialmente nos curtas Os Três Poderes São um Só – O Deles e Conversa Paralela. Outro aspecto da geração iniciada no cinema no final dos anos 1970 e início dos 1980 foi a negação do mito da monumentalidade da capital idealizada por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Um filme que faz uma transição entre essa geração e a posterior, a que se inicia no cinema do final dos anos 1980, é Mínima Cidade, de João Lanari. Nele, o diretor se atém aos espaços esquecidos e degradados da cidade. Lanari depois fará um filme todo ambientado no Conic – conjunto de edifícios situado no Setor Comercial Sul da cidade que durante muitos anos foi o centro underground da capital – e, claro, isso nos faz pensar em Subterrâneos, de José Eduardo Belmonte.

Enquanto Lanari tinha um olhar irônico sobre o projeto utópico da cidade, Belmonte e vários outros cineastas da sua geração não estão preocupados com isso. As grandes esplanadas da cidade quase fazem a alegoria do vazio existencial da geração que inicia sua vida adulta no momento em que o país recupera suas liberdades democráticas. Os anos 1990 são, igualmente, a época do fim das grandes utopias. Dependendo de como se vê as coisas, Brasília pode dar mesmo essa sensação de desamparo. Pode ser que a angústia de Belmonte, muito presente nas letras da Legião Urbana, banda paradigmática para essa geração, em especial para os brasilienses, seja só dele e de alguns outros.

Um exemplo oposto seria a abordagem bem humorada e sem compromisso de realizadores como René Sampaio e Betse de Paula. A diferença é que em Sampaio não há preocupação em emitir um pensamento sobre a cidade, enquanto em Betse esta preocupação está muito presente, principalmente em O Casamento de Louise. Mas é difícil perceber hoje uma coerência ou mesmo uma unidade na representação da cidade no novo cinema de Brasília – e mesmo em outras artes – porque a cidade cresceu tanto, se transformou tão rapidamente e de tal maneira se tornou tão múltipla, multifacetada e híbrida que poucos (daqui ou de fora) ousariam dizer qual é a sua cara. O que era utopia, e que depois se tornaria a negação da utopia, hoje, num contexto democrático, é um objeto mutante diante do qual ficamos atônitos, intrigados e perplexos.
 

Sérgio Moriconi é jornalista, cineasta e professor de cinema
 

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